O programa Nova Indústria Brasil (NIB) avançou na disponibilização de recursos financeiros aos atores privados dos segmentos farmoquímico e farmacêutico através de subsídios e empréstimos com juros reduzidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e pela Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). Houve também o lançamento de Programas para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) que, em última análise, têm como um dos objetivos incentivar entidades privadas e instituições públicas a produzirem localmente produtos e soluções que atendam as demandas prioritárias do Sistema Único de Saúde (SUS), materializadas na Matriz de Desafios Produtivos e Tecnológicos em Saúde, e utilizando o poder de compra do Estado como garantia de demanda.
No entanto, esses avanços não são suficientes para reduzir a vulnerabilidade do País na área de fármacos e medicamentos e para promover o desenvolvimento e a fabricação em território nacional de tecnologias, produtos e serviços estratégicos para o SUS.
Inicialmente, é preciso esclarecer quais são os limites de atuação dos segmentos farmoquímico e farmacêutico na cadeia de medicamentos. Normalmente, há uma confusão no diagnóstico da situação de cada um destes segmentos no Brasil. Não é raro ouvir que a vulnerabilidade do País está na produção de medicamentos. Será que este diagnóstico está correto?
A indústria farmacêutica é a responsável por disponibilizar aos pacientes medicamentos que atendam aos requisitos de qualidade, eficácia e segurança. Para produzir os medicamentos, ela se utiliza de diversas tecnologias para agregar o insumo farmacêutico ativo (IFA) em diversas formas farmacêuticas (comprimidos, cápsulas, soluções orais, soluções injetáveis, etc.).
Ao longo da história da indústria farmacêutica no Brasil, e principalmente a partir da Lei dos Medicamentos Genéricos de 1999, o segmento farmacêutico adquiriu competências tecnológicas importantes, que o qualificam para produzir em território nacional medicamentos com os mais variados graus de complexidade.
Essas competências são atestadas pela Anvisa, que também ao longo dos últimos anos vem perseguindo as melhores práticas mundiais, e hoje é reconhecida globalmente por sua atuação técnica de alto nível. A indústria farmoquímica, por sua vez, é o elo da cadeia de medicamentos imediatamente anterior à indústria farmacêutica. O segmento farmoquímico é responsável justamente pela disponibilização dos IFAs, as substâncias presentes nos medicamentos e que são responsáveis pelos seus efeitos terapêuticos ou profiláticos. Os IFAs podem ser obtidos por meio de diferentes processos como a extração de fontes vegetais e animais, síntese química, biotecnologia, e a fotografia deste segmento no Brasil traz uma imagem bastante diferente daquela evidenciada para o setor farmacêutico.
Apenas 5% a 10% dos IFAs utilizados na produção de medicamentos em território nacional são fabricados localmente. Entre 90% e 95% dos princípios ativos demandados pela indústria farmacêutica são importados. Por diversas razões, a indústria que produz IFAs no Brasil, e que já foi pujante nas décadas de 1980 e 1990, perdeu musculatura e competitividade ao mesmo tempo em que viu os países asiáticos priorizarem e crescerem em importância neste segmento. Em resumo: na cadeia de medicamentos, a indústria farmacêutica nacional está muito mais bem-resolvida que a indústria farmoquímica nacional.
Também é um equívoco dizer que estamos garantindo a soberania do País na questão da saúde dos brasileiros ao articular políticas públicas que visem apenas o segmento farmacêutico. Sem IFA disponível em território nacional, não há como a indústria farmacêutica – com toda a tecnologia que já domina – produzir um comprimido sequer de medicamento. Dá para imaginar fabricar pão sem dispor de farinha de trigo como matéria-prima? Da mesma maneira, não é possível produzir medicamento sem IFA.
As políticas públicas anunciadas até este momento são insuficientes para – de fato – incentivar a iniciativa privada a investir no desenvolvimento e produção de IFAs em território nacional. É estratégico para o País reduzir a dependência atual no abastecimento de IFAs.
A solução não é simples, e demanda uma série de medidas intersetoriais para as quais se esperava um ponto focal a nível nacional para articular as diversas ações que poderiam compor uma Política de Estado para o segmento farmoquímico.
O ciclo de desenvolvimento e comercialização de IFAs é muito longo por razões técnicas e regulatórias. Há um longo período de investimentos em pesquisa e desenvolvimento de IFAs, sem que ocorra receita na comercialização dos mesmos. Este período pode variar de três a cinco anos. Se a decisão do País é realmente fortalecer o elo fraco da cadeia de medicamentos no Brasil, não seria uma boa medida oferecer financiamento não-reembolsável a todo projeto de pesquisa e desenvolvimento de IFAs realizado aqui até os níveis de maturidade tecnológica TRL 7 – 8?
