REVISTA FACTO
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Mai-Ago 2020 • ANO XIV • ISSN 2623-1177
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//Especial COVID-19

A HORA DA VIRADA PARA A INDÚSTRIA FARMOQUÍMICA

Grandes crises podem acelerar mudanças socioeconômicas até então incipientes. Com a covid-19, algumas empresas já começam a pensar no trabalho à distância como opção permanente e a tecnologia deverá permear ainda mais outras esferas da vida, como a educação. A sociedade começa a refletir sobre hábitos de consumo minimalistas, enquanto confere maior valor aos cuidados com a saúde e às experiências pessoais. A noção de que o Poder Público é fundamental para sustentar os processos de desenvolvimento também fica mais evidente. Da mesma forma, o combate à covid-19 tornou urgente, no Brasil, o que já se conhece de longa data: a extrema necessidade de o governo incentivar a estruturação de um parque industrial de saúde apto a atender a população mesmo em um cenário de desabastecimento global.

Nesse cenário, as entidades setoriais ABIFINA, Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêu­ticos (Abiquifi), Associação dos Laboratórios Farma­cêuticos Nacionais (Alanac) e Grupo FarmaBrasil formularam o documento “Propostas da indústria brasileira de insumos farmacêuticos e medicamentos – Aprimorando caminhos e estratégias rumo ao adensamento da cadeia produtiva brasileira”. 

A ABIFINA conferiu especial atenção ao segmento de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) na construção do documento, por ser o elo mais frágil na produção de medicamentos. Os avanços recentes obtidos com o novo marco regulatório de IFAs reforçam uma conjuntura que pode ser, pela primeira vez em três décadas, bastante favorável ao renascimento do parque industrial, o que é uma agenda permanente da ABIFINA desde sua criação. Mas as propostas também miram a verticalização de toda a cadeia produtiva e incluem incentivos para a aproximação entre a indústria petroquímica e a de química de base, para consolidar os elos faltantes de intermediários de síntese e de materiais de partida. 

O documento foi entregue aos Ministérios da Economia, da Defesa e da Ciência, Tecnologia e Inovações, além de outros órgãos do Governo Federal. Nele constam 29 propostas distribuídas em nove eixos: enquadramento de IFAs e medicamentos como produtos estratégicos de defesa (contra ameaças baseadas na saúde pública, como bioterrorismo e epidemias); produção de IFAs; uso do poder de compra público; regulação sanitária; ambiente econômico e financeiro; inovação; propriedade intelectual; internacionalização e mitigação dos impactos econômicos da pandemia.

Como primeiro resultado da iniciativa, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações criou, em julho, o grupo de trabalho GT-Farma para discutir e formular, no período de 180 dias, uma proposta de política de desenvolvimento tecnológico e de incentivo à inovação voltada para os segmentos de insumos farmacêuticos e de medicamentos. Formado por membros do próprio Ministério, o GT-Farma aceitará cientistas e representantes da sociedade civil como convidados, sem direito a voto.

Na primeira reunião do GT-Farma, foi apresentada a matriz de IFAs produzidos no Brasil, um levantamento feito pela ABIFINA e a Abiquifi junto a seus associados (veja o gráfico). Dos 124 IFAs identificados, apenas 15 estão listados na Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde com Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) vigentes, o que representa 12% dos insumos produzidos.

INCENTIVO PELAS COMPRAS PÚBLICAS 

Na área farmoquímica, o documento aponta a necessidade de uma política específica para o setor. Uma das propostas é criar uma lista de IFAs prioritários que podem ser fornecidos para o Sistema Único de Saúde (SUS) para mitigar a dependência externa de produtos estratégicos. Isso pode ser feito pelo uso do poder de compra do Estado, como nas PDPs – que reúnem laboratórios públicos e empresas privadas para fabricarem medicamentos para o SUS. 

Outra modalidade seria incluir margem de preferência em licitações públicas para laboratórios farmacêuticos que usem IFA nacional, assim como para a própria compra de IFAs e de Insumos Farmacêuticos Ativos Vegetais (IFAVs). O documento recomenda ainda a “discussão de outras formas jurídicas do uso do poder de compra como os contratos de competitividade em saúde, encomendas tecnológicas, medidas de compensação em saúde etc.”.

