REVISTA FACTO
...
Jan-Mai 2024 • ANO XVIII • ISSN 2623-1177
2024
74
2023
73 72 71
2022
70 69 68
2021
67 66 65
2020
64 63 62
2019
61 60 59
2018
58 57 56 55
2017
54 53 52 51
2016
50 49 48 47
2015
46 45 44 43
2014
42 41 40 39
2013
38 37 36 35
2012
34 33 32
2011
31 30 29 28
2010
27 26 25 24 23
2009
22 21 20 19 18 17
2008
16 15 14 13 12 11
2007
10 9 8 7 6 5
2006
4 3 2 1 217 216 215 214
2005
213 212 211
Inteligência artificial traz desafios à sobrevivência da indústria
//Matéria Política

Inteligência artificial traz desafios à sobrevivência da indústria

O avanço da IA está transformando o mundo – e cada vez mais rápido. É preciso evoluir também nas políticas públicas para que a indústria nacional não fique para trás.

Em palestra realizada no mês de abril deste ano, no Rio de Janeiro, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que muitos autores comparam a ascensão da inteligência artificial (IA) a outros marcos históricos da humanidade, como a invenção da imprensa de Gutenberg no século XV e o Iluminismo mais de 200 anos depois.

Pode até parecer exagero, mas o fato é que o século XXI tem sido palco de transformações profundas na sociedade, inclusive na indústria – e em ritmo cada vez mais acelerado. Isso demanda a coordenação de esforços entre governo e sociedade por meio de políticas públicas com objetivos claros para que o Brasil não perca o timing e as oportunidades do novo mundo da IA, no qual máquinas são preparadas para reproduzir capacidades humanas como raciocínio, aprendizagem e criatividade. Está em jogo a própria sobrevivência da indústria.

Conhecendo o novo cenário

O ministro Barroso apresentou na palestra um dado impressionante: o telefone tradicional levou 75 anos para atingir 100 milhões de usuários. Por sua vez, o celular precisou de 16 anos para alcançar o mesmo público. Já o ChatGPT, uma das ferramentas mais comentadas de IA e que foi lançado em 2022, chegou à mesma marca em apenas dois meses.

Tal transformação atingiu em cheio a indústria – e em particular a da química fina, uma das mais estratégicas para o desenvolvimento nos dias de hoje. Como ressalta o professor Glauco Arbix, pesquisador do Observatório da Inovação e Competitividade e do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo (USP), a química é fundamental para a recuperação da indústria brasileira, com aplicações diversas em áreas como saúde, energia, descarbonização, agropecuária, entre outras. Porém, tudo depende da adaptação ao novo paradigma tecnológico e ao modelo de integração com vários campos de conhecimento, como biologia, engenharia e informática.

“Pensar em ter uma empresa dinâmica hoje sem inteligência artificial é pensar na química do século passado. É pensar o País como um reprodutor e não como um produtor de inovação”

Glauco Arbix, pesquisador do Observatório da Inovação e Competitividade e do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo (USP)

Para o professor da USP, o Brasil está atrasado em termos de pesquisa com IA, o que se torna uma séria barreira para o desenvolvimento industrial no século XXI. “Não há a menor possibilidade da indústria 4.0 ou 5.0, internet das coisas, impressão em 3D, robótica avançada, sistemas integradores, sensores e tantas outras aplicações funcionarem minimamente nos dias de hoje sem inteligência artificial” alertou Arbix.

Novos fármacos: mais agilidade menos custos

Nesse contexto de mudanças profundas, as novas tecnologias geram uma série de oportunidades para a indústria, especialmente nos segmentos farmoquímico e farmacêutico. Com sua capacidade de analisar grandes volumes de dados, monitorar processos e orientar a tomada de decisão, as ferramentas de IA podem contribuir para o desenvolvimento de fármacos, a personalização de tratamentos (com foco na medicina preventiva), a otimização das cadeias de suprimentos e o controle da qualidade, entre outros aspectos.

Tudo isso vem sendo impulsionado por recursos como o aprendizado de máquina (machine learning, em inglês), ou seja, quando as máquinas conseguem modificar seu comportamento sem intervenção humana, com base nos dados obtidos em sua própria experiência, a partir da identificação de padrões. Cabe destacar ainda o potencial da chamada IA generativa – aquela capaz de criar novos conteúdos de texto, imagem e outras formas de resposta a partir de um conjunto prévio de dados, cujo símbolo é o já citado ChatGPT.

Diante desse mundo de oportunidades, a IA generativa vai muito além do ChatGPT e já está transformando a indústria da saúde. Em artigo sobre o tema publicado no portal IG em maio deste ano, o empresário e pesquisador Jorge Muzy cita estudo da consultoria norte-americana Gartner, no qual o vice-presidente da empresa, Brian Burke, prevê que até 2025 mais de 30% dos novos medicamentos e materiais serão descobertos empregando técnicas de IA generativa.

