O avanço da IA está transformando o mundo – e cada vez mais rápido. É preciso evoluir também nas políticas públicas para que a indústria nacional não fique para trás.
Em palestra realizada no mês de abril deste ano, no Rio de Janeiro, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que muitos autores comparam a ascensão da inteligência artificial (IA) a outros marcos históricos da humanidade, como a invenção da imprensa de Gutenberg no século XV e o Iluminismo mais de 200 anos depois.
Pode até parecer exagero, mas o fato é que o século XXI tem sido palco de transformações profundas na sociedade, inclusive na indústria – e em ritmo cada vez mais acelerado. Isso demanda a coordenação de esforços entre governo e sociedade por meio de políticas públicas com objetivos claros para que o Brasil não perca o timing e as oportunidades do novo mundo da IA, no qual máquinas são preparadas para reproduzir capacidades humanas como raciocínio, aprendizagem e criatividade. Está em jogo a própria sobrevivência da indústria.
Conhecendo o novo cenário
O ministro Barroso apresentou na palestra um dado impressionante: o telefone tradicional levou 75 anos para atingir 100 milhões de usuários. Por sua vez, o celular precisou de 16 anos para alcançar o mesmo público. Já o ChatGPT, uma das ferramentas mais comentadas de IA e que foi lançado em 2022, chegou à mesma marca em apenas dois meses.
Tal transformação atingiu em cheio a indústria – e em particular a da química fina, uma das mais estratégicas para o desenvolvimento nos dias de hoje. Como ressalta o professor Glauco Arbix, pesquisador do Observatório da Inovação e Competitividade e do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo (USP), a química é fundamental para a recuperação da indústria brasileira, com aplicações diversas em áreas como saúde, energia, descarbonização, agropecuária, entre outras. Porém, tudo depende da adaptação ao novo paradigma tecnológico e ao modelo de integração com vários campos de conhecimento, como biologia, engenharia e informática.
“Pensar em ter uma empresa dinâmica hoje sem inteligência artificial é pensar na química do século passado. É pensar o País como um reprodutor e não como um produtor de inovação”
Glauco Arbix, pesquisador do Observatório da Inovação e Competitividade e do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo (USP)
Para o professor da USP, o Brasil está atrasado em termos de pesquisa com IA, o que se torna uma séria barreira para o desenvolvimento industrial no século XXI. “Não há a menor possibilidade da indústria 4.0 ou 5.0, internet das coisas, impressão em 3D, robótica avançada, sistemas integradores, sensores e tantas outras aplicações funcionarem minimamente nos dias de hoje sem inteligência artificial” alertou Arbix.
Novos fármacos: mais agilidade menos custos
Nesse contexto de mudanças profundas, as novas tecnologias geram uma série de oportunidades para a indústria, especialmente nos segmentos farmoquímico e farmacêutico. Com sua capacidade de analisar grandes volumes de dados, monitorar processos e orientar a tomada de decisão, as ferramentas de IA podem contribuir para o desenvolvimento de fármacos, a personalização de tratamentos (com foco na medicina preventiva), a otimização das cadeias de suprimentos e o controle da qualidade, entre outros aspectos.
Tudo isso vem sendo impulsionado por recursos como o aprendizado de máquina (machine learning, em inglês), ou seja, quando as máquinas conseguem modificar seu comportamento sem intervenção humana, com base nos dados obtidos em sua própria experiência, a partir da identificação de padrões. Cabe destacar ainda o potencial da chamada IA generativa – aquela capaz de criar novos conteúdos de texto, imagem e outras formas de resposta a partir de um conjunto prévio de dados, cujo símbolo é o já citado ChatGPT.
Diante desse mundo de oportunidades, a IA generativa vai muito além do ChatGPT e já está transformando a indústria da saúde. Em artigo sobre o tema publicado no portal IG em maio deste ano, o empresário e pesquisador Jorge Muzy cita estudo da consultoria norte-americana Gartner, no qual o vice-presidente da empresa, Brian Burke, prevê que até 2025 mais de 30% dos novos medicamentos e materiais serão descobertos empregando técnicas de IA generativa.
Isso porque, ao avaliar grandes quantidades de dados moleculares e resultados de ensaios clínicos com rapidez e eficiência, tal modalidade avançada de IA é capaz de projetar moléculas novas e prever sua eficácia em prazos bem menores do que nas pesquisas atuais, como ressalta Muzy. O resultado é que novos medicamentos vão chegar à população com maior agilidade e o processo de desenvolvimento terá redução expressiva de tempo e valores investidos – ainda segundo a Gartner, com base em estudo de 2010, o custo médio de produção de um fármaco desde a descoberta até a comercialização era de US$ 1,8 bilhão, sendo um terço gasto no desenvolvimento, que levava em torno de três a seis anos.
