A saúde de sua população está entre as principais responsabilidades do Estado. Para tal, um dos principais pontos é contar com um complexo industrial que forneça tratamentos e medicamentos necessários ao bem-estar dos cidadãos. Essa premissa foi seriamente abalada durante a pandemia de covid-19, quando ficou evidente para a sociedade a incapacidade do Poder Executivo de prover o sistema de saúde com vacinas e a dependência do País em relação ao mercado internacional. Já o novo governo acena com uma restruturação do complexo de saúde. No entanto, mais do que autonomia em relação a imunizantes, uma nova política para o setor traria a incorporação de tecnologias avançadas e tornaria as empresas nacionais mais competitivas, com impactos positivos em diversas cadeias produtivas.
Um dos elementos consiste na criação de um sistema de vacinação eficaz, que garanta a imunização dos habitantes. Se, no passado, o Brasil era referência no tema, a recente pandemia de covid-19 evidenciou deficiências e trouxe à tona o debate sobre a produção de vacinas no País. Para a sociedade, ficou clara a necessidade de discutir a construção de uma cadeia produtiva de agentes imunizantes, capazes de tornar o Brasil independente na questão das vacinas e de garantir a segurança nacional.
Não é de hoje que o Brasil é dependente de insumos farmacêuticos produzidos no Exterior em função das fragilidades da cadeia produtiva da saúde. Preocupado em garantir a segurança nacional, o Governo Federal está incentivando o desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), com o intuito de reduzir a dependência do País por meio da produção de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) nacionais, e de incrementar o acesso a serviços de saúde. A meta é que 70% das necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS) sejam produzidas domesticamente nos próximos dez anos.
Uma das ações imediatas mais estratégicas para a reconstrução desta agenda foi a criação do Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (GECEIS), que ficou estagnado nos últimos anos. Dirigentes da ABIFINA e das empresas associadas, representantes dos segmentos farmoquímico e farmacêutico, participaram em abril de evento promovido pelos Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), no qual foi anunciada, entre outras medidas, a remodelação do GECEIS – Decreto nº 11.464, de 3 de abril de 2023, incorporando a participação de representantes da sociedade científica, civil, gestores do SUS, sindicatos e empresários. “Defendemos a importância desse colegiado desde a criação do então GECIS, em 2008. Com o novo modelo de atuação, mais participativo, temos certeza de que teremos muito a contribuir, com o compromisso de colaborar para o aprimoramento do arcabouço legal do setor”, avalia Antonio Carlos Bezerra, presidente-executivo da ABIFINA.
De acordo com Bezerra, o fato de o novo governo já ter demonstrado interesse em promover mudanças na política de Estado para o setor é um alento. “Não tínhamos participação alguma no governo Bolsonaro, que descontinuou diversas Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) e projetos. Em alguns casos, essas parcerias precisarão de mais do que um redesenho. Será preciso reformulá-las mesmo”, adianta.
Para ele, o Poder Executivo vem recuperando ideias de exercícios anteriores em relação ao complexo da saúde. “Ficou claro que há uma sinalização positiva da parte do governo. Já fizemos contatos e levamos uma pauta com sugestões. Ainda não houve ação, mas estamos com boas expectativas”.
Dois projetos de lei merecem especial atenção. O PL 4209/ 2019, que estabelece que medicamentos com IFAs fabricados no Brasil tenham prioridade na análise pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e o PL 1505/ 2022, que cria mecanismos de incentivo e estímulo ao desenvolvimento do CEIS. “Este último traz parâmetros para o Complexo, como estrutura, acompanhamento, sistematização. Ter um arcabouço legal é importante, pois a política para o setor ainda é frágil, fundamentada em decretos e portarias. Essa legislação traz segurança jurídica e previsibilidade”, analisa Bezerra.