Isso porque, ao avaliar grandes quantidades de dados moleculares e resultados de ensaios clínicos com rapidez e eficiência, tal modalidade avançada de IA é capaz de projetar moléculas novas e prever sua eficácia em prazos bem menores do que nas pesquisas atuais, como ressalta Muzy. O resultado é que novos medicamentos vão chegar à população com maior agilidade e o processo de desenvolvimento terá redução expressiva de tempo e valores investidos – ainda segundo a Gartner, com base em estudo de 2010, o custo médio de produção de um fármaco desde a descoberta até a comercialização era de US$ 1,8 bilhão, sendo um terço gasto no desenvolvimento, que levava em torno de três a seis anos.

Investimentos bilionários no exterior

Esses são números que em breve ficarão no passado. Por sua vez, o presente é de investimentos cada vez maiores em inteligência artificial. Também de acordo com a Gartner, empresas de capital de risco investiram mais de US$ 1,7 bilhão nos últimos três anos em ferramentas de IA generativa. Entre os segmentos mais beneficiados estavam o de fármacos e o de softwares.

Igualmente expressivo é o benefício projetado no setor de saúde pública. A professora Cristiane Pimentel, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e membro sênior do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE), destaca o impacto potencial da IA para o Sistema Único de Saúde (SUS), ao permitir, por exemplo, uma análise mais profunda de exames, com base em estudos científicos e laudos anteriores do paciente, contribuindo para que o médico possa atuar de forma preventiva e identificar doenças precocemente.

Embora as aplicações concretas da IA já sejam bem visíveis, a pesquisadora afirma que ainda é preciso desmistificá-la, estimulando que mais pessoas e empresas conheçam tais ferramentas e as incluam em seu dia a dia.

“Quando a gente vê algumas estatísticas, por exemplo, vamos dizer que de 100 pessoas, cerca de 80 falam, 40 são entusiastas, mas apenas duas ou três é que chegam realmente a utilizar”

Cristiane Pimentel, pesquisadora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e membro sênior do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE)

Distante da utilização plena, a IA também é alvo de discussões éticas sobre regulamentação. Em sua palestra, o ministro Barroso destacou a importância do combate à divulgação de conteúdos ilícitos e à desinformação, bem como ressaltou a proteção da privacidade e dos direitos autorais.

Desafios para as políticas públicas

Independentemente do aspecto cultural que envolve mudanças de atitude e do debate sobre regulamentação, o baixo uso da IA na indústria brasileira decorre de fatores estruturais, como ressalta Glauco Arbix. O professor da USP destaca três desafios para o Brasil avançar na temática: capacitação de pessoal, infraestrutura e conectividade, ou seja, preparar profissionais para trabalhar com o tema, dotá-los de computadores e demais ferramentas necessárias e promover a integração com toda a sociedade, incluindo jovens em idade escolar.

Esses são elementos fundamentais para fomentar a inovação nessa área, reunindo empresas, universidades e instituições de pesquisa em prol do interesse nacional. Para isso, segundo Arbix, é essencial aprimorar as políticas públicas que envolvem IA e indústria no Brasil.

Em janeiro deste ano, o governo federal lançou sua política industrial, a Nova Indústria Brasil. O objetivo é impulsionar o desenvolvimento do setor produtivo, com foco em sustentabilidade e inovação. Estruturada em seis missões, a política inclui ações e metas até 2033, com R$ 300 bilhões para financiamento das atividades propostas.

Nesse contexto, a inteligência artificial está ligada diretamente a uma das missões, que se refere à transformação digital da indústria para ampliar a produtividade, além da vinculação a outras temáticas centrais, como o complexo econômico industrial da saúde, a agroindústria, a bioeconomia e as energias limpas. Entre as atividades previstas na Nova Indústria Brasil, a IA poderá ser incluída nos investimentos em inovação tecnológica, capacitação de profissionais para a indústria, incentivos à adoção de tecnologias inteligentes e colaboração entre empresas e instituições de pesquisa.

De acordo com o diretor de Inovação da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), Elias Ramos, a IA é uma das temáticas priorizadas no âmbito da política industrial. Nesse sentido, a Finep apoiou em 2023 mais de 150 projetos relacionados à inteligência artificial no Brasil, com valores acima de R$ 837 milhões para atividades envolvendo o desenvolvimento ou adoção da IA por empresas e institutos de pesquisa nacionais. O diretor da Finep acrescenta que muitos desses projetos foram direcionados para a área de saúde, incluindo pesquisas envolvendo IA para prevenção de doenças e ações para melhoria do atendimento ao público.

