O mundo passa hoje por grande ebulição. As políticas econômico-comerciais adotadas pelo governo Trump nos dois primeiros meses da nova administração colocaram um fim nas relações comerciais previsíveis e governadas por regras criadas pelos próprios norte-americanos e representam um dos maiores atos de autossabotagem na história dos EUA. Hoje prevalece o unilateralismo, o uso da força na defesa dos interesses nacionalistas dos Estados. O multilateralismo, representado pela Organização Mundial de Comércio (OMC), está enfraquecido, sem condições de promover novas negociações globais, nem dirimir diferenças comerciais entre os países.
As medidas sobre restrições ao intercâmbio comercial dos EUA e, em especial, a política de reciprocidade tarifária desorganizaram o sistema comercial global. As restrições comerciais iniciais contra o México, Canadá e China, seguidas pela imposição de tarifas sobre o aço e o alumínio e sobre as importações de automóveis, precederam ao tarifaço do dia 2 de abril, o Dia da Libertação, segundo Trump.
As tarifas universais anunciadas são variáveis, oscilando de 10% a 49%. Elas entraram em vigor imediatamente e foram acrescidas, dependendo dos produtos e dos países, das tarifas já em vigor para Canadá, México e China, além das aplicadas ao aço, alumínio e a importação de autos (25%). Os países agora terão de negociar a redução dessas tarifas variáveis com compensações para os EUA. Vietnã e Israel, por exemplo, resolveram, antes do anúncio, eliminar as tarifas para os produtos norte-americanos.
A região mais atingida foi a Ásia (China, com 34%, Vietnã, com 46%, Tailândia, 31%, Indonésia, 32%, Malásia, 24%, Taiwan, 32%). O continente menos afetado foi a América Latina, com 10%, à exceção do México, que foi penalizado com múltiplas tarifas, e Venezuela (15%). A Rússia e a Coreia do Norte, zero de tarifa.
O Brasil ficou no nível mais baixo das tarifas, com 10% sobre a exportação de produtos brasileiros. Isso pode ser explicado pelo fato de o País ter um déficit (não superávit) na balança comercial com os EUA, com poucos produtos com tarifas mais elevadas (etanol 18% contra 2% dos EUA) e pela não consideração das barreiras não tarifárias, identificadas no documento “Barreiras contra o Comércio Exterior”, produzido pelo Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR, na sigla em inglês). O documento, além de constatar a existência de tarifas mais elevadas do que as dos EUA sobre etanol, automóveis, autopeças, tecnologia de informação e eletrônicos, produtos químicos, plásticos, maquinário industrial, aço e têxteis e vestuário, menciona uma série de barreiras não tarifárias, como Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), impostos sobre serviços audiovisuais, remessas relacionadas com obras audiovisuais, restrições sobre equipamentos de terraplenagem, importação de bens de consumo usados, regulamentações sobre biocombustíveis, barreiras sanitárias e fitossanitárias, para compras governamentais, comércio digital e propriedade intelectual.
México, Canadá, União Europeia já deixaram saber que vão retaliar de forma proporcional. A China retaliou com tarifas no mesmo nível, 34% sobre os produtos norte-americanos. Trump disse claramente que, se isso de fato acontecer, vai treplicar e impor tarifas ainda mais elevadas a esses países. Estará, assim, declarada uma dura guerra comercial global com impactos imprevisíveis. Com base na experiência passada, em especial nos idos de 1930 com a lei Smooth-Hawley, nos EUA, pode-se antever a possibilidade de uma recessão global, com inflação, desemprego e crise cambial, ao contrário dos objetivos enunciados por Trump.
Em relação à China, o país com o maior superávit no comércio bilateral com os EUA, Trump tomou uma série de medidas restritivas, além das tarifas, como a imposição, a partir de novembro, de taxas pesadas aos navios chineses que buscam os portos norte-americanos com bens de qualquer outro país, para reduzir o domínio chinês no transporte marítimo. Caso efetivamente implementada, essa taxação terá um efeito dramático sobre o comércio global pelo aumento no preço do frete e no custo final dos produtos transportados para o mercado norte-americano.
No tocante aos produtos de interesse da ABIFINA, como, entre outros, farmoquímico, farmacêutico, de defensivos agrícolas, biotecnológico, o mais visado pelos EUA no tarifaço foi o farmacêutico, com tarifas que variarão de acordo com o país. No anúncio das medidas restritivas, nesse seguimento, o Brasil não foi singularizado, mas os produtos de exportação nesses segmentos receberão 10% de tarifa acima das tarifas eventualmente já cobradas. Uma das preocupações do setor será a evolução do mercado no tocante aos insumos utilizados pela indústria.
No meio dessa turbulência no sistema de comércio internacional, o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia (UE) adquire uma importância significativa. A negociação está finalizada, mas o documento final ainda não foi assinado. As transformações na economia e na ordem global tornam o acordo entre o Mercosul e a UE ainda mais estratégico para ambos os blocos. Os dois lados perceberam que esse acordo, no contexto atual, representa mais do que interesses comerciais e passa a ser importante também pelas implicações geopolíticas globais. É possível, assim, que a UE tome a decisão para sua assinatura e ratificação no segundo semestre quando o Brasil assumirá a presidência do Mercosul.
Para o Brasil, a entrada em vigor do acordo reforça a projeção externa do País e fortalece a política de independência e equidistância em uma das questões geopolíticas que dividem hoje o mundo: as tensões entre os EUA e a China. No caso da UE, amplia as áreas de contato com uma região líder em segurança alimentar, energia limpa e que passou a priorizar o meio ambiente. É importante lembrar que não se trata apenas de um acordo comercial, mas um ambicioso acordo de Associação Estratégica com a União Europeia, que inclui três vertentes: a política, a de cooperação e a do livre comércio. Em seguida, deverá ser assinado o acordo com a EFTA, a Área de Livre Comércio na Europa, integrado por Suíça, Noruega, Finlândia e Lichtenstein.
Se, do ponto de vista geopolítico o acordo é importante por permitir que o governo brasileiro mantenha sua posição de equidistância nas tensões entre os EUA e a China, para o setor privado nacional será um grande desafio porque, no primeiro ano da entrada em vigência do acordo, pouco mais de 90% dos produtos dos diferentes setores do mercado europeu terão tarifa zero. Terão as empresas e os produtos brasileiros competitividade para ter acesso ao mercado dos 27 países da EU?
Finalmente, o governo brasileiro vai ter de compatibilizar as regras incluídas na lei de defesa comercial, recentemente aprovada pelo Congresso Nacional, que prevê tarifas reciprocas, com as limitações impostas pela Tarifa Externa Comum do Mercosul.
Será importante para o setor privado se organizar para, junto com o governo, acelerar as políticas e reformas para reduzir o Custo Brasil e aumentar a competitividade da indústria, uma das vulnerabilidades do setor.
