A rápida evolução da biotecnologia e da engenharia genética tem possibilitado o desenvolvimento de terapias avançadas. Assim é chamado um conjunto de recursos com grande potencial de combater doenças raras e complexas como câncer, diabetes, doenças cardiovasculares, distrofia muscular, hemofilia, síndrome de Alzheimer, entre outras. Essas terapias representam a grande promessa da medicina regenerativa e, em todo o mundo, pesquisadores se debruçam sobre os desafios de alto custo, baixa escalabilidade, complexidade regulatória e pouca infraestrutura especializada para destravar seu desenvolvimento e ampliar seu alcance.
“O Brasil é um dos poucos países no mundo com potencial para se apropriar dessa revolução na medicina para beneficiar a população de forma gratuita”
explica Mauricio Zuma, diretor do laboratório público Bio-Manguinhos.
Explica Mauricio Zuma, diretor do laboratório público Bio-Manguinhos.
Buscando formar uma base tecnológica e produtiva nacional, o Governo aumenta investimentos e começa a regular essa nova área, de maneira a oferecer tratamentos personalizados e mais eficazes.
“Um dos maiores desafios é a acessibilidade. Devido ao alto custo dessas novas tecnologias, a Fiocruz encomendou um estudo para projetar as despesas dos próximos cinco anos, o qual revelou que o preço de produtos relacionados a terapias gênicas e de CAR-T poderá variar entre R$ 19 bilhões e R$ 72 bilhões. O valor compromete de forma agressiva o orçamento farmacêutico anual do SUS [Sistema Único de Saúde]”, destaca Zuma.
As terapias avançadas são a fronteira tecnológica na medicina atual. Elas envolvem a manipulação de células, genes ou tecidos para tratar ou prevenir doenças. De acordo com a regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), elas podem ser classificadas como produtos de terapia celular avançada, produtos de terapia gênica e produtos de engenharia tecidual.
Cada uma se refere a diferentes técnicas. Na terapia celular, é possível criar ou regenerar tecidos com a aplicação de células-tronco, ou ainda combater enfermidades modificando células do sistema imunológico. As células são coletadas do paciente, modificadas em laboratório e reintroduzidas no corpo para realizar uma função específica, como reparar tecidos danificados ou atacar células cancerígenas.
Já a terapia gênica pode ser feita pela introdução de genes saudáveis em células para corrigir problemas genéticos ou pela edição genética diretamente no DNA. O gene saudável é inserido em um vetor, como um vírus, que é então introduzido nas células do paciente. Assim, o gene saudável substitui o gene com deficiência, eliminando a causa da doença.
As terapias avançadas incluem ainda a engenharia de tecidos, que cria tecidos ou órgãos artificiais para transplante usando células e biomateriais. Mencionada por Zuma, a terapia CAR-T pode ser considerada um tipo de terapia gênica, mas com objetivo específico. Nela, as células T do sistema imunológico são modificadas para que reconheçam e destruam células cancerígenas específicas.
Políticas públicas
São diversos os desafios relacionados às novas terapias. Sua produção é altamente personalizada; os controles são rigorosos para garantir segurança e eficácia, com margens mínimas para erros; os produtos têm estabilidade delicada, pois são sensíveis a variações de temperatura e condições ambientais, com vida útil curta. A escalabilidade é difícil, dado o caráter artesanal da produção: nem sempre o aumento de escala reduz proporcionalmente os custos devido à personalização e à complexidade do processo. Quanto à logística, requerem armazenamento e transporte sob temperatura controlada. A entrega também é, muitas vezes, personalizada; e nem todos os locais possuem a infraestrutura adequada para manipular e armazenar os produtos.
Esses obstáculos tornam essencial o investimento em tecnologia, treinamento especializado e desenvolvimento de políticas públicas. A Nova Indústria Brasil (NIB) incluiu as terapias avançadas como uma das áreas prioritárias da Missão 2, que busca consolidar um complexo econômico-industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde.
A reativação do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECEIS), em abril de 2023, contribui para que o Governo elabore e execute um programa voltado para a
criação de competências de produção local, reduzindo a dependência das importações e freando o aumento do déficit da balança comercial da saúde.
Dentro desse cenário, as terapias avançadas entram no escopo do pacote de R$ 42 bilhões para a saúde até 2026 anunciado pelo Governo Federal no ano passado. O valor engloba R$ 9 bilhões do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), R$ 6 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e R$ 4 bilhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). A iniciativa privada deve entrar com aporte de R$ 23 bilhões.