“Muitas moléculas são antigas, portanto não estão mais sob a proteção de patentes, e podem ser desenvolvidas no Brasil”, explica Antonio Carlos Bezerra, presidente‑executivo da ABIFINA. Ele defende que pode também ser feita uma avaliação prospectiva das moléculas que terão patentes expiradas nos próximos anos. 

O monitoramento daria base para, desde já, se criar uma aproximação entre indústria e instituições de pesquisa para iniciar o desenvolvimento dos novos genéricos. Mas a união desses atores poderia atender também à criação de inovações incrementais e radicais. Um primeiro passo entre as ações recomendadas no documento, é o mapeamento da demanda tecnológica das empresas para ser apresentado às universidades. 

Outras medidas são a oferta de um plano de subvenção, editais de fomento, bolsas de pesquisa e formação profissional em áreas mais demandadas pela indústria, como desenvolvimento, produção, controle de qualidade, biotecnologia e pesquisa clínica. 

A área de biofármacos poderia se beneficiar de todos esses instrumentos no Brasil, único dentre os 15 maiores mercados farmacêuticos que não domina essa tecnologia, de acordo com dados mencionados pelo diretor científico e de Negócios da Bionovis, Thiago Mares Guia, em uma apresentação em julho. Não existe hoje produção local de IFA biofarmacêutico, apesar de o Ministério da Saúde ser um dos maiores compradores do mundo. Ainda nesse segmento, é necessária uma regulação adequada que dê segurança para a produção, inclusive de biossimilares.

MELHORIAS REGULATÓRIAS

Segundo a ABIFINA, 90% dos IFAs usados pelas farmacêuticas instaladas no Brasil são provenientes do exterior, especialmente da China e da Índia. Entre os problemas enfrentados pelos fabricantes de IFAs estão o desmonte do parque produtivo ao longo dos anos em função de políticas públicas desastrosas e a falta de isonomia regulatória com os estrangeiros para as empresas sobreviventes.

A instituição de uma via rápida (fast track) na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para petições relacionadas a IFAs nacionais é uma recomendação das associações para enfrentar o problema, conforme consta no documento. O mecanismo estimularia inclusive que os laboratórios farmacêuticos adotassem fornecedores nacionais regularizados. Outra frente é o governo incentivar a criação de empresas de base tecnológica.

Já as farmacêuticas que trocassem seus fornecedores de IFAs estrangeiros por nacionais poderiam, segundo as propostas da indústria, contar com incentivos indiretos como redução de impostos para compra de equipamentos e fábricas, depreciação acelerada, entre outros.

As novas resoluções da Anvisa que entraram em vigor em agosto deste ano para normatizar o dossiê de IFAs já haviam estabelecido avanços importantes para incentivar a produção interna. O novo marco regulatório exige inspeções obrigatórias in loco nas fábricas estrangeiras que exportam para o Brasil, o que há muito tempo já era determinado para os fabricantes nacionais. Agora a indústria propõe um passo além, que é instituir, para o fabricante nacional, os mesmos procedimentos colocados para os estrangeiros nessas inspeções. Desta forma, ambos podem concorrer sob regras idênticas.

Outra questão importante é que, antes do novo marco regulatório, mesmo que um laboratório farmacêutico quisesse trocar o fornecedor estrangeiro por um nacional, isto seria pouco provável, pois era muito burocrático e custoso. A criação da Carta de Adequação do Dossiê de IFA (Cadifa) simplificou o processo, o que resultou num estímulo para a adoção de novos fornecedores instalados no País. 

Diante da dificuldade de se importar insumos em meio à pandemia, este último ponto é de fundamental importância. “Em razão da covid-19, o alto custo do frete aéreo e as rotas fechadas abalaram a cadeia global de suprimentos. Precisamos diminuir a vulnerabilidade brasileira que reside na dependência das importações de IFAs”, diz Bezerra.

