O economista Antonio Corrêa de Lacerda, diretor da Faculdade de Economia, Administração, Contábeis e Atuariais (FEA) da PUC-SP, é claro ao dizer que o Brasil é um dos poucos países com condições de reverter a trajetória de desindustrialização e retomar o crescimento econômico. Em entrevista para a FACTO, ele pontua que, para isso, é preciso abandonar os ultrapassados dogmas neoliberais do Estado Mínimo, do ajuste fiscal a qualquer preço e da abertura indiscriminada da economia. O pacote da recuperação precisa ser completo, o que significa promover condições macroeconômicas que induzam o desenvolvimento, além de medidas para combater o Custo Brasil e promover a inovação, defende o professor.
Presidente do Conselho Federal de Economia e autor de vários livros, Lacerda aponta estratégias para reativar o encadeamento produtivo, como desonerar os insumos para a indústria de transformação local ganhar fôlego, em vez de incentivar a importação de produtos acabados, como acontece hoje. Ele inclui em seu receituário o reforço do papel regulador do Estado, fator essencial para os setores farmoquímico e farmacêutico, que, para se inserirem no mercado global, precisam de uma agência sanitária forte e alinhada aos padrões internacionais.
Quais são os avanços e retrocessos da atual gestão econômica?
A política econômica em vigor no Brasil, além de limitada, ultrapassada e restrita, causa estragos. Um deles, resultado de uma visão simplificadora motivada pelo argumento da racionalização, foi a junção de vários ministérios em um único, o da Economia. Os antigos Ministérios da Fazenda, do Planejamento, da Indústria e Comércio Exterior, e do Emprego e Trabalho (que já havia incorporado a Previdência) estão agora sob um mesmo chapéu. Este é denominado Ministério da Economia, mas, na prática, funciona de forma restrita, sendo mais um “Ministério das Finanças”. Muito ao contrário do prometido, a junção tirou da agenda todos os aspectos envolvidos na questão da indústria.
Não há interlocutores qualificados e empoderados para dialogar com o setor produtivo. Este, envolvido pelo pensamento dominante, com raras exceções, não consegue apresentar e defender uma agenda alternativa. Prevalece o desgastado discurso inócuo das tais “reformas” e a visão equivocada do “ajuste fiscal” e do Estado Mínimo.
Como o governo pode diminuir o Custo Brasil?
Um programa sério para aumentar a abertura da economia passa necessariamente por condições macroeconômicas que favoreçam o desenvolvimento, leia-se câmbio, juros e questão fiscal, ajustadas ao padrão internacional. Precisamos reduzir a burocracia e as distorções tributárias, além de melhorar a infraestrutura e logística; adotar políticas de competitividade que incluam indústria, comércio, ciência, tecnologia e inovação; implementar um programa de desenvolvimento baseado na retomada de investimentos e negociar a abertura de setores da economia brasileira por meio do acesso aos mercados internacionais.
Também é preciso desonerar os insumos para conferir maior poder à indústria de transformação, em vez de estimular a concorrência via rebaixamento das tarifas de importação dos produtos finais. Aqui não se trata de “reinventar a roda”, mas de adotar práticas internacionais bem-sucedidas. Mas, para isso, é preciso se livrar dos dogmas e sair da repetição de mantras que só tendem a criar falsas expectativas e nos desviar do debate essencial.
De que forma o Custo Brasil afeta a indústria brasileira da química fina, em especial os setores farmacêutico e farmoquímico?
O Custo Brasil – ou fatores de competitividade sistêmica desfavoráveis, como se diz tecnicamente – afeta toda a indústria. No entanto, aqueles setores de maior valor agregado e tecnologia avançada, como o fármaco-químico, são ainda mais prejudicados. Na medida em que precisam competir globalmente em setores dinâmicos, sentem mais fortemente a adversidade dos fatores desfavoráveis e a ausência de políticas de incentivo. Isso prejudica a competitividade de toda a economia, uma vez que os produtos do setor são importantes insumos para os demais. Perde a economia com um todo, na medida em que não conseguimos ser competitivos.
Como avalia uma possível abertura comercial ampla e unilateral, por meio da redução de tarifas de importação e de novos acordos internacionais?
A vertente neoliberal dos economistas e empresários apresenta a abertura comercial como a panaceia para os nossos males. Mas uma abertura apressada vista como um fim em si mesmo é um grande equívoco. Vai agravar o processo de desindustrialização em curso, sem trazer os benefícios que promete.