Construção de competências tecnológicas
Os investimentos deverão potencializar a infraestrutura ainda incipiente que o Brasil tem hoje. Algumas instituições possuem as bases científico-tecnológicas e de produção necessárias para disponibilizar terapias avançadas, especialmente as de natureza gênica e celular. Esse é o caso da Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto, do Instituto de Tecnologia do Paraná e da Fundação Pró-Sangue. Já a Fiocruz, o Instituto Butantan e o Instituto Nacional do Câncer (Inca) são parceiros na produção dessas terapias e na condução de ensaios clínicos.
Além disso, a Fiocruz lançou, em março, a Estratégia Fiocruz para Terapias Avançadas, com o objetivo de beneficiar pacientes com doenças oncológicas, infecciosas e genéticas atendidos pelo SUS. Como parte da Estratégia e em parceria com o Ministério da Saúde, a Fundação assinou um acordo de colaboração com a organização norte-americana sem fins lucrativos Caring Cross, que prevê a transferência de tecnologia relacionada à produção de células CAR-T e vetores lentivirais para Bio-Manguinhos/Fiocruz. O acordo tem o valor total de R$ 330 milhões.
A Fiocruz será a detentora dessa tecnologia no Brasil e na América Latina. A produção local vai reduzir significativamente os custos e ampliar o acesso da população às terapias genéticas, segundo Zuma. O custo para o SUS com os tratamentos pode ficar em apenas 10% do valor hoje praticado na Europa e nos EUA. Ou seja, cada dose custaria cerca de US$ 35 mil (R$ 173 mil) em vez do preço original de US$ 350 mil (cerca de R$ 2 milhões).
“A princípio o foco serão as terapias com células CAR-T para leucemia e linfoma, contando com versões aprimoradas de produtos que têm sido usados com sucesso no tratamento de pacientes em diferentes países. A colaboração com Caring Cross prevê também o desenvolvimento de um produto terapêutico para o HIV, atualmente em fase de ensaios clínicos nos EUA, concebido para o tratamento e potencial cura da infecção pelo vírus. Há ainda a expectativa do desenvolvimento de novos projetos com diferentes parceiros para outras patologias”, revela o diretor de Bio-Manguinhos.
O Hospital Israelita Einstein, em São Paulo, é outra instituição que realiza pesquisas de ponta com diversos produtos de terapias avançadas em desenvolvimento. Ele foi a primeira organização no Brasil a aprovar, na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), um ensaio clínico com células CAR-T. Além disso, obteve a principal acreditação global na área, fornecida pela Foundation for the Accreditation of Cellular Therapy (Fact), sendo a primeira instituição da América Latina a conquistar esse feito.
Parcerias e inovação aberta
Mauricio Zuma avalia ser necessário ampliar a participação de parceiros públicos ou privados na estratégia brasileira para a construção de uma rede forte e diversificada. “Estamos falando de uma abordagem estratégica que inclua investimentos em infraestrutura, estímulo a pesquisa e desenvolvimento tecnológico, implementação de programas de formação na área, além do estabelecimento de parcerias locais para produção”.
Seguindo essa linha, a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) criou os Centros de Competência para viabilizar grandes tendências tecnológicas na indústria nacional. São nove unidades financiadas pelo Ministério da Saúde (MS), Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e por algumas Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (FAPs). Seu papel é gerar novos conhecimentos e competências tecnológicas em áreas específicas por meio de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I), no intuito de disponibilizá-los para o setor produtivo.
O Hospital Israelita Albert Einstein é a única instituição credenciada para abrigar um Centro de Competência em Terapias Avançadas (CCTA). A unidade atua em conjunto com as empresas do setor biofarmacêutico e da saúde por meio de um programa de associação tecnológica, no qual as empresas pagam uma anuidade e passam a ter uma série de benefícios ofertados pelo Centro em um ambiente de inovação aberta. Estão incluídos: acesso aos profissionais do CCTA para trocas de experiências e consultorias; uso da infraestrutura de pesquisa, desenvolvimento e inovação; vagas em cursos e eventos; participação no Conselho Consultivo e possibilidade de orientar a rota tecnológica do Centro a partir de suas demandas e prioridades.
Os associados também podem ter acesso prioritário aos resultados dos projetos de PD&I do Centro, com preferência para negociar o licenciamento dessas tecnologias para explorá-las comercialmente. Algumas categorias de associação preveem ainda a execução de projetos conjuntos com recursos não-reembolsáveis da Embrapii.
