Criadas para ampliar o acesso da população a medicamentos considerados estratégicos para o Sistema Único de Saúde (SUS) e reforçar as capacidades do Complexo Industrial da Saúde (CIS), as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) têm enfrentado percalços desde que foram criadas, em 2009, pelo Governo Federal. Dificuldades técnicas de desenvolvimento, cobranças de órgãos de controle e até quebra de contratos dividem especialistas e colocam em questão sua continuidade. No entanto, há quem considere que as PDPs continuam sendo uma estratégia eficaz para reduzir a dependência brasileira por Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) e medicamentos prontos, evidenciada durante a crise causada pela pandemia de Covid-19.
Estratégica, a indústria de saúde nacional convive com problemas, de fiscais ao arcabouço jurídico. O resultado não poderia ser mais grave: a dependência do Brasil de medicamentos produzidos no exterior, o que, em momentos de crise, pode colocar em risco sua população. Por exemplo, de 50% a 85% dos IFAs necessários para fabricação de remédios sintéticos utilizados no País são fabricados no exterior. “Sempre fomos dependentes de importação de insumos estratégicos como os IFAs e, também, de produtos acabados”, pontua a doutora em Ciências da Saúde e ex-coordenadora do Complexo Industrial da Saúde do Ministério da Saúde Mirna Poliana Furtado. Para ela, a independência na produção de medicamentos importantes para sua população deveria ser uma política de estado. “Não tenho dúvidas de que a autonomia científica, tecnológica e produtiva na área de saúde é questão de segurança e soberania de uma nação. Infelizmente, foi preciso vivenciarmos uma pandemia como a da covid-19 para reconhecermos a fragilidade do Brasil e a importância de investir em políticas públicas que apoiem o fortalecimento da indústria nacional”.
Se as PDPs ainda enfrentam críticas e contínuas solicitações de ajustes por parte dos players do mercado, na opinião de Mirna Furtado não há como negar sua contribuição para o desenvolvimento do CIS. Ela é uma das que acredita no bom desempenho do modelo. “Nos últimos anos, a indústria privada nacional investiu aproximadamente R$ 4 bilhões em modernização de plantas produtivas e formação de recursos humanos e estabeleceu cooperações com o mercado internacional com o intuito de trazer para o Brasil tecnologias estratégicas. Avançamos muito, por exemplo, na área de sintéticos, com a produção de medicamentos antirretrovirais, antipsicóticos e antivirais. Igualmente, os laboratórios públicos, como Butantan, Biomanguinhos e Farmanguinhos, evoluíram na absorção de tecnologias de medicamentos sintéticos, produtos biológicos e vacinas, modernizaram seus parques industriais e também capacitaram suas equipes por meio da troca de experiências com parceiros privados”.
No entanto, as farmoquímicas se queixam de pouca inclusão no processo. Antônio Carlos Teixeira,
diretor-executivo da Globe Química, acredita que as PDPs têm promovido o desenvolvimento verticalizado das farmacêuticas e farmoquímicas nacionais, gerando produtos com melhores condições comerciais. “Mas para estas últimas o modelo ainda não foi capaz de entregar oportunidades de desenvolvimento à altura do projeto original. Volumes abaixo da expectativa ou aquém do cronograma inicial resultam em desequilíbrios financeiros em muitos projetos”, diz.
De acordo com Mirna Furtado, a indústria farmoquímica ainda ocupa papel modesto na cadeia produtiva de saúde do Brasil. “Uma das razões é a falta de política pública estruturada; outra, a competição com países como China e Índia, que possuem custos de produção bem menores que os nossos, pelo investimento que fizeram em fábricas, mas, também, por suas peculiaridades ambientais, trabalhistas, regulatórias e fiscais. No entanto, apesar dos obstáculos, o segmento tem crescido nos últimos dez anos, chegando inclusive a exportar alguns insumos”. CEO da Blanver Farmoquímica, Sergio Frangioni reforça. “Ainda há casos em que, mesmo que existam produtores nacionais de um determinado IFA, a indústria prefere importar. A inexistência de um marco regulatório sobre o tema deve ser tratada com urgência”. Para Mirna, esse é um assunto prioritário.
