REVISTA FACTO
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Jun-Ago 2024 • ANO XVIII • ISSN 2623-1177
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Doenças negligenciadas: ações conjuntas por um futuro melhor
//Setorial Saúde

Doenças negligenciadas: ações conjuntas por um futuro melhor

Entre as diversas consequências indesejáveis da desigualdade econômica, uma é especialmente cruel:  a desproporcional vulnerabilidade de contingentes menos favorecidos da população a determinadas enfermidades, como tuberculose, esquistossomose e hanseníase. Conhecidas como “doenças negligenciadas”, não contam com a quantidade de tratamentos e nem com as pesquisas de ponta associadas a problemas cardiovasculares ou câncer. No entanto, o incentivo à busca de soluções para esses males não representa apenas uma tentativa de melhorar as condições de vida dos acometidos por essas doenças, mas também uma oportunidade de estimular o desenvolvimento do complexo de saúde nacional.

O recente lançamento do “Programa para Populações e Doenças Negligenciadas”, pelo Ministério da Saúde, colocou o tema em foco, ganhando destaque nas discussões de saúde pública. Parte integrante da Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), o objetivo do programa consiste em estimular a produção nacional de insumos, medicamentos e tecnologias, fortalecendo a capacidade de resposta do Sistema Único de Saúde (SUS) e promovendo a equidade no acesso à saúde.

Monica Felts Soares, diretora do Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde do Ministério da Saúde (Decit/SECTICS/MS), explica que, assim que o novo Governo Federal assumiu, com a nomeação da ministra Nísia Trindade para a pasta da Saúde e a nomeação do secretário Carlos Gadelha para a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde do Ministério da Saúde, houve uma grande ação de reestruturação da estratégia nacional de desenvolvimento do CEIS. “Foi necessário reconstruir setores, equipes, bases normativas. Mas não apenas recuperamos o que a gestão passada havia desmontado, inovamos e criamos novas políticas, programas e ações estruturantes. Fomos além. Dentre os programas estruturantes lançados temos o Programa de Produção e Desenvolvimento Tecnológico para Populações e Doenças Negligenciadas (PPDN) do Departamento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde e de Inovação para o SUS da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (DECEIIS/SCTIE/MS), voltado às doenças negligenciadas, englobando o estímulo à criação de tecnologia, prevenção e tratamento, por meio de parcerias público-privadas, visando a equidade”.

Ela destaca ainda que a secretaria atua de forma integrada com seus cinco departamentos e que todos estão envolvidos com a temática das doenças negligenciadas, também conhecidas como Doenças Socialmente Determinadas. Com esse foco, o DECIT o DECIT/SECTICS/MS lançou recentemente uma Chamada Pública para financiar pesquisas nesta temática, que visam contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico voltado ao SUS. A chamada foi lançada em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

O diretor para a América Latina da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), Sergio Sosa-Estani, classifica como positiva a iniciativa do governo e ressalta que o programa é fundamentado em um modelo de desenvolvimento de medicamentos semelhante ao que o próprio DNDi adota, que envolve diferentes setores da sociedade. Um grande obstáculo, segundo ele, é o financiamento das pesquisas, especialmente em suas fases iniciais, pois os investimentos são altos e de risco, e os resultados só aparecem a médio e longo prazos. “Na DNDi nosso maior desafio é fazer funcionar um modelo de desenvolvimento de medicamentos, diferente daquele no qual a indústria farmacêutica opera. Enquanto em um modelo clássico todas as fases da elaboração de um medicamento são realizadas dentro de uma única empresa, o que facilita o desenrolar de todo o trabalho, nós articulamos uma grande rede de cooperação envolvendo institutos de pesquisa, órgãos governamentais, universidades e a própria indústria farmacêutica privada e pública”.

De acordo com Sosa-Estani, esse ambiente de cooperação permitiria, por exemplo, que as indústrias brasileiras expandissem sua expertise hoje concentrada na inovação incremental, voltada para a produção de genéricos, e aumentassem a atuação com inovação radical.  Além da pesquisa e desenvolvimento, existe ainda a necessidade de que a iniciativa privada atue também na fase de avaliações clínicas e no acesso aos medicamentos, colaborando com cadeias de distribuição para atender as áreas mais remotas.

José Lamartine Soares Sobrinho, professor da Universidade Federal de Pernambuco, coordenador-geral e cientista do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Complexo Econômico Industrial de Saúde (INCT iCEIS), acredita que a colaboração entre universidades, institutos de pesquisa e o setor industrial é fundamental. Para ele, a interação entre esses três setores pode ser exemplificada pelo modelo da “Quíntupla Hélice”, que inclui também a sociedade e o meio ambiente. “A universidade desempenha o papel de conduzir pesquisas básicas, gerar conhecimento e formar recursos humanos altamente qualificados. Por outro lado, a indústria possui a capacidade de transformar essas descobertas em produtos comercializáveis. Empresas farmacêuticas e biotecnológicas têm os recursos financeiros e a infraestrutura necessária para conduzir todas as etapas necessárias para a chegada do produto ao mercado. Já o governo desempenha um papel regulador e facilitador, além de implementar programas de saúde pública que garantam que as novas tecnologias e tratamentos cheguem às populações que mais precisam”.

