Em mais de um ano de pandemia de Covid-19, a precariedade dos esforços brasileiros para combater a doença pode ser vista também na falta de ação concreta para fortalecer a indústria local de insumos, medicamentos e vacinas. É ela que fornece as bases para o enfrentamento desta e de muitas outras crises de saúde pública.
Sabidamente, a humanidade vai se deparar, ao longo da História, com vírus, bactérias e outros agentes infecciosos ainda não descobertos. Como conviver com este fato sem uma cadeia de saúde completa, que vá desde a pesquisa, a fabricação e o fornecimento de tecnologias até os serviços à população?
Trata-se de uma questão complexa que precisa ser solucionada com medidas econômicas estruturantes que ataquem os problemas sistêmicos refletidos no Custo Brasil, abordado ao longo desta edição da FACTO.
A expressão se refere a um conjunto de dificuldades estruturais que comprometem o desenvolvimento socioeconômico. Estamos falando de aspectos trabalhistas, institucionais, tributários, de infraestrutura, corporativos, educacionais, entre outros.
A conta da ineficiência do País é altíssima. Um estudo de 2019 feito pelo Ministério da Economia com o Movimento Brasil Competitivo indicou que o Custo Brasil corresponde a 22% do Produto Interno Bruto (PIB), sugando R$ 1,5 trilhão por ano das empresas.
Segundo a pesquisa, os empresários brasileiros precisam de 1.501 horas por ano, em média, para declarar impostos, contra somente 161 horas anuais nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No Brasil, 65% dos lucros são destinados ao pagamento de tributos, frente a 40% no grupo.
Podemos listar dezenas de impactos do Custo Brasil. A elevada carga tributária restringe a produção e o consumo. Estradas malconservadas, malha ferroviária praticamente inexistente, portos limitados, energia cara e um sistema de comunicações ineficiente provocam perda de produtos, aumento nos custos de transporte e armazenagem, além de atraso nas entregas. Os encargos trabalhistas oneram a folha de pagamentos e a burocracia estatal emperra os negócios. Até a violência e a corrupção pesam no desempenho das empresas.
Os juros elevados e a excessiva depreciação cambial rendem um capítulo à parte por serem os fatores macroeconômicos primordiais que inibem o investimento produtivo. O economista e professor da PUC-SP Antonio Corrêa de Lacerda afirma, na entrevista desta edição, que câmbio, juros e impostos devem estar ajustados ao padrão internacional. Este é o básico a ser feito para dar à indústria condições de competir no mercado global.
A matéria política desta FACTO aponta o problema do Custo Brasil com o alerta de que o caminho sinalizado pelo governo – o da abertura indiscriminada da economia – aumentará a desindustrialização do País, como mostrou a experiência neoliberal dos anos 1990. Neste assunto, fica como ponto de atenção as negociações do Acordo de Compras Governamentais da OMC. Este, como mostra a reportagem, prevê que as licitações públicas não podem ter margens de preferência para produtores nacionais nas licitações públicas e encomendas tecnológicas. A abordagem desse assunto é complementada pelo artigo de Carolina Telles Matos e Fabrizio Sardelli Panzini, que fazem um balanço de negociações comerciais brasileiras recentes.
A demora na concessão de patentes é mais um aspecto frequentemente destacado pelas empresas como entrave ao desenvolvimento. Neste aspecto, pesa o parágrafo único do artigo 40 da Lei da Propriedade Industrial (LPI), que permite a extensão do prazo de patentes e gera prejuízo de R$ 3,9 bilhões ao Sistema Único de Saúde (SUS) apenas com a compra de nove medicamentos, segundo estudo do Instituto de Economia da UFRJ.
A ABIFINA luta contra o mecanismo há anos, tendo somente neste mês de abril conquistado a primeira vitória, com a liminar do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu os efeitos do dispositivo.
A importância dos argumentos da ABIFINA é tamanha que a petição da entidade, na qualidade de amicus curiae, foi a única citada no voto do ministro Toffoli, e por quatro vezes. A decisão vale até ocorrer o julgamento, pelo STF, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Em 2013, a ABIFINA foi a primeira instituição a protocolar uma Adin sobre o parágrafo único do artigo 40 da LPI (mas que, na época, não foi aceita pelo STF).
O artigo do advogado Pedro Marcos Nunes Barbosa, que representa a ABIFINA, explica os fundamentos jurídicos que embasam o pedido de extinção. Para ele, o Brasil adota os direitos de propriedade industrial “em um patamar além do exigido internacionalmente”, indo contra a própria Constituição Federal. A carta magna diz que, se o Estado gera um dano a alguém, este deve compensar tal lesão – o que ocorre com o artigo 40 é justamente o oposto. Além disso, pela Constituição, os direitos intelectuais devem promover o interesse social, além do desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
Devemos lembrar ainda que o arcabouço regulatório é mais um termo fundamental na equação do estímulo à indústria, especialmente para os segmentos farmoquímico e farmacêutico, que são altamente regulados. A ABIFINA, representando as empresas associadas, há meses solicita à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que desvincule as Cartas de Adequação de IFAs (Cadifas) dos registros de medicamentos.
A cobertura do webinar “Perspectivas para o fortalecimento da fabricação de IFAs e a vulnerabilidade sanitária do País”, promovido pela ABIFINA, adiciona alguns elementos à questão. Entre eles, a necessidade de se ampliar o uso do poder de compra do Estado por meio de encomendas tecnológicas e pelas licitações públicas para estimular tanto a produção como as inovações locais.
A presente edição da FACTO faz um mapa bastante amplo dos problemas de competitividade brasileiros, que, de certa forma, podem ser sintetizados na pergunta proposta na matéria do Setorial Saúde: o que deu errado na luta contra a Covid-19? Fora a própria gestão ineficiente da crise, pesam fatores estruturais que vão além dos já comentados. Para o médico sanitarista e ex-presidente da Anvisa, Gonzalo Vecina Neto, as dificuldades começaram em 2014 com a diminuição dos recursos para a saúde. Adiciona-se a isso a fragilização do Programa Nacional de Imunizações e o desmonte da indústria local, que deixou o Brasil à mercê dos países ricos.
O conhecimento detido para fabricação de vacinas foi se perdendo com a substituição dos produtos locais pelas importações então mais baratas (agora muito mais caras com o dólar extremamente elevado e inflacionadas pela alta demanda em função da Covid-19).
Desde sua criação, a ABIFINA defende a diminuição da dependência de insumos para a saúde pública brasileira a partir de um complexo industrial sólido em território nacional, com pesquisa e desenvolvimento, sem depender exclusivamente de fornecedores externos detentores de tecnologias avançadas. Com a pandemia, a entidade reforçou ainda mais a pauta, que ganhou espaço nas instâncias de governo. Porém, sem avanços concretos por enquanto. Para além das necessárias medidas setoriais (tanto para a química fina como para a indústria em geral), o Brasil precisa de políticas públicas amplas, consistentes e de longo prazo para superar o Custo Brasil.
A cadeia da saúde depende disso em todos os seus elos: geração de conhecimento; fornecimento de produtos e tecnologias; regulação; financiamento; capacitação profissional; consumo; distribuição, e serviços. Passou da hora de se compreender que a indústria nacional da saúde é um dos mais importantes pilares do desenvolvimento e que, sem ela, o Brasil não poderá alcançar o avanço econômico e social desejado.