Investimentos bilionários no exterior
Esses são números que em breve ficarão no passado. Por sua vez, o presente é de investimentos cada vez maiores em inteligência artificial. Também de acordo com a Gartner, empresas de capital de risco investiram mais de US$ 1,7 bilhão nos últimos três anos em ferramentas de IA generativa. Entre os segmentos mais beneficiados estavam o de fármacos e o de softwares.
Igualmente expressivo é o benefício projetado no setor de saúde pública. A professora Cristiane Pimentel, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e membro sênior do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE), destaca o impacto potencial da IA para o Sistema Único de Saúde (SUS), ao permitir, por exemplo, uma análise mais profunda de exames, com base em estudos científicos e laudos anteriores do paciente, contribuindo para que o médico possa atuar de forma preventiva e identificar doenças precocemente.
Embora as aplicações concretas da IA já sejam bem visíveis, a pesquisadora afirma que ainda é preciso desmistificá-la, estimulando que mais pessoas e empresas conheçam tais ferramentas e as incluam em seu dia a dia.
“Quando a gente vê algumas estatísticas, por exemplo, vamos dizer que de 100 pessoas, cerca de 80 falam, 40 são entusiastas, mas apenas duas ou três é que chegam realmente a utilizar”
Cristiane Pimentel, pesquisadora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e membro sênior do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE)
Distante da utilização plena, a IA também é alvo de discussões éticas sobre regulamentação. Em sua palestra, o ministro Barroso destacou a importância do combate à divulgação de conteúdos ilícitos e à desinformação, bem como ressaltou a proteção da privacidade e dos direitos autorais.
Desafios para as políticas públicas
Independentemente do aspecto cultural que envolve mudanças de atitude e do debate sobre regulamentação, o baixo uso da IA na indústria brasileira decorre de fatores estruturais, como ressalta Glauco Arbix. O professor da USP destaca três desafios para o Brasil avançar na temática: capacitação de pessoal, infraestrutura e conectividade, ou seja, preparar profissionais para trabalhar com o tema, dotá-los de computadores e demais ferramentas necessárias e promover a integração com toda a sociedade, incluindo jovens em idade escolar.
Esses são elementos fundamentais para fomentar a inovação nessa área, reunindo empresas, universidades e instituições de pesquisa em prol do interesse nacional. Para isso, segundo Arbix, é essencial aprimorar as políticas públicas que envolvem IA e indústria no Brasil.
Em janeiro deste ano, o governo federal lançou sua política industrial, a Nova Indústria Brasil. O objetivo é impulsionar o desenvolvimento do setor produtivo, com foco em sustentabilidade e inovação. Estruturada em seis missões, a política inclui ações e metas até 2033, com R$ 300 bilhões para financiamento das atividades propostas.
Nesse contexto, a inteligência artificial está ligada diretamente a uma das missões, que se refere à transformação digital da indústria para ampliar a produtividade, além da vinculação a outras temáticas centrais, como o complexo econômico industrial da saúde, a agroindústria, a bioeconomia e as energias limpas. Entre as atividades previstas na Nova Indústria Brasil, a IA poderá ser incluída nos investimentos em inovação tecnológica, capacitação de profissionais para a indústria, incentivos à adoção de tecnologias inteligentes e colaboração entre empresas e instituições de pesquisa.
De acordo com o diretor de Inovação da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), Elias Ramos, a IA é uma das temáticas priorizadas no âmbito da política industrial. Nesse sentido, a Finep apoiou em 2023 mais de 150 projetos relacionados à inteligência artificial no Brasil, com valores acima de R$ 837 milhões para atividades envolvendo o desenvolvimento ou adoção da IA por empresas e institutos de pesquisa nacionais. O diretor da Finep acrescenta que muitos desses projetos foram direcionados para a área de saúde, incluindo pesquisas envolvendo IA para prevenção de doenças e ações para melhoria do atendimento ao público.
Além disso, atualmente existem duas chamadas públicas da Finep com recursos para inteligência artificial: uma com foco no desenvolvimento de grandes modelos de linguagem (LLM na sigla em inglês) adaptados para o português brasileiro, buscando gerar no País infraestruturas capazes de realizar diversas tarefas, incluindo a aplicação como IA generativa; e outra com o objetivo de desenvolver soluções de IA para desafios do governo brasileiro e para aprimorar os serviços prestados à sociedade.