O mercado da saúde pode atuar como um relevante fator de desenvolvimento econômico. E é justamente essa a meta do atual governo: utilizar o poder de compra do Estado como vetor para melhorar as condições de vida e os empregos das pessoas. “A produção nacional de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), medicamentos, equipamentos e demais tecnologias de saúde é uma oportunidade de desenvolver o Brasil. Investir no setor da saúde significa não apenas gerar postos de trabalho qualificados e renda, mas proteger a soberania do País, estimulando a indústria nacional, garantindo acesso à saude e a sustentabilidade do nosso Sistema Único de Saúde”, pondera Monica Felts.

Mas isso só é possível com a implantação de uma estratégia nacional para o desenvolvimento do CEIS. Monica Felts afirma que que os esforços têm sido no sentido de direcionar e correlacionar os investimentos em Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) na área de saúde com as políticas do CEIS.

Monica Felts Soares

“A estratégia de desenvolvimento do CEIS é fundamental para que, quando um determinado produto finalizar seu ciclo de desenvolvimento, ele possa ser incorporado ao SUS com um preço sustentável”.

E como a indústria avalia a questão? Marcelo Mansur, diretor-presidente da Nortec Química, acredita ser fundamental ter a maior clareza possível na demanda de maneira a viabilizar o desenvolvimento. “Em segundo plano, mas ainda relevante, é o fato de que muitos desses produtos são antigos e têm pouca disponibilidade de matérias-primas, portanto devem requisitar uma busca junto à cadeia de suprimentos. Isso exige tempo, e em alguns casos, custos mais elevados para adequá-los aos novos padrões regulatórios que existem hoje”.

Ainda para Mansur, é preciso criar ações para acessar as populações vulneráveis no Brasil, formar alianças internacionais e conciliar projetos para doenças negligenciadas com outros voltados para doenças mais comuns. Ele lembra ainda da importância dos  mecanismos de subvenção para a pesquisa e a relação  universidade-empresa para ajudar no custeio do homem-hora demandado no desenvolvimento dos produtos, especialmente na síntese de bancada.

marcelo mansur

“Com tais soluções, é possível viabilizar cada vez mais a produção dos IFAs para doenças negligenciadas no Brasil. Com certeza a farmoquímica brasileira entende ser seu papel moral e estratégico contribuir neste processo”.

Para enfrentar os desafios do tratamento dessas doenças, inovação e tecnologia desempenham um papel fundamental. “O secretário Carlos Gadelha foi muito enfático: exige o melhor possível para as populações afetadas por essas enfermidades. Quer tratamento de ponta, com inovações disruptivas. Graças à escala de aquisição do SUS, é possível associar alta tecnologia a preços justos. Não queremos apenas reposicionamento de produtos, buscamos novas tecnologias, novos procedimentos, novas abordagens. Queremos a Ciência e Tecnologia a favor da vida, a favor da saúde da população brasileira”, afirma Monica Felts.

Nesse caso, o papel da academia é primordial na geração de inovação e tecnologia. A pesquisa básica e aplicada realizada nas universidades e institutos de pesquisa é o fundamento para a melhor compreensão dessas doenças. Isso inclui o estudo de seus mecanismos biológicos, epidemiologia e fatores de risco, que são essenciais para o desenvolvimento de estratégias eficazes de prevenção e tratamento. Além disso, as universidades estão na vanguarda da criação de novos medicamentos, sendo ponto de partida para os avanços em biotecnologia e nanotecnologia.

Para o professor da Universidade Federal de Pernambuco, José Sobrinho, a capacidade de formação de recursos humanos é igualmente importante, com as universidades sendo responsáveis por treinar a próxima geração de pesquisadores e profissionais especializados. “Paralelamente, o desenvolvimento de alternativas terapêuticas para doenças negligenciadas tem sido uma prioridade em diversos centros de pesquisa e instituições. Parcerias estabelecidas entre universidade-indústria viabilizaram medicamentos que são atualmente comercializados, proporcionando uma nova esperança para milhares de pacientes que sofrem com essas condições. Tais projetos nascem, muitas vezes, de projeto executados pelas Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs) financiados pelo próprio governo, em chamadas públicas de órgãos de fomento”.

O diretor-presidente da Nortec considera que um desafio destes produtos é a necessidade de oferecê-los a baixo custo quando eles frequentemente são de baixa demanda, de tecnologias complexas e de baixa disponibilidade de matéria-prima. “A inovação deve auxiliar na busca de novos fornecedores e no desenvolvimento de rotas alternativas de síntese, que podem ser mais eficientes.

