REVISTA FACTO
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Set-Dez 2024 • ANO XVIII • ISSN 2623-1177
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Inteligência artificial na inovação em saúde: desafios para o Brasil
//Artigo

Inteligência artificial na inovação em saúde: desafios para o Brasil

O processo de geração de medicamentos e vacinas envolve esforços para redução de custos, aumento da eficiência dos processos e redução das falhas. A inteligência artificial tem o potencial de transformar diversas etapas do desenvolvimento farmacêutico – da descoberta aos testes pré-clínicos e clínicos, e à produção. Essa indústria sempre fez uso de dados e ferramentas para os seus avanços, porém novos caminhos se abrem com o uso combinado do poder computacional mais elevado, das estratégias baseadas em grandes volumes de dados e da perícia de cientistas focados em desenvolvimento de medicamentos. Dessa forma, são estabelecidas conexões inéditas que não seriam possíveis com abordagens tradicionais, e essas conexões, por sua vez, trazem consequências para os processos decisórios das organizações.

Modelos como aprendizado de máquina (machine learning) e outros abrem inúmeras oportunidades que estão sendo testadas: (a) treinamento para previsão de eficácia e segurança dos medicamentos; (b) mineração, processamento e análise de grande volume de dados em busca de padrões e insights no ciclo de desenvolvimento do produto; (c) exame acelerado e automatizado de dados de experimentos prévios potencialmente úteis para novas questões; (d) identificação e validação de novos alvos e design de soluções terapêuticas correspondentes; (e) previsão de estruturas de proteínas; e (f) aperfeiçoamento dos dossiês regulatórios, do controle de qualidade e do conjunto de documentações ligadas à vida do produto, inclusive eventuais atualizações de bulas. Essas aplicações são apenas alguns exemplos da evolução atual do campo, que poderão ter grande impacto na gestão da pesquisa, pois ajudarão as organizações a aprimorar a escolha de opções promissoras e descartar mais rapidamente o que não se aplica.

As oportunidades são muitas, e provavelmente veremos muito mais progresso nos próximos anos. Nesse cenário, cabe a pergunta: como o Brasil pode acompanhar e participar dessa evolução tecnológica e disruptiva? Alguns grupos já estão triando fármacos para doenças infecciosas. É o caso dos avanços in silico, que permitem, num exemplo real, identificar novos tratamentos contra a malária com método de fármacos reposicionados, em uma investigação de cientistas e pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), de São Paulo (USP) e Federal de Goiás (UFG). As possibilidades são diversas, e aplicáveis a doenças crônicas, negligenciadas e desafios emergentes, inclusive preparação para pandemias.

O fortalecimento dos investimentos públicos e privados é, sem dúvida, um dos instrumentos principais para que o País adquira conhecimento e faça frente à competitividade global, extraindo máximos benefícios da inteligência artificial responsável. O Brasil ainda enfrenta desafios estruturais para alavancar a inovação em saúde, mas tem conduzido iniciativas robustas com foco na transformação digital. Em 2023, o Ministério da Saúde lançou ajuda de custo para melhorias da saúde pública por meio da inteligência artificial. Em 2024, o governo federal anunciou o Plano

Brasileiro de Inteligência Artificial com investimento projetado de R$ 23 bilhões. Na área da saúde, o Plano propõe ações para o Sistema Único de Saúde (SUS): prontuário falado, suporte a decisões de compras de medicamentos, otimização dos diagnósticos, saúde bucal, detecção de anomalias nos procedimentos hospitalares e ambulatoriais, tratamento de câncer, Projeto Idoso Bem Cuidado, entre outras. Além desses, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) desempenham papel central nos investimentos para esse domínio. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) inaugurou o Edital Grand Challenges Inteligência Artificial, buscando fomentar soluções locais.

Em nível estadual, destaca-se a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com chamadas recentes para a criação de dois centros de pesquisa, em Inteligência Artificial em Soluções para Atenção Direta à Saúde, e Ciência de Dados para Pesquisa e Gestão em Saúde. A Fapesp também atua em ações coordenadas com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Iniciativa semelhante tomou a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) por meio do edital para Redes Temáticas de Inteligência Artificial, no qual a saúde era um dos temas prioritários.

Uma das medidas urgentes em políticas públicas é a qualificação e retenção de profissionais, além de treinamentos e aquisição de habilidades. Esse objetivo consta da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial, de 2021, documento que reúne um conjunto de eixos verticais e transversais e ações estratégicas para o setor, norteando a direção do Estado brasileiro. Organizar redes de cooperação brasileiras, parcerias internacionais e alianças público-privadas também são medidas que impulsionarão os desenvolvimentos no campo em tela, pois irão intensificar as trocas de conhecimento e a identificação de lacunas de pesquisa, além de evitar duplicações de esforços.

Elementos cruciais nessa equação são as questões regulatórias e a gestão da propriedade intelectual. O quadro regulatório está se movendo rápido para acompanhar as mudanças técnicas. Um exemplo é a publicação do plano de trabalho da European Medicines Agency, que foca em quatro dimensões: (a) orientação, política e suporte ao produto; (b) ferramentas e tecnologia de inteligência artificial; (c) colaboração e treinamento; e (d) experimentação. Em paralelo, o tratamento da propriedade intelectual exigirá adaptação das instituições para definir estratégias adequadas de proteção e também de manejo dos dados, além de supervisão de contratos com eventuais provedores de inteligência artificial, prevenindo disputas e violações e garantindo condições de acesso. A experiência do INPI no monitoramento de tendências em inteligência artificial, por meio da Coordenação de Informação Tecnológica, tem sido exemplar, gerando valiosos subsídios para os processos decisórios em inovação.

O uso de modelos de inteligência artificial para a saúde já integra as prioridades das políticas públicas brasileiras, em particular na Missão 2 da Nova Indústria Brasil. Esse posicionamento de nível elevado reconhece o potencial transformador da inteligência artificial para expandir as capacidades do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, em cenário marcado pela consolidação de novos padrões industriais e complexas disputas comerciais internacionais. O direcionamento estratégico de investimentos e estabelecimento de prioridades é crucial para alavancar projetos inovadores de medicamentos e vacinas. Nesse sentido, é fundamental adotar abordagens que não apenas promovam a excelência tecnológica, mas também assegurem condições de acesso e equidade na incorporação de novos produtos ao SUS.

Claudia Inês Chamas
Claudia Inês Chamas
Pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz e professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em associação com a Fiocruz.
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