De modo mais amplo, cabe destacar ainda o investimento de R$ 2,2 bilhões nos 11 editais com recursos não-reembolsáveis do Programa Finep Mais Inovação Brasil, que pode envolver a IA. Especificamente no setor de saúde, a Financiadora lançou dois editais, um para Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs) e outro para empresas, no valor de R$ 250 milhões cada, para fomento a pesquisa e desenvolvimento.
Ainda no segmento de saúde, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) lançou em 2023 o Edital Grand Challenges Inteligência Artificial, com o objetivo de fomentar projetos de desenvolvimento de soluções com IA que contribuam para melhorar a saúde de mulheres, crianças e comunidades vulneráveis.
“A inteligência artificial é uma das temáticas mais fomentadas nas políticas industriais internacionais, não sendo diferente no caso brasileiro. Observa-se atualmente uma corrida internacional no fomento de empresas que desenvolvam tecnologias no segmento”
Elias Ramos, diretor de Inovação da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep)
Elias Ramos destaca a forte retomada das ações de política industrial nos últimos anos. Segundo o Observatório da Nova Política Industrial do Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2023 foram identificadas 2.580 medidas de política industrial pelo mundo, com 70,9% delas em economias avançadas e 29,1% em países emergentes, concentradas nos Estados Unidos, China e União Europeia.
Estratégia em revisão
Nesse cenário, diante de países mais avançados no campo da inteligência artificial e com investimentos bilionários conectados a desafios contemporâneos como infraestrutura, energia e sustentabilidade, o caminho a ser trilhado pelo Brasil é longo para alcançar os líderes na área. Considerando a importância (e urgência) do tema para a competitividade da indústria, Glauco Arbix acredita que a IA ainda não foi adequadamente contemplada na política industrial brasileira.
“O primeiro item que deveria estar na pauta como foco é a inteligência artificial, porque é a tecnologia mais revolucionária que a humanidade já criou” afirmou o pesquisador. Ele reconhece os avanços da política para apoiar a indústria, mas sustenta a importância de se definirem de forma mais clara as prioridades, como IA e biotecnologia, para que o Brasil acompanhe as inovações internacionais.
O diretor de Inovação da Finep, Elias Ramos, afirma que a política industrial está em constante revisão e adequação às demandas atuais. “Nossa expectativa é que a Nova Indústria Brasil siga evoluindo para abarcar plenamente as temáticas estratégicas para o desenvolvimento do País, incluindo a inteligência artificial como prioridade e buscando alinhamento com as iniciativas globais”.
Cooperação universidade-empresa
Nesse contexto de cooperação, Arbix cita o exemplo do Centro de Inteligência Artificial da USP e os projetos com empresas para indicar o potencial desse modelo de parceria. Segundo ele, embora existam diferenças relevantes a serem equacionadas entre as partes quanto aos prazos, procedimentos e objetivos, a colaboração com as universidades é fundamental para as empresas, devido aos custos potencialmente menores e à capacidade de mobilizar os mais diversos profissionais e centros de pesquisa dentro das instituições de ensino superior.
Diante disso, o professor da USP acredita que tais parcerias vêm crescendo no Brasil e podem se desenvolver ainda mais, desde que sejam criados espaços para negociação entre as partes e para que as universidades apresentem suas linhas de pesquisa com linguagem acessível, de modo que as empresas encontrem o que buscam.
Na mesma linha, o diretor da Finep acredita que a articulação entre empresas e universidades é crucial para o desenvolvimento de inovações disruptivas e, por isso, a Financiadora vem promovendo essa cooperação. “Os editais de seleção do Finep Mais Inovação Brasil preconizam a parceria entre empresas e ICTs, pontuando em seus critérios de seleção a mobilização do ecossistema de inovação brasileiro e, em alguns casos, exigindo a parceria como condição de acesso aos recursos não-reembolsáveis”, afirmou Elias Ramos, ressaltando que, em mais de 40% dos projetos apoiados, já existe parceria com ICTs nacionais.
O avanço na colaboração entre agentes públicos e privados, bem como as atividades em andamento por meio de políticas públicas, são passos importantes para o desenvolvimento industrial brasileiro, em especial para o setor químico-farmacêutico. Porém, desafios como infraestrutura, capacitação e conectividade mostram que ainda existe muito a ser feito para que a inteligência artificial seja, de fato, um elemento central nas empresas nacionais, estimulando o aumento da produtividade e a capacidade de competir no mercado global. Uma coisa é certa: não há tempo a perder.