Entre as áreas prioritárias de pesquisa que precisam de mais atenção e investimento estão as tecnologias de diagnóstico rápido e preciso por meio da biologia molecular, essencial para identificar essas enfermidades em estágios iniciais, o que pode melhorar significativamente as taxas de tratamento e recuperação. “Ferramentas de diagnóstico avançadas permitem intervenções mais rápidas e eficazes, reduzindo a propagação e o impacto. Outra área prioritária é a de vacinas e imunoterapias. As vacinas têm o potencial de prevenir a ocorrência e reduzir a morbidade e mortalidade associadas à essas doenças”, comenta José Lamartine Soares Sobrinho.

Além disso, segundo ele, são uma ferramenta poderosa para reduzir as disparidades de saúde entre diferentes populações, podendo gerar um impacto econômico positivo. A prevenção por meio da vacinação reduz os custos associados ao tratamento médico. Já as terapias utilizando medicamentos biológicos podem oferecer novas formas de tratamento para aqueles já afetados de forma duradoura e, com isso, causar menos impacto a longo prazo e maior adesão e efetividade.

O diretor do DNDi afirma que um dos principais focos continuará em doenças parasitárias e virais que acometem populações negligenciadas na América Latina afetadas pela dengue, doença de Chagas, leishmaniose visceral, hepatite C e leishmaniose cutânea.

Sergio Sosa-Estani

“Neste momento, estamos analisando a inclusão de esquistossomose no nosso portifólio de trabalhos. Além disso, estamos adotando novas tecnologias como inteligência artificial e modelos inovadores de articulação entre diferentes setores para reduzir o tempo de desenvolvimento dos medicamentos”, acentua Sosa-Estani.

José Lamartine concorda que a epidemiologia e o controle de vetores são áreas que necessitam de maior atenção. Estudos sobre a ecologia das doenças transmissíveis por vetores, como mosquitos e outros insetos, são fundamentais para desenvolver estratégias eficazes de controle e prevenção. Compreender os padrões de transmissão e os fatores ambientais que influenciam a propagação dessas enfermidades pode ajudar a formular políticas de saúde pública mais eficazes.

José Sobrinho

“A descoberta de novos fármacos que garantam segurança e eficácia, com diminuição de efeitos adversos, é particularmente importante para doenças negligenciadas, para as quais, muitas vezes, há uma falta de opções terapêuticas adequadas. Por fim, a criação de novas formas de administração de medicamentos que sejam mais eficazes, acessíveis e adequados a todos os públicos pode fazer uma grande diferença na vida das pessoas, já que melhoram a adesão ao tratamento e a acessibilidade para populações em áreas remotas ou com poucos recursos”.

A pandemia de Covid-19 demonstrou como ciência, inovação, produção local e acesso às tecnologias de saúde são desenvolvidos e distribuídos de forma desigual, impactando negativamente países e populações mais vulneráveis. Por isso, a cooperação internacional no enfrentamento das doenças negligenciadas é muito importante. “O Brasil decidiu colocar a agenda de acesso a medicamentos entre as prioridades de sua presidência no G20. Essa proposta de aliança internacional tem como objetivos principais: proporcionar uma dinâmica política sustentada e promover a ação coletiva, criando sinergias com outros esforços existentes para promover inovação, produção local e regional e, consequentemente, o acesso equitativo às tecnologias de saúde. No G20, estamos colocando para o mundo essa proposta brasileira de união em torno de uma produção global para a produção, com a intenção de produzir para todos”, diz Monica Felts.

Sosa-Estani também aposta na cooperação internacional como ferramenta para o enfrentamento das doenças negligenciadas. Para ele, não é aceitável repetir o cenário da pandemia de Covid-19, quando uma vacina foi desenvolvida em apenas oito meses, um prazo considerado impossível no passado, mas sua tecnologia não foi compartilhada pelos países ricos. “Estocavam grandes quantidades de vacinas a ponto de ter que jogar no lixo vacinas vencidas, enquanto algumas nações na África não tinham sequer conseguido vacinar suas equipes de saúde”.

Para mudar esse quadro, a cooperação pode atuar por meio dos clássicos modelos em que os países mais ricos financiam os mais pobres ou por meio de iniciativas inovadoras, como a articulação para que os bancos de desenvolvimento do Sul global priorizem essa temática e façam investimentos nessa área. “Ásia, América Latina e África concentram a maior prevalência dessas enfermidades. Aumentar a transparência das despesas com pesquisas e, consequentemente, dos custos dos medicamentos pode ser um caminho. Esse é outro ponto que se discutirá no encontro do G-20. É o que chamamos de ciência aberta e pode ter impactos locais e globais”, pontua o pesquisador.

O Brasil tem papel decisivo na luta contra as doenças negligenciadas por seu conhecimento tecnológico, sua capacidade industrial e de elaboração de parcerias entre poder público, com forte poder de compra, e a iniciativa privada. Resta agora esquecer os descaminhos do passado e trabalhar para superá-los. O País pode – e deve – liderar os esforços por tratamentos dedicados a pessoas que sofrem com enfermidades relegadas ao esquecimento.

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