Segundo Jorge Souza Mendonça, diretor do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz), as farmoquímicas estão particularmente vulneráveis por conta da insegurança jurídica. Ele afirma que um novo marco regulatório deve trazer melhor detalhamento de algumas fases e maior possibilidade de flexibilização de cronogramas e prazos. “Os projetos aprovados precisam de sustentabilidade econômica para se desenvolver. Não confundir incentivo com reserva de mercado; basta o estabelecimento de regras igualitárias, fiscais e regulatórias, com os IFAs importados”. Teixeira, da Globe, complementa: “Esse marco deve contemplar a adoção de IFAs nacionais desde o primeiro ano. O desencontro entre o início do projeto e sua efetivação conduzem a retrabalho e mais custos”.
Em geral, as farmoquímicas entram efetivamente na parceria no terceiro ano. No entanto, é justamente nos primeiros meses do processo que são realizadas atividades relacionadas à absorção da tecnologia do insumo, como treinamentos, desenvolvimento e testes de qualidade. Dessa forma, as farmoquímicas contam apenas com um ou dois anos para obterem os lucros dos investimentos feitos no projeto, o que leva muitas a desistirem devido à inviabilidade econômica. Mirna Furtado garante que essa realidade só será mudada se o marco regulatório incluir a mudança da configuração das cooperações. “A seleção de PDPs deveria partir do IFA considerado estratégico para o País e, então, o governo escolher os melhores parceiros farmacêuticos para fabricação do produto acabado. A legislação poderia também prever priorização e/ou valorização de insumos nacionais, resultantes dos projetos apoiados com recursos públicos. O único critério previsto é o menor preço e, dessa forma, a indústria nacional quase sempre perde a concorrência para fornecedores estrangeiros”. Segundo Antônio Carlos Teixeira, é possível sim avançar muito mais rápido e ampliar a disponibilidade, para o sistema público, de insumos fabricados no País. “Temos que ter uma política que incentive a compra de medicamentos produzidos com IFAs nacionais em licitações abertas”, reitera.
As alterações regulatórias não param por aí. Para que as empresas privadas se sintam seguras e interessadas em participar das PDPs, são necessárias garantias jurídicas. “Temos que estimular maior participação da iniciativa privada, com arranjos produtivos mais flexíveis e garantias ao Estado sobre a propriedade da tecnologia. Além disso, um novo marco regulatório deve contemplar indicadores e ritos para avaliação e controle das parcerias, com o objetivo de imprimir mais transparência e eficiência ao programa”, explica Mirna. “É preciso, acima de tudo, segurança jurídica para quem investiu. O processo não pode ser interrompido e os contratos, quebrados”, adverte Sergio Frangioni, CEO da Blanver.
Órgãos de controle externo da União (CGU e TCU) têm cobrado mais monitoramento e formas de avaliação das PDPs, sugerindo dúvidas quanto à eficácia destas e sua importância para a sociedade. “A maior fragilidade do programa foi crescer sem critérios e regras para avaliação de seus impactos no sistema. Acredito que o monitoramento contínuo por meio de indicadores de processos, estruturas e resultados para as parcerias vigentes podem contribuir para demonstrar a importância desse modelo e indicar pontos de ajustes e melhorias”, aposta a ex-gestora da área. O diretor da Farmanguinhos, Jorge Mendonça, ressalta que as principais exigências dos órgãos de controle dizem respeito a comparações de preços entre medicamentos de PDPs e os de mercado. “Entretanto, essa situação não é justa, pois o preço dos produtos resultantes dessas parcerias inclui a transferência da tecnologia para o laboratório público. Há necessidade urgente de alinhamento com esses órgãos para melhor funcionamento do modelo, assim como de um esforço junto ao poder legislativo para que sejam aprovadas leis específicas para este tema estratégico para o País”. Para Frangioni, da Blanver, só se pode tecer comparações entre situações nas quais são usados mesmos pesos e medidas. “É essencial termos isonomia sanitária, jurídica, ambiental e trabalhista”, reforça.