Para assegurar investimentos em pesquisa e desenvolvimento no setor farmacêutico, garantindo que as políticas públicas sejam voltadas para o bem-estar da população e para a sustentabilidade financeira, é fundamental definir prioridades claras que preservem a sintonia entre políticas sob responsabilidade de diferentes instituições públicas. De acordo com Carla Reis, chefe do Departamento do Complexo Industrial e de Serviços do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o processo de escolha das prioridades precisa ser socialmente legítimo, construído de modo democrático e resultar de interação entre os diferentes atores e perspectivas, instituições públicas, do setor empresarial e, também, da sociedade civil organizada. “A recriação e a ampliação do GECEIS foi um passo fundamental nessa direção. O BNDES integra o Grupo Executivo e contribuirá para a construção de uma agenda propositiva, especialmente nas políticas de financiamento”.
Carla Reis destaca que o setor farmacêutico avançou muito nas últimas décadas. Em 2003, a indústria investia 1% da receita em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), tendo chegado a 2,6% em 2017, número bem superior ao da média da indústria de transformação, que permaneceu em 0,8%. “Além disso, os avanços qualitativos foram também notórios: nas últimas duas décadas, o setor se adequou às Boas Práticas de Fabricação, dominou a P&D de medicamentos genéricos e, em seguida, incorporou inovações incrementais em suas rotinas. Também vem internacionalizando suas atividades de P&D e investindo, ainda que pontualmente, em inovações radicais”, afirma.
Walker Lahmann, diretor-executivo de Relações Institucionais e Novos Mercados da Eurofarma, concorda com o cenário descrito e acrescenta que, segundo dados da Pesquisa de Inovação (Pintec)/IBGE, os valores absolutos dos investimentos feitos por farmacêuticas de capital nacional são expressivamente maiores do que os realizados pelas empresas de capital estrangeiro. “A Eurofarma, por exemplo, tem mais de 400 projetos no pipeline e investiu R$ 590,6 milhões em P&D em 2022, valor equivalente a 7,4% da receita líquida e 63% superior aos investimentos realizados em 2021”. Segundo ele, o aumento de investimentos em P&D busca garantir a ampliação do acesso da população aos medicamentos, com alta qualidade e preços acessíveis, e contribuir para o desenvolvimento econômico. “O poder público também deve fazer sua parte, com a implementação de ações estratégicas, como garantir segurança jurídica na regulamentação para que as normas permaneçam válidas após o longo tempo de desenvolvimento demandado por medicamentos; revisar a regulação específica para que as regras possam acolher as necessidades da inovação nos dias de hoje, notadamente para registro, pesquisas clínicas e preços de medicamentos; articular a atuação de órgãos governamentais para que possam propiciar e estimular um ambiente propício à inovação e buscar desoneração tributária para internalização de tecnologias inovadoras no País, principalmente para serviços realizados no Exterior”.
Walker explica que, entre os principais obstáculos para o desenvolvimento do setor farmacêutico, estão a ausência de uma legislação mais moderna, a falta de segurança jurídica e uma política de preços que remunere de forma adequada a inovação feita no Brasil. “Sabemos que o Brasil não é protagonista em investimentos em ciência e tecnologia, mas mantemos a honrosa 14ª posição no ranking de países por número de publicações científicas.
No entanto, não conseguimos avançar significativamente no ranking de inovação, figurando no 54º lugar entre os países. Podemos dizer que não conseguimos transformar ciência em inovação. Precisamos de uma política pública que possa integrar a academia aos setores produtivos, sinalizando as necessidades da sociedade”, ressalta ele.
Para que esse investimento em pesquisa e desenvolvimento leve o País a tornar-se mais competitivo no mercado global de saúde, não basta reconhecer a importância da ciência, tecnologia e inovação. “É essencial reestruturar os mecanismos de apoio a essas atividades, para que sejam estáveis e adequados aos diferentes atores e estágios das cadeias de desenvolvimento”, comenta Carla Reis, chefe do Departamento do Complexo Industrial e de Serviços do BNDES. “Por um lado, [é preciso] reativar o sistema de crédito com condições financeiras adequadas e desenvolver mecanismos de compartilhamento de risco para apoiar projetos de inovação radical. Por outro, avançar no fortalecimento e capacitação das instituições científicas e tecnológicas, universidades e startups que atuam na cadeia de pesquisa e desenvolvimento”.
