O uxi-amarelo (Endopleura uchi Huber) é uma espécie de planta nativa da Amazônia com diversos usos indicados por conhecimentos tradicionais associados ao seu patrimônio genético. Sob diversas formas, povos indígenas e comunidades tradicionais utilizam a espécie vegetal, inclusive comercializando preparos e misturas contendo a planta. Este uso é legítimo e necessário por diversas razões. Entretanto, algumas empresas têm se apropriado destes conhecimentos da medicina tradicional, agindo ilegalmente, para comercializar produtos naturais irregulares com aparência de medicamentos. Elas se aproveitam de uma interpretação jurídica e técnica que evita a incidência das exigências regulatórias e ignora a legislação brasileira específica. Como consequência, consumidores portadores de diversas enfermidades ficam expostos a produtos irregulares, fora dos padrões sanitários, que são comercializados pela internet diariamente, inclusive por meio de grandes portais de comércio eletrônico do Brasil.
O artigo “O caso do uxi-amarelo (Endopleura uchi Huber)1: da biodiversidade brasileira para a comercialização fraudulenta no Brasil”, publicado no número temático de Propriedade Intelectual da Revista Fitos (Fiocruz), em janeiro de 2024, traz um estudo de caso de e-commerce de produtos naturais com produtos à base de uxi-amarelo. Os resultados indicaram que os produtos encontrados pela fiscalização não possuíam registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), nem haviam cumprido as obrigações relativas à legislação de acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados.
O crescimento expressivo do comércio digital, que se intensificou no momento de pandemia enfrentado pelo País e o mundo, facilitou a oferta de produtos que se confundem quanto ao seu enquadramento regulatório quando falamos de Medicamentos, Suplementos Alimentares e Produtos da Medicina Tradicional Chinesa. Apesar de todos os expressivos esforços do órgão regulador (Anvisa) no intuito de preservar a saúde da população brasileira, atualmente é possível encontrar e adquirir produtos em lojas virtuais, que irregularmente são anunciados com indicações que ferem a legislação para o enquadramento a que se propõem ou, ainda, informam uma classificação em categorias de produtos que infringem a determinação do órgão regulador. Diante deste cenário, é possível identificar um grande problema de saúde pública, devido ao número de pessoas que consomem estes produtos através da busca espontânea, influenciados pela mídia digital ou ainda pela indicação de colegas, sem a essencial recomendação e avaliação de um profissional habilitado e especializado para tal.
Os produtos são classificados falsamente como suplementos alimentares ou da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), ou mesmo vendidos sem ter o devido registro no País. As vendas ilegais se configuram de diferentes formas: pelo uso, nos produtos anunciados, de substâncias nunca avaliadas e aprovadas pela Anvisa; composições irregulares; falta de identificação de procedência; livre oferta de produtos que deveriam exigir receita médica; alegações falsas ou confusas sobre os efeitos terapêuticos (como prevenção do câncer ou cura de infecções), entre outras situações. Essas práticas ilegais não se restringem apenas aos produtos de origem natural, mas, também, aos medicamentos sintéticos, de forma que as medidas propostas aqui poderiam ter impacto sobre estes crimes de forma transversal.A comercialização de produtos sem registro traz enormes prejuízos para a cadeia produtiva e para o meio ambiente. Hoje já se sabe que a presença de árvores nativas de uxi é bem menor do que há algum tempo, dada a destruição indiscriminada das matas amazônicas. O cultivo sem manejo adequado tende a piorar essa situação, podendo levar à extinção da espécie. Para os povos indígenas e comunidades tradicionais que usam a espécie como um item da sua “farmacopeia”, esta extinção significa ficar sem remédio para uma ou mais enfermidades e sintomas para os quais é indicada.
Além das infrações descritas acima referentes à legislação sanitária, está sendo também infringida a legislação de acesso ao patrimônio genético (PG) e aos conhecimentos tradicionais associados (CTA). São infrações que envolvem não apenas o descumprimento das obrigações acessórias do sistema de gestão do PG e dos CTA, mas, principalmente, a ausência de repartição de benefícios, que furta do País a possibilidade de fortalecer o Fundo Nacional de Repartição de Benefícios, que fomenta ações de preservação da biodiversidade e promove a inovação biotecnológica.
Os produtos irregulares que supostamente utilizam extratos vegetais não possuem qualquer comprovação de segurança e eficácia, de acordo com o exigido pelo arcabouço regulatório, colocando em risco a saúde da população e a efetividade de seu tratamento. Além disso, trazem alegações ilícitas de efeitos terapêuticos, caracterizando diversos tipos penais. Não raro esses produtos são retirados do mercado, sendo reintroduzidos com novos nomes e enquadramentos sanitários.
Para enfrentar esse cenário, entidades representativas de área da saúde, em conjunto com a ABIFINA, mobilizaram-se e formaram um Grupo de Trabalho (GT) que monitora esta prática que, além de ilegal, traz grave risco à saúde da população brasileira. Esse e outros casos têm sido relatados ao Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP), conselho do qual a ABIFINA faz parte e que tem a missão de propor e coordenar ações públicas e privadas para prevenir e combater a pirataria e os delitos contra a propriedade intelectual.
O exemplo do uxi-amarelo explicita como o Brasil tem sido afetado pelo comércio ilegal de produtos fraudulentos e como o País perde a oportunidade de desenvolver medicamentos fitoterápicos seguros e eficazes a partir de sua própria biodiversidade, ainda afetando os provedores de conhecimentos tradicionais, que deixam de receber a repartição justa e equitativa prevista pela Convenção de Diversidade Biológica, pela Lei de Biodiversidade e pelo Protocolo de Nagoya.
- Oliveira ACD, Nogueira M. O caso do uxi-amarelo (Endopleura uchi Huber): da biodiversidade brasileira para a comercialização fraudulenta no Brasil. Rev Fitos. Rio de Janeiro. 2024; Supl(1): e1517. e-ISSN 2446.4775. Disponível em: <https://revistafitos.far.fiocruz.br/?journal=revista-fitos&page=article&&op=view&path%5B%5D=1517>.