Além disso, atualmente existem duas chamadas públicas da Finep com recursos para inteligência artificial: uma com foco no desenvolvimento de grandes modelos de linguagem (LLM na sigla em inglês) adaptados para o português brasileiro, buscando gerar no País infraestruturas capazes de realizar diversas tarefas, incluindo a aplicação como IA generativa; e outra com o objetivo de desenvolver soluções de IA para desafios do governo brasileiro e para aprimorar os serviços prestados à sociedade.

De modo mais amplo, cabe destacar ainda o investimento de R$ 2,2 bilhões nos 11 editais com recursos não-reembolsáveis do Programa Finep Mais Inovação Brasil, que pode envolver a IA. Especificamente no setor de saúde, a Financiadora lançou dois editais, um para Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs) e outro para empresas, no valor de R$ 250 milhões cada, para fomento a pesquisa e desenvolvimento.

Ainda no segmento de saúde, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) lançou em 2023 o Edital Grand Challenges Inteligência Artificial, com o objetivo de fomentar projetos de desenvolvimento de soluções com IA que contribuam para melhorar a saúde de mulheres, crianças e comunidades vulneráveis.

“A inteligência artificial é uma das temáticas mais fomentadas nas políticas industriais internacionais, não sendo diferente no caso brasileiro. Observa-se atualmente uma corrida internacional no fomento de empresas que desenvolvam tecnologias no segmento”

Elias Ramos, diretor de Inovação da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep)

Elias Ramos destaca a forte retomada das ações de política industrial nos últimos anos. Segundo o Observatório da Nova Política Industrial do Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2023 foram identificadas 2.580 medidas de política industrial pelo mundo, com 70,9% delas em economias avançadas e 29,1% em países emergentes, concentradas nos Estados Unidos, China e União Europeia.

Estratégia em revisão

Nesse cenário, diante de países mais avançados no campo da inteligência artificial e com investimentos bilionários conectados a desafios contemporâneos como infraestrutura, energia e sustentabilidade, o caminho a ser trilhado pelo Brasil é longo para alcançar os líderes na área. Considerando a importância (e urgência) do tema para a competitividade da indústria, Glauco Arbix acredita que a IA ainda não foi adequadamente contemplada na política industrial brasileira.

“O primeiro item que deveria estar na pauta como foco é a inteligência artificial, porque é a tecnologia mais revolucionária que a humanidade já criou” afirmou o pesquisador. Ele reconhece os avanços da política para apoiar a indústria, mas sustenta a importância de se definirem de forma mais clara as prioridades, como IA e biotecnologia, para que o Brasil acompanhe as inovações internacionais.

O diretor de Inovação da Finep, Elias Ramos, afirma que a política industrial está em constante revisão e adequação às demandas atuais. “Nossa expectativa é que a Nova Indústria Brasil siga evoluindo para abarcar plenamente as temáticas estratégicas para o desenvolvimento do País, incluindo a inteligência artificial como prioridade e buscando alinhamento com as iniciativas globais”.

Cooperação universidade-empresa

Nesse contexto de cooperação, Arbix cita o exemplo do Centro de Inteligência Artificial da USP e os projetos com empresas para indicar o potencial desse modelo de parceria. Segundo ele, embora existam diferenças relevantes a serem equacionadas entre as partes quanto aos prazos, procedimentos e objetivos, a colaboração com as universidades é fundamental para as empresas, devido aos custos potencialmente menores e à capacidade de mobilizar os mais diversos profissionais e centros de pesquisa dentro das instituições de ensino superior.

Diante disso, o professor da USP acredita que tais parcerias vêm crescendo no Brasil e podem se desenvolver ainda mais, desde que sejam criados espaços para negociação entre as partes e para que as universidades apresentem suas linhas de pesquisa com linguagem acessível, de modo que as empresas encontrem o que buscam.

Na mesma linha, o diretor da Finep acredita que a articulação entre empresas e universidades é crucial para o desenvolvimento de inovações disruptivas e, por isso, a Financiadora vem promovendo essa cooperação. “Os editais de seleção do Finep Mais Inovação Brasil preconizam a parceria entre empresas e ICTs, pontuando em seus critérios de seleção a mobilização do ecossistema de inovação brasileiro e, em alguns casos, exigindo a parceria como condição de acesso aos recursos não-reembolsáveis”, afirmou Elias Ramos, ressaltando que, em mais de 40% dos projetos apoiados, já existe parceria com ICTs nacionais.

O avanço na colaboração entre agentes públicos e privados, bem como as atividades em andamento por meio de políticas públicas, são passos importantes para o desenvolvimento industrial brasileiro, em especial para o setor químico-farmacêutico. Porém, desafios como infraestrutura, capacitação e conectividade mostram que ainda existe muito a ser feito para que a inteligência artificial seja, de fato, um elemento central nas empresas nacionais, estimulando o aumento da produtividade e a capacidade de competir no mercado global. Uma coisa é certa: não há tempo a perder.

Anterior

Defesa do acefato nacional

Próxima

ABIFINA garante presença na diretoria do IdQ