Na fase crítica da pandemia de covid-19, o Brasil sofreu inicialmente com a falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), álcool 70º, testes diagnósticos, oxigênio e até remédios. Pesquisa recente divulgada em 17 de maio pelo Sindicato dos Hospitais, Clínicas, Laboratórios e Estabelecimentos de Saúde no Estado de São Paulo (SindHosp) com 76 estabelecimentos privados paulistas mostra que 86% deles estão enfrentando atualmente problemas com falta de medicamentos e aumentos de preços. Ainda que o estoque baixo desses produtos não esteja prejudicando o nível de segurança hospitalar, o desabastecimento afeta itens básicos como dipirona, soro fisiológico, Dramin B6 e Neostigmina.
O aumento da demanda mundial por alguns produtos justificou, na época caótica da covid-19, a falta deles em alguns locais. Mas, passados mais de dois anos do início da crise sanitária, por que o mercado nacional volta a sofrer com o encarecimento e falta de medicamentos?
Que lições da pandemia o País precisa extrair para que os problemas vivenciados não voltem a ocorrer? Como outros países estão planejando suas demandas e necessidades em saúde? Formular essas e outras questões ajuda a pensar o futuro que queremos não só para o setor da saúde, mas para o Brasil.
Com a globalização, as etapas de produção de um produto acontecem em diferentes regiões e países, de acordo com as vantagens competitivas dessas localizações. Alguns países – e até a União Europeia – já estão lançando políticas de repatriação de investimentos e começam a trazer para “dentro de casa” atividades produtivas consideradas estratégicas, como a fabricação de alguns produtos e insumos para a saúde. Esse conceito é conhecido no mercado como reshoring. Entre seus benefícios, destacam-se a segurança do abastecimento de produtos críticos, o aumento da resiliência das cadeias de produção, autonomia estratégica e desenvolvimento de autossuficiência tecnológica.
A opção pelo reshoring, além de exigir investimentos significativos, requer muito planejamento, foco e visão de longo prazo. Os Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), substâncias que conferem a atividade farmacológica às vacinas ou medicamentos, são bons exemplos. O Brasil chegou a parar a fabricação de vacinas contra a covid-19 por falta desses ingredientes. Hoje, existem cerca de 2.900 IFAs para medicamentos no mercado nacional. Nenhum país do mundo conseguirá ser autossuficiente na fabricação de todos eles. A Índia, por exemplo, que é um grande produtor de medicamentos, selecionou cerca de
20 IFAS considerados estratégicos e vai investir no seu desenvolvimento e produção doméstica. Já a Suécia monitora, há anos, o risco de escassez de antibióticos, enquanto os EUA traçaram seu planejamento de reshoring para produtos médicos relacionados ao atendimento de casos de urgências, emergências (catástrofes, eventos climáticos e ataques terroristas) e novas epidemias.
A seleção dos critérios para adoção do reshoring é feita por cada país e preferencialmente auxiliada por ferramentas de tecnologias da informação, como algoritmos específicos, análises estatísticas, inteligência artificial e sistemas de banco de dados. É imprescindível que o Brasil aproveite as oportunidades e experiências trazidas pela pandemia, planeje suas demandas em saúde a longo prazo e incentive a adoção de novos modelos de política industrial com potencial de difusão da inovação. Esta é uma das dez propostas do Projeto Saúde São Paulo, iniciativa do SindHosp que visa qualificar, de forma apartidária, o debate político neste ano e construir uma agenda avançada e positiva para a saúde com foco no acesso sustentável. Esse raciocínio também é discutido em uma linha de pesquisa de um grupo da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
O complexo produtivo e industrial da saúde já existente no País possibilita transformar conhecimento em oportunidade, gerando autossuficiência, mais inovação, empregos e riqueza. Com planejamento baseado em dados e a adoção de políticas públicas que insiram a saúde dentro de uma agenda de desenvolvimento econômico e social, é possível diminuir significativamente, a médio prazo, nossa dependência de matéria-prima de origem externa para fármacos e intermediários, inclusive de IFAs.
Iniciativas inovadoras no setor saúde despontam em todo o mundo e estão gerando novas políticas de desenvolvimento. No Brasil, precisamos nos apropriar melhor do futuro e promover as transformações necessárias que visem a inclusão social e o crescimento econômico. A saúde é parte integrante e fundamental desta agenda. Ela é o motor do século 21.
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Com a colaboração de Francisco Balestrin, presidente do SindHosp, Eduardo Mario Dias, professor titular da Escola Politécnica/USP, Sergio Luiz Pereira, professor dr. livre docente da Escola Politécnica/USP e Maria Lídia R. P. D. Scoton, pesquisadora do Grupo de Automação em Saúde (GAESI/USP).