Um dos motivos pelos quais as indústrias farmacêuticas nacionais optam pelo suprimento asiático de fármacos utilizados na fabricação de medicamentos é o menor custo (incluindo aí os tributos e as despesas com logística internacional) quando comparado ao preço dos mesmos IFAs fabricados localmente, quando eles existem. Não enxergo qualquer trabalho sistemático de diagnóstico e proposição de ações que possam reduzir estas desigualdades e minimizar o chamado Custo Brasil. Por que não eleger alguns IFAs fabricados no Brasil, identificar competidores asiáticos que produzem os mesmos IFAs a preços mais vantajosos, e realizar uma análise de custo de produto detalhada e comparativa?
A inclusão de fabricantes de IFAs no registro de um determinado medicamento ocorre por meio de um movimento regulatório denominado pós-registro, que exige da indústria farmacêutica diversas provas técnicas que garantam que o IFA proveniente do novo fabricante não tenha impacto na qualidade, segurança e eficácia demonstradas quando do registro do medicamento. E não há nada de errado nisso. Ocorre que, para executar essas provas, os setores de pesquisa e desenvolvimento das indústrias farmacêuticas devem disponibilizar recursos (pessoal altamente qualificado, equipamentos analíticos e de produção, matérias-primas, etc.) que poderiam estar sendo utilizados no desenvolvimento de um novo produto, um novo medicamento que traria mais receita para a empresa, enquanto a inclusão de um fabricante de IFA nacional no registro do medicamento não traz à empresa maior faturamento. Não seria o caso, então, de subsidiar este pós-registro através de uma linha de crédito não-reembolsável quando da inclusão de fabricantes nacionais de IFAs?
Não há uma coordenação a nível nacional que estude e implemente polos industriais especializados na fabricação de IFAs. Neste modelo, utilizado pela Índia por exemplo, é possível compartilhar entre empresas do mesmo segmento instaladas em um mesmo território utilidades, estações de tratamento de efluentes industriais, serviços de manutenção comuns a qualquer planta de síntese química, e até mesmo ganhar escala e melhores condições comerciais na aquisição de insumos que sejam de uso comum.
Os IFAs fabricados a partir de síntese química, e que correspondem à maior parte da demanda da indústria farmacêutica, são produzidos por sua vez a partir de substâncias químicas mais simples, que são combinadas entre si através de reações químicas até que se chegue na estrutura química do IFA. Pois bem, as indústrias brasileiras de química básica e de química fina, responsáveis pela disponibilização desde produtos químicos básicos até produtos químicos com maior grau de complexidade e/ou especialização, também enfrentam dificuldades na competição com os insumos asiáticos. Como resultado, a indústria de IFAs não encontra fabricantes nacionais destes insumos básicos, e via de regra se vê obrigada a trazer produtos químicos básicos de fora do País. O fortalecimento da indústria química (de base e fina) deve fazer parte da estratégia de fortalecimento do segmento farmoquímico. É claro que a indústria química não conseguiria de uma hora para a outra fornecer todos os insumos demandados pelo segmento farmoquímico. Mas seria possível para um grupo técnico identificar os insumos comuns à fabricação de IFAs que estejam alinhados com a Matriz de Desafios Tecnológicos e talvez incentivar a produção local deles.
Por fim, mas não menos importante: os programas para desenvolvimento do CEIS, Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) e Parcerias para o Desenvolvimento e Inovação Local (PDILs) não são suficientes para criar demanda significativa e sustentável por IFAs nacionais. Até porque eles estão fundamentados na transferência de tecnologia e produção de medicamentos pelo Estado. Canalizar recursos para a criação de uma super-farmacêutica estatal capaz de atender 100% das demandas do SUS faria sentido somente no caso de uma indústria farmacêutica nacional tímida, o que definitivamente não é o caso. A iniciativa privada deve ser estimulada a demandar IFAs produzidos localmente. Neste sentido, o uso do poder de compra do Estado poderia ser usado para, indiretamente, incentivar o segmento farmoquímico do Brasil nas licitações públicas: não seria uma boa medida incentivar as indústrias farmacêuticas que comprovadamente utilizam IFAs fabricados em território nacional (uma rastreabilidade fácil de ser executada) ao estabelecer preferência de contratação até um determinado limite percentual acima do melhor preço válido em licitações de medicamentos? Algo semelhante àquilo que é praticado como política de incentivo às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (EPPs), conforme o Artigo 44º da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. É o Estado estimulando a indústria farmacêutica de capital privado a demandar IFAs fabricados localmente.
A produção local de IFAs não será estimulada por medidas pontuais, isoladas e de fácil implementação. Ações em diversos eixos – estratégico, tributário, tecnológico, de propriedade intelectual, regulatório, uso do poder de compra do Estado – devem ser estudadas e implementadas de forma harmônica para que se comece a reverter o quadro atual. E deste ponto até chegarmos ao que era o setor na década de 1980, também vai um bom tempo. Este esforço coordenado e envolvendo várias frentes só será de fato eficaz se estiver no contexto de uma política de Estado.
O Brasil precisa acordar deste pesadelo e, como já estão fazendo Estados Unidos, alguns países da Europa, e até mesmo a Índia, devemos entender que, na cadeia produtiva de medicamentos, o fortalecimento da capacidade interna de pesquisa e desenvolvimento e fabricação de IFAs é uma questão de soberania.