Em 2019, o Brasil importou US$ 2,26 bilhões de insumos farmacêuticos ativos, evidenciando um aumento de 5,17% em relação ao ano de 2018 (US$ 2,14 bilhões). “É fundamental que o segmento de insumos farmacêuticos seja fortalecido para que não venha a comprometer a trajetória da indústria farmacêutica brasileira como um todo. Enfatiza-se a importância da criação e do desenvolvimento de capacitações tecnológicas na indústria de insumos farmacêuticos brasileira, para que o País venha a ampliar a base interna de produção de fármacos”, aponta o documento.

A heparina está entre os dez IFAs mais importados, fato que demonstra bem o desperdício do potencial do Brasil para a fabricação local de insumos. O anticoagulante, que inclusive vem sendo testado para tratamento da covid-19, tem a matéria-prima extraída da mucosa intestinal suína ou bovina – recursos que o País possui em abundância por ser um dos maiores produtores de proteína animal do mundo.

As etapas seguintes da cadeia envolvem a fabricação da heparina crua, do IFA heparina sódica purificada padrão injetável e do medicamento heparina sódica injetável. Segundo a Abiquifi, nove empresas no País produzem a heparina crua e duas, o IFA. Com os fornecedores chineses impossibilitados de atender à demanda mundial, esta é mais uma janela de oportunidade que deve ser aproveitada pelos brasileiros.

INSUMOS DA NATUREZA

A megabiodiversidade brasileira é outra vantagem competitiva para a indústria nacional. A diretora para Assuntos da Biodiversidade da ABIFINA, Cristina Dislich Ropke, discorre sobre o maior espaço existente hoje no mercado para produtos da natureza, o que demandaria modernização regulatória e de investimentos em pesquisa.

O plano proposto pela indústria recomenda a revisão do marco regulatório de fitoterápicos para estimular a produção de IFAVs por indústrias nacionais e o uso da biodiversidade brasileira em medicamentos. Também sugere uma fiscalização sanitária mais intensa no segmento para combater a venda indiscriminada de produtos feitos sem respeitar as Boas Práticas de Fabricação.

“Nos últimos anos, a Anvisa tem projetado o Brasil para uma harmonização com o cenário internacional em diversas esferas de sua atuação, o que abre uma grande oportunidade de entrada no mercado mundial para os medicamentos fitoterápicos brasileiros. Além do acesso ao patrimônio genético para descoberta de novas moléculas, o acesso ao conhecimento tradicional associado por meio de estudos de etnobotânica tem se revelado uma estratégia vencedora na descoberta e desenvolvimento de fitomedicamentos inovadores”, afirma Cristina, que é também diretora de Inovação da Centroflora.

Segundo a especialista, estima-se que até dois terços dos fármacos modernos possuam alguma relação com produtos naturais, mesmo que muitos sejam obtidos por rotas sintéticas ou semissintéticas. Isso porque variedade biológica implica em diversidade química, um dos fatores-chave para a inovação farmacêutica. 

Logo, o Brasil tem grande potencial para desenvolver produtos inovadores a partir de sua própria biodiversidade voltados para necessidades médicas não atendidas. “Isso aumenta ainda mais a necessidade de preservar nossa floresta, que é um rico patrimônio vegetal e de alto valor agregado, uma vez que patentes têm sido licenciadas por valores significativos, acima de US$ 30 milhões na fase de discovery, chegando até US$ 1 bilhão dependendo do tipo de química molecular que é feita ao redor desses esqueletos inovadores”, ressalta.

Projeto de Lei: isenções e financiamento

O Projeto de Lei 2585/20, em tramitação na Câmara dos Deputados, institui um programa para incentivar a produção de insumos e equipamentos nacionais de saúde, contemplando isenções e financiamentos de longo prazo com juros nulos ou reduzidos. O autor da proposta, deputado Damião Feliciano (PDT-PB), afirmou à Agência Câmara de Notícias que o estado de calamidade provocado pelo surto da covid-19 demonstrou a necessidade de autonomia na produção de equipamentos e insumos na área de saúde. “A nossa enorme dependência externa é uma fragilidade que põe em risco a saúde e, em última instância, a própria sobrevivência da Nação”.

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