“Essa é a forma como o CCTA interage com o setor produtivo da saúde, criando um ambiente de inovação aberta”,
explica Augusto Barbosa Júnior, gerente-executivo do CCTA.
Além disso, o CCTA possui uma frente voltada para a atração e criação de empresas nascentes de base tecnológica (startups) nacionais na área de terapias avançadas.
Na área de capacitação, o CCTA tem foco em pesquisadores e profissionais dos setores biofarmacêutico, acadêmico e de startups em early-stage (estágios iniciais). Os cursos abordam temas como empreendedorismo científico, novidades na ciência, regulação, acesso e linha de cuidado em saúde. Há também a oferta de bolsas de estudo e de pesquisa para jovens pesquisadores que querem atuar nos projetos de PD&I do Centro de Competência.
Regulação sanitária e política de preços
A publicação da Lei nº 14.874/2024, que regulamenta a realização de pesquisas clínicas com seres humanos, representou um avanço na regulação de produtos de terapias avançadas no Brasil. A legislação harmonizou o conceito dessas terapias com os padrões internacionais, o que facilita as pesquisas e seu controle. Também estabeleceu prazos mais curtos para a Anvisa analisar os pedidos de realização de pesquisa clínica. Com isso, o órgão já está reestruturando seus processos para cumprir o disposto na lei.
“Além disso, a Anvisa está finalizando uma nova proposta de regulamentação técnica específica para ensaios clínicos com produtos de terapias avançadas. Essa proposta se baseia nas atualizações recentemente realizadas para os ensaios clínicos com medicamentos e inclui normas que abordam as particularidades dos medicamentos de terapia avançada”,
detalha Fabrício Carneiro de Oliveira, gerente-geral da área responsável por produtos de terapias avançadas na Anvisa.
O uso do modelo de medicamento está em consonância com a prática internacional. Segundo o especialista, uma vez que as legislações dos países tendem a ser genéricas, autoridades sanitárias como a norte-americana FDA e a europeia EMA complementam as orientações com a produção de guias mais detalhados, o que confere a flexibilidade necessária para se avaliarem projetos de inovação.
Oliveira conta que a Anvisa estima publicar a nova norma no primeiro trimestre de 2025, consolidando um ambiente regulatório mais seguro e eficiente para as pesquisas clínicas com produtos de terapias avançadas no Brasil. “Antes da implementação, o texto será submetido a uma consulta dirigida, permitindo que o setor especializado e outras partes interessadas ofereçam contribuições e sugestões para aperfeiçoamento”, detalha.
A agência conta com a Rede Nacional de Especialistas em Terapias Avançadas (Reneta), formada por um grupo de especialistas ad hoc. A Reneta oferece auxílio técnico na avaliação dos ensaios clínicos e de itens de qualidade e produção. “Esse grupo ampliou a capacidade de resposta técnica da Anvisa, fortalecendo o acompanhamento e o desenvolvimento das regulamentações para terapias avançadas”, diz Oliveira. Outro projeto é reformular a Câmara Técnica de Assessoramento em Terapias Avançadas (CAT), que foi criada em 2016 e contribuiu para o desenvolvimento do marco regulatório. “A previsão é que a CAT seja republicada com novos integrantes em 2025, reforçando sua capacidade de assessorar a Anvisa na avaliação e aprovação de produtos inovadores, promovendo um ambiente regulatório ainda mais robusto”.
A Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), unidade da Anvisa, está revisando as regras de precificação para adequá-las às terapias avançadas, que não existiam quando a regulamentação inicial foi criada. “Em geral, os produtos de terapias avançadas são registrados na Anvisa sob as condições de monitoramento a longo prazo e estão sujeitos a obrigações que envolvem estudos e atividades de monitoramento para obtenção de evidências adicionais de eficácia e segurança. Nesses casos, a evidência clínica disponível no momento do registro, muitas vezes, é limitada, não sendo robusta o suficiente para viabilizar a plena aplicação de todos os critérios previstos na Resolução CMED nº 2/2004”, esclarece Daniela Marreco Cerqueira, secretária-executiva da CMED.
Por serem tão especializadas, as terapias avançadas têm diversas peculiaridades que geram dificuldades como definir os ganhos terapêuticos, saber a durabilidade dos efeitos do tratamento, identificar um possível medicamento comparador, entre outras. Ou seja, há um grau de imprevisibilidade que torna a precificação desafiadora.