Para o CEO da Globe, o ponto principal das PDPs consiste na capacitação da farmacêutica pública e o desenvolvimento dos IFAs por produtores nacionais. “A capacidade financeira das farmoquímicas e os custos de desenvolvimento relacionados não são compatíveis com os atuais prazos de inclusão e os riscos de suspensão dos projetos. As cobranças, pelo Ministério da Saúde, devem ser estruturadas e ampliadas, assim como os contratos de fornecimento, honrados”.
Entre as dificuldades técnicas, uma das principais é o tempo necessário para a transferência de tecnologia entre empresas privadas e instituições públicas e a consequente chegada do produto acabado ao público consumidor, que pode levar mais de seis anos. “No início o tempo médio de desenvolvimento de um IFA era de 36 meses. Hoje, graças à capacitação das equipes, está em 24 meses e vem sendo reduzido”, salienta o CEO da Globe. Sergio Frangioni, da Blanver, afirma que os prazos poderiam ser flexibilizados: “Depende da complexidade do medicamento que está sendo desenvolvido”, pondera. Para Mirna Furtado, sob a ótica de mercado, as PDPs podem dar a impressão de lentidão, produtos obsoletos e caros para o Estado. “Mas não vamos conseguir mudar o patamar tecnológico do Brasil se não apoiarmos políticas públicas como essa. E esse apoio inclui um arcabouço jurídico mais robusto e seguro, programas de incentivo fiscal e financeiro, educação continuada voltada para as demandas do setor, integração entre os diferentes setores do governo e sociedade e controle e monitoramento das ações e estratégicas adotadas”.
Para Antônio Carlos Teixeira, o desenvolvimento das PDPs está associado à decisão política do País quanto à autossuficiência em, ao menos, produtos estratégicos, como antibióticos, analgésicos, anestésicos, vacinas, medicamentos oncológicos e associados ao envelhecimento populacional. “Hoje enfrentamos a deficiência de oferta de insumos básicos da indústria química, majorações constantes dos custos dos fretes e incertezas quanto à continuidade das demandas públicas. Para mudar esse cenário, precisamos promover encomendas tecnológicas, associadas a políticas de fomento à pesquisa farmoquímica. A inação poderá contribuir para a efetiva desmobilização das estruturas fabris no País e elevar os riscos de um futuro desabastecimento”.
Ajustes precisam ser feitos, mas o futuro passa pelo desenvolvimento das PDPs, realça Mirna Furtado. “Um dos caminhos a serem desenvolvidos é o incentivo à indústria petroquímica e de química fina nacional para que atenda às demandas da indústria farmoquímica. Investir na verticalização da produção nacional é a estratégia mais efetiva para reduzir os preços dos insumos – e isso passa pela estruturação da indústria de base. Incentivos fiscais e garantias de compra dos insumos produzidos em território nacional são estratégias importantes de apoio ao fortalecimento do setor. Se o Brasil permanecer adquirindo insumos da China e Índia porque os preços são mais vantajosos, nunca deixará de ser dependente”.
O diretor do Farmanguinhos, Jorge Souza Mendonça, considera que as PDPs têm servido ao seu propósito de incentivar a indústria nacional e fortalecer o CIS, reduzindo a dependência do País, fortalecendo os laboratórios públicos e ampliando o acesso da população a tratamentos. “Críticas existem, mas não se pode deixar de lembrar que esse modelo mal completou dez anos e já apresenta resultados importantes. Nesse período, ainda que de forma insuficiente, tem funcionado como mola propulsora para o desenvolvimento do setor. Por isso a necessidade de uma política de Estado constante e duradoura, com planejamento de médio e longo prazo”. Para Sergio Frangioni, a receita de sucesso do modelo pode ser resumida em três aspectos: “Regras claras, transparência e segurança jurídica”, finaliza.