Como se não bastassem as tristes consequências da pandemia da Covid-19, o Brasil ainda precisou conviver com a falta de vacinas. Isso evidenciou para a sociedade brasileira um cenário preocupante: a saúde nacional depende de medicamentos produzidos por outras nações, em especial dos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), base para os imunizantes. Em uma crise sanitária internacional como a atual, a população paga caro – com mortes que poderiam ter sido evitadas. Para debater o tema, a ABIFINA organizou, no dia 17 de março, o webinar “Perspectivas para o fortalecimento da fabricação de IFAs e a vulnerabilidade sanitária do País”, com participação de especialistas e representantes dos setores farmoquímico e farmacêutico.
A opinião unânime dos palestrantes foi que o Brasil precisa traçar uma estratégia para a indústria nacional de IFAs, com um pacote de incentivos de longo prazo. Entre as medidas mais recomendadas está o uso do poder de compra do Estado por meio das PDPs, de encomendas tecnológicas e das licitações públicas para estimular não só a produção, como também o desenvolvimento de inovações.
O presidente-executivo da ABIFINA, Antonio Bezerra, ressaltou que já existia um debate sobre a necessidade de fortalecimento da cadeia produtiva dos IFAs no Brasil, mas o tema ganhou mais força com a pandemia. “Chegamos a um colapso sanitário e hospitalar. Isso só tornou a discussão ainda mais urgente”, afirmou.
A capacidade do Brasil de produzir seus próprios IFAs não é relevante somente por questões estratégicas de saúde. Segundo o economista Nelson Marconi, coordenador executivo do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o segmento é chave para a economia devido ao potencial de ativar o encadeamento produtivo e ajudar o País a equilibrar as contas externas. “O complexo industrial da saúde envolve uma série de subsetores e de serviços, não apenas para atender à população, mas também para desenvolver tecnologias e exportar produtos”.
Marconi lembrou que a exportação de manufaturados vem caindo desde 2008. Atualmente os produtos primários representam 57% e os manufaturados, 29% das vendas brasileiras ao exterior. “É completamente absurdo para um país em desenvolvimento. Andamos 45 anos para trás. A participação dos manufaturados na pauta de exportações hoje é semelhante à de 1976. Teremos que passar novamente por um processo de substituição de importações”.
Outro problema, segundo Marconi, está na taxa de câmbio, que deveria ter ficado em equilíbrio ou levemente depreciada nos últimos anos. “É lógico que, durante o período em que a taxa de câmbio ficou apreciada, entre 2005 e 2019, a estrutura produtiva dos setores se alterou profundamente. Ficou barato importar”. O professor acredita que falta uma política industrial para o Brasil, assim como outra abordagem macroeconômica. “Acima de tudo, é essencial uma reforma tributária que substitua a taxação da produção pela tributação sobre a renda”. Para Marconi, o setor de saúde precisa que o governo invista em ações que levem a um câmbio adequado, taxas de juros competitivas e melhoria da infraestrutura logística.
O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão acrescentou o uso do poder de compra do Estado como medida fundamental. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as compras públicas respondem por 10% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, o que mostra a força desse instrumento, que deveria ser usado como alavanca para a inovação. “Infelizmente, na média, as empresas mais beneficiadas pelas compras públicas são justamente as menos inovadoras”, lamentou.
Ele defendeu ainda um maior uso da encomenda tecnológica pelo governo. Essa iniciativa, no passado, capacitou o Instituto Butantan e Bio-Manguinhos, permitindo que o Brasil agora tenha acesso a vacinas contra a Covid-19. “Só estamos no jogo por conta dessa estratégia adotada pelo País de fazer parcerias entre os setores público e privado. Apesar de termos desenvolvido uma estrutura que é única entre os países latino-americanos, ainda dependemos dos princípios ativos de outros países. Estudo recente mostra que, apesar dessa estratégia ter tido sucesso, é insuficiente para reverter a dependência. O Brasil precisa dar um passo além e isso significa investimento em ciência e tecnologia”.
Entretanto, para avançar, temos que enfrentar várias barreiras, como adequar a legislação tanto para reduzir burocracia, como também para dar mais segurança jurídica aos gestores públicos. A legislação é muito rígida e trabalha basicamente em cima do menor preço. “A encomenda tecnológica é uma modalidade a ser explorada e fortalecida, pela qual o Estado se dispõe a compartilhar o risco de desenvolver um produto”, disse Temporão.
A experiência das empresas que sobreviveram no mercado após diversas crises econômicas mostra que apenas uma política pública de longo prazo terá efeito para a reestruturação da cadeia produtiva. Pelo lado das farmoquímicas, Sergio Frangioni, CEO da Blanver, destacou o tempo necessário para se desenvolver e aprovar um novo IFA. “O setor de IFAs é importante, mas não é reconhecido. Pedimos segurança jurídica e condições iguais. O governo quer apenas comprar pelo preço mais barato. Não vê histórico, criação de empregos, pagamento de impostos. Estamos transferindo postos de trabalho para outros países”, reclamou.
Marcus Soalheiro, vice-presidente da Nortec, concorda com Temporão em relação ao uso do poder de compra do Estado como indutor do desenvolvimento. “No seu plano de governo, o candidato à presidência dos Estados Unidos Joe Biden falava abertamente do uso do poder de compra federal para alavancar a produção local de insumos básicos para a defesa e áreas estratégicas. Hoje, 70% das fábricas que produzem os IFAs estão fora do território nacional e isso é inaceitável para eles”.
Soalheiro apontou que o Brasil tem uma excelente oportunidade no cenário internacional e deve, desde já, incentivar as exportações e marcar posição nos mercados mais regulados. “Os países ocidentais estão loucos para encontrar um substituto para a China na produção de IFAs. A Rússia está se movimentando. É importante assumirmos esse protagonismo”.
No entendimento da indústria farmacêutica, as empresas deste segmento podem auxiliar as farmoquímicas a definirem um portfólio com necessidades não atendidas no País. Gabriela Mallmann, diretora de Qualidade e Assuntos Regulatórios do Aché, lembrou que, nos anos 1970 e 1980, a indústria nacional representava 55% da produção. “Com a abertura comercial da década de 1990, a apreciação da moeda nacional e a elevada oferta de produtos asiáticos a preços reduzidos, muitas empresas nacionais pararam suas produções de insumos”. Mallmann afirmou que um parque produtivo nacional de IFAs mais sólido levaria a uma redução no tempo de produção, nos custos e no risco regulatório para as farmacêuticas brasileiras.
Ogari Pacheco, fundador do Laboratório Cristália, complementou que só vislumbra duas saídas para o setor de IFAs: as farmacêuticas verticalizarem internamente ou o Estado usar seu poder de compra para garantir a demanda. “A rentabilidade está na escala. Isso é irretorquível. Nós [do Cristália] só nos aventuramos em fazer nossa própria matéria-prima porque tínhamos escala. Verticalizamos”. Ele apontou ainda melhorias possíveis nos contratos feitos com o governo.
Jorge Souza Mendonça, diretor do laboratório público Farmanguinhos/Fiocruz, disse que, se o Brasil não aproveitar este momento de esgotamento total de fornecimento da China e da Índia para outros países, mais uma vez perderá o bonde da História. “E temos ótimas fontes naturais de matérias-primas. Somos um dos países mais ricos nessas substâncias”.