“Existem outras particularidades relacionadas a essa categoria de medicamentos, que podem dificultar a aplicação dos critérios de precificação hoje vigentes, como a logística de transporte, armazenamento e administração, a individualização da terapia, a dificuldade para realizar cálculo de proporcionalidade entre diferentes concentrações, a amostra populacional geralmente reduzida durante os estudos clínicos e o uso de desfechos substitutos”,
diz Daniela Marreco Cerqueira, secretária-executiva da CMED.
Considerando essas condições, até agora a CMED classificou os produtos de terapias avançadas como “casos omissos” e, com isso, os critérios de precificação foram definidos pelo seu Comitê Técnico Executivo, de acordo com a Resolução CMED nº 02/2004. O planejamento estratégico desse Comitê prevê a atualização do arcabouço normativo da CMED, incluindo a elaboração de uma metodologia para precificar as terapias avançadas, “buscando equilibrar a acessibilidade dos pacientes e a sustentabilidade dos sistemas de saúde”, pontua Cerqueira.
“Tais propostas normativas deverão seguir os ritos das Boas Práticas Regulatórias, possibilitando a ampla participação da sociedade, a fim de que a regulação econômica do mercado de medicamentos continue a promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta de medicamentos e a competitividade do setor”, defende.
Fomento à inovação
Mauricio Zuma, da Bio-Manguinhos, destaca que a evolução das terapias avançadas no Brasil depende não só do marco regulatório, embora este seja um grande avanço. O aumento dos investimentos em inovação junto com mecanismos como as parcerias público-privadas e as encomendas tecnológicas incentivam o segmento de maneira sustentável.
“Devemos construir um cenário favorável para o desenvolvimento de capacidades locais de produção de forma contínua. Será imprescindível o compromisso das principais instituições de saúde do País para escalar tamanho desafio”, diz Zuma, referindo-se ao alto grau de complexidade que demanda o desenvolvimento das terapias avançadas.
Como foi mostrado, laboratórios públicos oficiais e instituições científicas e tecnológicas têm feito um importante trabalho de pesquisa e de fornecimento de insumos ou produtos finais. O Governo Federal e as agências de fomento voltam a sua atenção para o tema.
Este ano, a Finep promoveu o edital Mais Inovação Brasil Saúde – ICTs, que destina recursos não reembolsáveis para pesquisa, desenvolvimento e inovação e cuja Linha 2 é voltada para terapias avançadas (desenvolvimento de plataformas tecnológicas que gerem produtos estratégicos para o SUS).
A Fiocruz é mais uma instituição a fazer uma chamada pública, desta vez para apoiar projetos de pesquisa da própria instituição que desenvolvam produtos e metodologias ou que produzam conhecimentos em saúde coletiva sobre terapias avançadas e seus impactos para o SUS.
Outra linha de ação é operada pelo CCTA, em parceria com a Eretz.bio (ecossistema de inovação e startups do Hospital Israelita Albert Einstein): o Programa de Criação e Atração de Startups, que seleciona desenvolvedores nacionais de produtos de terapias avançadas para passarem por processos de pré-aceleração e aceleração. Na etapa de pré-aceleração, o selecionado recebe mentorias e workshops em temas relevantes sobre inovação, negócios, regulação e outros para modelar o seu plano de negócios e planejar o desenvolvimento da sua tecnologia. Na etapa de aceleração, a startup é incubada no Einstein, além de receber incentivos financeiros que incluem uma bolsa de residência em inovação e recursos não-reembolsáveis.
Fabrício Carneiro de Oliveira, da Anvisa, avalia que o Brasil tem se consolidado como um ambiente promissor para investimentos em pesquisas clínicas de terapias avançadas. A Anvisa já avaliou 60 ensaios clínicos na área, o que mostra a atratividade do País. Esse sucesso foi reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que convidou a agência para integrar o grupo de trabalho responsável por discutir diretrizes internacionais sobre o tema.
“O modelo regulatório adotado pela Anvisa, que permite uma abordagem caso a caso e promove interações pré-submissão com os desenvolvedores, tem sido fundamental para esse êxito. Essa flexibilidade e abertura ao diálogo facilitam o desenvolvimento e a condução de pesquisas clínicas, tornando o Brasil um destino atrativo para investimentos em terapia avançada”, comemora Oliveira, da Anvisa.