Ela lembra ainda que é necessária a criação de um ambiente propício à interação e a colaboração entre os diversos atores que integram o sistema nacional de inovação.
“O processo de inovação é interativo e, embora em muitos casos possa começar na universidade, com a pesquisa científica, ele só se completa com a introdução das inovações no mercado. Daí a importância central de fortalecer os mecanismos de interação entre empresas e instituições tecnológicas”.
O diretor-executivo da Eurofarma acrescenta que há algumas medidas que podem ser tomadas pelo Estado para fomentar a inovação no País. “Aumento dos recursos e destinados a P&D e melhoria das condições advindos do BNDES e Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), além da ampliação da subvenção econômica para projetos com maior risco e revisão das regras do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) para melhorar a governança e investir em projetos de inovação aplicada. Por último, fortalecer a segurança jurídica e aprimorar a regulação da inovação”, lista ele.
Bezerra acredita que outros pontos devem ser priorizados, como o fortalecimento da Anvisa, que deveria contratar novos servidores e modernizar a área de Tecnologia da Informação, e do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). “O INPI precisa contar com uma estrutura adequada para que faça a análise de patentes mais rápido e com qualidade, de forma a alcançar a meta de concedê-las em, no máximo, dois anos”.
Segundo Bezerra, a reativação do Complexo deve ser inserida como parte de uma política industrial para o setor químico e farmacêutico, com a presença de um marco regulatório consistente ligado ao crescimento econômico.
“Não se trata apenas de obter autonomia na produção de medicamentos e imunizantes. A fabricação local traz desenvolvimento tecnológico, incorporação de novas tecnologias e produtos mais avançados. Esses avanços se espalham por diversos níveis, e não apenas na cadeia farmoquímica.
O resgate dessa política vai ajudar a economia como um todo. Afinal, a saúde responde por quase 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do País. Isso vai gerar empregos e impostos, fazendo a economia girar”, explica.
Opinião semelhante tem Carla Reis, que ressalta que, ainda que a participação do setor no PIB seja significativa, mais importantes são os aspectos sociais, tecnológicos e estratégicos relacionados. “Isso ficou ainda mais claro no mundo que emergiu depois da pandemia de covid-19. A resposta da indústria à pandemia veio na forma de vacinas eficazes e seguras, com tecnologia avançada, que permitiram seu rápido desenvolvimento, o que demonstrou sua relevância para o bem-estar da sociedade”, considera a representante do BNDES.
“Mas a pandemia também escancarou algumas vulnerabilidades das cadeias globais de valor, sobre as quais está organizada a indústria farmacêutica. A complexidade dessa organização somada aos choques de oferta e demanda levaram a interrupções no fornecimento e à escassez de diversos produtos farmacêuticos vitais em todo o mundo. Especificamente em IFAs, os importados representam cerca de 90% de tudo o que consumimos domesticamente”, alerta Carla Reis. O novo cenário suscitou debate em países do Ocidente, que passaram a considerar a possibilidade de repatriar a produção de IFAs e medicamentos. No caso do Brasil, incentivar a produção doméstica desses itens vai além de reduzir a vulnerabilidade. “Na verdade, esse novo contexto geopolítico é uma oportunidade para o Brasil redefinir sua participação na cadeia da indústria farmacêutica internacional, apresentando-se como produtor neutro e confiável de vacinas, medicamentos e IFAs”, ressalta Carla Reis. Resta saber se o País vai ter ambiente e vontade política para tomar as medidas necessárias para dar um salto tecnológico e incrementar sua inserção no mercado.