REVISTA FACTO
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Jan-Mai 2024 • ANO XVIII • ISSN 2623-1177
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Medidas jurídicas para extensão do prazo das patentes após a ADI 5529
//Artigo

Medidas jurídicas para extensão do prazo das patentes após a ADI 5529

Os mercados farmacêuticos são profundamente regulados e estão no âmbito de aplicação do escrutínio antitruste (aplicado de perto nos Estados Unidos e na União Europeia). Isso implica uma demanda constante das leis existentes (direito positivo), além de políticas públicas de controle social e um volume importante de decisões jurisprudenciais de maneira a lidar com o elevado e reiterado fluxo de situações complexas.

No entanto, a evolução da tecnologia, tanto nos mercados de produtos medicinais como na biotecnologia, tem alterado a estrutura dos mercados.

O surgimento dos produtos genéricos e da biotecnologia desafia o tradicional domínio da indústria farmacêutica de referência. Ao lado das fusões e especializações verticais, isso gerou inequívocos impactos não só na estrutura dos mercados como na organização industrial (participações cruzadas, contratos associativos e poder conglomeral).

Esses determinantes levaram a uma reação estratégica das grandes indústrias globais fabricantes de referência e a um rearranjo no alinhamento estratégico das indústrias de genéricos e de biotechs e de todo o setor como um todo. De outro lado, a sofisticação dos métodos de negócio seguiu na direção de ampliar não só a matéria protegível, mas especialmente o prazo de patentes ou de outros exclusivos de origem regulatória.

No Brasil, o centro do debate foi o parágrafo (§) único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial (LPI). Em 2021, a decisão colegiada do Supremo Tribunal Federal (STF) referente à ADI 5529 declarou a inconstitucionalidade desse parágrafo, excluindo o setor farmacêutico da modulação de efeitos e com aplicação retroativa. Com essa decisão, na prática, coube à Administração Pública, ou seja, ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) revogar as extensões concedidas a titulares de patentes farmacêuticas na vigência do § único do artigo 40 da LPI. O ato administrativo de revogação incrementara de fato e de direito o domínio público. Segundo estudos econômicos, a primeira externalidade positiva da decisão do ponto de vista dos determinantes de mercado é o incremento da concorrência e redução de preços ao SUS e ao consumidor.

O § único do artigo 40 é oriundo do Projeto de Lei nº 824 de 1991 (embrião legislativo da atual LPI), sendo anterior à conclusão da Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) e talvez por isso tenha incorporado dispositivos TRIPS-plus (ou ADPIC plus) em decorrência de políticas comerciais bilaterais (el palo y la zanahoria), notadamente relativamente à famosa cláusula Super 301 da Lei de Comércio estadunidense aplicada pela atuação da USTR (United States Trade Representatives) via Watch List. Assim, o Brasil acabou por incorporar em seu direito positivo condições que excediam as obrigações mínimas de proteção aprovadas no Anexo 1C da ata de Marraqueche (Tratado Constitutivo da OMC em vigor em caráter geral em 1º de janeiro de 1995). Um exemplo disso é a extensão de patentes em caso de mora da autoridade no exame e na concessão de maneira em que houvesse ao menos dez anos de vigência do direito pleno no caso da patente de invenção, cujo prazo de vigência é de 20 anos a contar do depósito do pedido. No entanto, o que poderia ter sido exceção para situações extraordinárias passou a ser regra.

A literatura indica que 92% das patentes farmacêuticas concedidas entre 1997 e 2018 tiveram prazo de vigência superior a 20 anos (Mercadante 2019). Praticamente a totalidade das patentes outorgadas o foram com extensão de prazo, o que significa uma distorção do sistema de patentes e um vetor de restrição da liberdade de empreender (livre iniciativa) e da livre concorrência. Diante do volume de litígios com fim exclusionário (ius prohibendi), a barreira à entrada originariamente lícita foi transformada em tática de exclusão, carregando efeitos anticompetitivos sem qualquer compensação econômica e por isso de difícil descaracterização das hipóteses de incidência do âmbito de aplicação do direito positivo. Não à toa o direito positivo se ocupa de táticas usadas para estender exclusivos e frear tanto a inovação quanto a entrada de genéricos. Na União Europeia, as condutas exclusionárias e os acordos restritivos (pay for delay, patent trolls, patent pools, evergreening, sham litigation, product hoping) de um lado e as cláusulas (como as de exclusividade e grant back) nos contratos de transferência de tecnologia de outro são examinados em detalhe pelo sistema de proibição e isenção do artigo 101.1, a isenção individual do artigo 101.3 e os regulamentos de isenção por categoria do TFUE. Os primeiros casos são no agronegócio e biotecnologia relativamente a determinadas variedades de sementes de milho e tecnologias transgênicas relacionadas. Não se podem deixar de lado as condutas unilaterais ou abuso de posição dominante do art. 102 do TFUE. Não nos parecem ficar atrás as United States Intellectual Property Guidelines (USIP Guidelines) por iniciativa conjunta da Federal Trade Commission (FTC) e do Departament of Justice (DOJ). No Brasil, merecem destaque o direito positivo os incisos III, IV, V, VIII, XIV e XIX do parágrafo 3º do artigo 36 da Lei nº 12.529/2011, entre outros dispositivos.