O tema em si não é propriamente novo entre nós. A abertura da economia brasileira começou há 30 anos, no final do governo Sarney, e foi intensificada nos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso. A promessa incrivelmente repetida agora sem qualquer autocrítica era de que abrir nossas fronteiras induziria nossas empresas a ampliar a sua produtividade e competividade, dado o aumento da concorrência com os produtos importados.
Desde então, as alíquotas médias de importação caíram de mais de 40% no final dos anos 1980 para cerca de 11% a 12% em 2020, com algumas alternâncias. A indústria, de forma geral, modernizou suas plantas, adaptou modos de gestão para fazer frente à concorrência, tendo respondido positivamente ao desafio da abertura comercial realizada. A questão é que a melhora do ambiente sistêmico – ou seja, de todos aqueles fatores que independem das empresas ou dos trabalhadores, mas que afetam a competitividade – não avançou na mesma velocidade.
Condições macroeconômicas (juros, câmbio e tributos), logística e infraestrutura, burocracia e instabilidade de regras, além de outros fatores que formam o chamado Custo Brasil, ainda estão longe das médias observadas nos países concorrentes. Particularmente na questão cambial, a política em diferentes governos visou muito mais o objetivo de controle inflacionário do que induzir a geração de valor agregado local e as exportações.
Quais são os desafios da Anvisa em um cenário de aumento da competitividade internacional nos segmentos farmacêutico e farmoquímico?
A questão regulatória é essencial. O Estado pode abrir mão da função de produtor e provedor de serviços. Mas não pode abrir mão da função de regular e fiscalizar as atividades. Nesse ponto, em vez do propalado Estado Mínimo, seja lá o que isso quer dizer, é preciso um Estado necessário e robusto para enfrentar os grandes desafios impostos pela concorrência globalizada, a revolução tecnológica e as novas relações advindas da sustentabilidade.
Um dos fatores que prejudicam a competitividade no Brasil é a extensão da validade das patentes quando há atraso em sua concessão. Quais perspectivas se abrem caso esse mecanismo seja extinto?
Não sou especialista na área para me aprofundar na análise da propriedade industrial e seus impactos. Mas, de forma geral, tudo o que se constitui em entrave para a inovação, tudo o que está em dissintonia com as melhores práticas internacionais prejudica nossa competitividade, afetando negativamente a capacidade de geração de renda e emprego.
O que esperar da Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual? Quais ações devem ser priorizadas em um primeiro Plano de Ação para estimular a competividade e a inovação no País?
Não é preciso reinventar a roda. Temos excelentes especialistas no tema, brasileiros com experiências internacionais em governos, órgãos multilaterais, universidades, associações, institutos e empresas. É necessário aproveitar esse imenso cabedal de competências para criar uma estratégia, um plano de ação, abarcando as melhores práticas internacionais e as potencialidades brasileiras.
Que outras medidas podem ser adotadas para fortalecer a indústria nacional e incentivar a retomada do crescimento?
É possível reverter a desindustrialização em curso no Brasil e promover uma reindustrialização. No entanto, isso não será fácil, tampouco algo automático ou natural. Deverá ser um processo induzido, mediante a criação de um ambiente macroeconômico mais favorável à produção e a adoção de políticas de competitividade, além do fomento à inovação e cultura empresarial com o intercâmbio universidade-institutos de pesquisa-empresas.
Vale destacar que as três esferas citadas – macro, meso e micro – são complementares e interdependentes. A falsa ideia da “compensação” não funciona, até mesmo porque é impossível balancear a competitividade, ainda mais em uma economia global, com base apenas em uma das vertentes.
É importante ainda ressaltar que se reindustrializar não é para quem quer, mas para quem pode. E o Brasil pode! Primeiro, porque detém economias de escala e de escopo. Explique-se: tem um mercado consumidor dos maiores do mundo, o que viabiliza muitas atividades por aqui. Isso é para poucos!
Mas, se nosso País é detentor de tamanha potencialidade, por outro lado tem uma política econômica de cunho liberal; a ausência de um pensamento econômico da produção por parte das entidades representativas da indústria; e um “pensamento único” vigente pautado no (falso) debate econômico que chega ao grande público basicamente por meio dos grandes meios de comunicação.