Consultora de Propriedade Intelectual e Biodiversidade da ABIFINA
As patentes de segundo uso são patentes que protegem novos usos de uma substância já conhecida. Apesar de o Acordo TRIPS definir que os países membros são livres para decidir sobre a patenteabilidade dos usos de produtos já conhecidos, a lei brasileira (Lei nº 9.279/96 – LPI) não incorporou essa flexibilidade. Embora não tenha vedado o patenteamento de novos usos, a lei inseriu critérios nas Diretrizes de Exame de Pedidos de Patentes.
As Diretrizes de Exame – Bloco I (Res. INPI nº 124/2013) definem que, na área farmacêutica, as reivindicações que envolvem o uso de produtos químico-farmacêuticos para o tratamento de uma nova doença devem utilizar o formato de Fórmula Suíça (“Uso de um composto de fórmula X, caracterizado por ser para preparar um medicamento para tratar a doença Y”), tipo de reivindicação que tenta diferenciar o segundo uso de método de tratamento, não patenteável no Brasil.
As Diretrizes de Exame na Área Química (Res. INPI nº 208/2017) consideram que, para ser considerada nova, a invenção de novo uso médico deve revelar a aplicação do produto já conhecido para produzir um medicamento para tratar ou prevenir uma doença diferente e com mecanismo de ação diferente do uso já revelado. As evidências do novo uso devem estar presentes já no ato de depósito, não sendo aceita a comprovação do uso pleiteado no decorrer do exame técnico. Além disso, a comprovação deve ocorrer por meio de testes in vivo, porque nem sempre os testes in vitro confirmam os resultados obtidos in vivo. Ou seja, existe a possibilidade de concessão de patentes de segundo uso médico no País. Entretanto, há regras a serem seguidas pelos requerentes e pelos examinadores do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), o que reduz o número de concessões e as tentativas de proteção de método de tratamento.
No Brasil, os novos usos são passíveis de proteção, mas devem atender aos requisitos e condições de patenteabilidade. Internamente, pedidos de segundo uso são examinados como processos e resultam de P&D que envolve testes pré-clínicos e clínicos e produzem efeitos técnicos. Para o INPI, o efeito de uma patente de novo uso médico é a disponibilização de uma nova opção terapêutica para uma outra doença, em que a nova indicação terapêutica é incorporada à bula do medicamento de referência.
Uma crítica a esse tipo de patente é que a descoberta de um novo uso por si só não seria suficiente para comprovar todos os critérios para a concessão da patente, principalmente a atividade inventiva.
E ainda, que o patenteamento de novos usos médicos aumentaria o escopo de proteção e acarretaria a extensão do monopólio do produto, visto que tais reivindicações conferem proteção para o uso do composto para a preparação de um medicamento para tratamento de uma doença específica. O problema é que quando a patente é obtida pelo mesmo titular da patente do composto original, a extensão do monopólio fica garantida pela nova indicação terapêutica protegida.
Na prática, alguns exemplos evidenciam equívocos cometidos pelo INPI ao longo do exame administrativo. O pedido de patente BR112016017897-1, de titularidade da Astellas, reivindica o uso de gilteritinibe no tratamento de câncer relacionado ao AXL, um receptor de tirosina quinase. Apesar de o INPI ter feito a exigência de retirada do termo “câncer relacionado ao AXL”, por incluir diversos tipos de câncer com efeito não comprovado no relatório, o titular manteve a reivindicação e, mesmo assim, o pedido foi deferido em abril de 2023. A patente original do composto no Brasil vencerá em maio de 2030, enquanto a patente de segundo uso só vai expirar em fevereiro de 2035.
Outro exemplo é a patente BR0606839-1, de titularidade da Wyeth LLC e do The General Hospital Corporation, que protege o uso da composição compreendendo um inibidor irreversível de receptor de crescimento epidérmico (EGFR) na produção de um medicamento para tratar um câncer resistente a gefitinibe e/ou erlotinibe. Apesar de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ter anuído com subsídios, citando o art. 32 da Lei de Propriedade Intelectual, o INPI deferiu o pedido de patente, apenas afirmando que era novo e inventivo, sem ao menos analisar a presença ou não de suficiência descritiva e a clareza e precisão das reivindicações. Isso, apesar de o inibidor incluído no uso protegido na segunda reivindicação incluir também o neratinibe, um inibidor tipo HKI 272, presente no medicamento Nerlynx.
Ainda outro exemplo é a patente BR0618918-0, de titularidade da Nalpropion Pharmaceuticals LLC, que protege o uso de dois compostos para a preparação de um medicamento para o tratamento de uma condição de glicose sanguínea com a característica de resistência à insulina em um indivíduo, em que o primeiro composto é bupropiona e o segundo composto é um antagonista opióide. Neste caso, não houve nem a publicação de um parecer técnico de exame (despacho 7.1), tendo sido deferido diretamente após o despacho 6.20 (exigência pré-exame), com solicitação de adequação do quadro reivindicatório conforme exame internacional. Apenas testes utilizando um único antagonista opioide, a naltrexona, foram mencionados. A doença testada foi diabetes tipo 2. O INPI não deveria ter concedido a patente com reivindicação de uso para tratamento de uma condição de glicose sanguínea com a característica de resistência à insulina, a qual carece de clareza e traz um escopo maior do que o descrito no relatório descritivo. Conforme Diretrizes do INPI, as reivindicações de novo uso devem especificar a doença a ser tratada, não sendo aceitas reivindicações com termos genéricos como síndromes, distúrbios, sintomas, pelo mecanismo de ação ou ainda com trechos relacionados ao esquema terapêutico.
A discussão sobre as patentes de segundo uso voltou à tona quando, em dezembro de 2022, a Anvisa publicou uma consulta pública propondo alterações na RDC nº 47/2009. A referida proposta inclui um parágrafo que diz que “além dos itens citados nos parágrafos anteriores, as bulas dos medicamentos genéricos e similares podem diferir das suas respectivas Bulas Padrão em relação a indicações protegidas por patente”.
A Consulta Pública foi um importante avanço da Anvisa, trazendo a possibilidade de haver bulas de genéricos e similares diferentes das bulas do medicamento de referência para o segundo uso, equilibrando assim o sistema de propriedade intelectual existente tanto para fármacos que já se encontram em domínio público como para novos produtos que estejam entrando no mercado. Porém, alguns cuidados futuros devem ser observados, como evitar a possibilidade de inclusão nessas normativas de uma espécie de linkage, uma medida TRIPs-plus que pode prejudicar a política de genéricos e similares, além de anular uma flexibilidade de interesse para a saúde pública, a Exceção Bolar, presente no art. 43, inciso VII da LPI, que permite a realização de testes e a obtenção de registro sanitário antes da expiração da patente do produto.
1. Estabelece regras para elaboração, harmonização, atualização, publicação e disponibilização de bulas de medicamentos para pacientes e para profissionais de saúde.
2. Vinculação ou efeito entre a patente concedida e registro sanitário necessário para a comercialização do produto.