A análise econômica do direito lida com o impacto das externalidades (positivas ou negativas) da atividade econômica e de medidas jurídicas. Assim, há trabalhos em matéria de ciências econômicas com o objetivo de analisar os potenciais efeitos econômicos da extensão do prazo do direito de patente. Esse é o caso da pesquisa da economista e professora Julia Paranhos, do Instituto de Economia da UFRJ, cujo objetivo é “analisar os potenciais efeitos econômicos da possível implementação de extensão de prazo de vigência das patentes farmacêuticas no Brasil a partir de um estudo de caso das ações judiciais impetradas após a declaração de inconstitucionalidade e extinção do parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial (LPI)”. A pesquisa faz uma conexão entre a alteração regulatória, o prazo de vigência das patentes farmacêuticas sobre preços e a concorrência.

Pesquisas levadas a cabo por pesquisadores da envergadura de Julia Paranhos indicam o custo da extensão para o SUS. Segundo o GEI/IE/UFRJ, o custo total para o SUS com a extensão de patentes em ações judiciais é algo em torno de R$ 1,7 bilhão. Nesse quadro, é certo o fato de que 97,8% desse dispêndio estão concentrados em tão somente cinco princípios ativos. A redução de custo na hipótese de extensão por ações judiciais permitirá economizar R$ 7,145 milhões pelo total do tempo de extensão.

Enquanto os gastos de consumidores no quinquênio 2017-2021 (durante a extensão pelas ações judiciais) foi algo em torno de R$ 135 bilhões, a redução média de preço de medicamentos após o fim da extensão varia entre 33,9% e 97,9%. Se esse preço supranormal é resultado da distorção do processo de formação de preço originada de uma barreira ilícita à entrada, pode-se considerar a hipótese de que esse é o tamanho do peso morto do abuso do monopólio legal, que no fim da linha é custeado pelo consumidor brasileiro.

Surpreendentemente, houve a interposição de mais de 40 ações após à declaração de inconstitucionalidade do § único do artigo 40 da LPI. A inovação no fundamento desse novo lote de ações parece ser a substituição prática do inconstitucional dispositivo da LPI por outra categoria de direitos: a da responsabilidade civil. No sistema brasileiro, ainda que seja possível a responsabilidade do Estado (considerando o respectivo padrão de prova e requisitos), a reparação ocorreria por indenização mediante pecúnia. No entanto, não cabe em nenhuma hipótese a título de responsabilidade civil a extensão de “cotas de monopólio legal” ou apropriação do domínio público. Trata-se aqui então de uma questão de direito – o mercado é patrimônio do povo brasileiro, portanto, indisponível – conforme artigo 219 da Constituição Federal. Sendo então tais hipóteses à luz de tal arrazoado ações objetivamente sem fundamento, segundo a professora Paranhos, o indeferimento de todas implicará na economia possível de um somatório que varia de R$ 6,949 milhões a R$ 76 bilhões para o consumidor. Com efeito, caberiam em tese ações judiciais de reparação de danos sofridos não só pela Administração e no que couber, mas também por dano reverso sofrido pelos consumidores em desfavor dos fornecedores.

Nisso reside a demanda social em tela: o atraso na entrada de genéricos é de, em média, sete anos, podendo chegar a doze anos (vide Relatório GEI/IE/UFRJ 2023 “Efeitos da extensão de prazo de vigência de patentes farmacêuticas no Brasil” coordenado por Julia Paranhos). A distorção no processo de formação de preço decorrente do atentado contra a livre concorrência é paga pelo consumidor e pelo Erário Público.

Pois bem, caso o objetivo seja com efeito e tão somente o atraso da entrada de genéricos no mercado e o fato oponível, não se possa alegar desconhecer como o trânsito em julgado de uma ação direta de inconstitucionalidade, algumas hipóteses se apresentam, quais sejam: o controle social da boa fé e o abuso de direito com fins anticompetitivos.

Isso posto, mesmo o domínio tecnológico tem data para acabar, a não ser que seja superado (e destruído) por outra tecnologia – a tal concorrência dinâmica dos mercados de inovação. Nesse momento, a bem da livre concorrência e do incentivo à inovação, a barreira à entrada lícita é desligada. Na fala de José Oliveira Ascensão, “extinta a patente, nem mais um dia”. A partir disso, todo intento no sentido contrário é ilícito (vide ADI 5529). Daí nasce a relevância da política de genéricos para o povo brasileiro.

De todo modo, ainda que ad argumentandum o STF entenda por bem permitir, em algum caso concreto, o direito a extensões em sede de reclamação, mesmo após declarar a inconstitucionalidade do referido dispositivo, a improvável outorga de exclusivos não implicará em nenhuma hipótese a isenção antitruste no caso de abuso de direitos com efeito anticompetitivo, tal como em quaisquer direitos de propriedade intelectual ordinários.

João Marcelo de Lima Assafim
João Marcelo de Lima Assafim
Doutor em Direito Mercantil pela Universidad de Santiago de Compostela (USC-ESPANHA), doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) e professor Associado II de Direito Comercial da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ
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