Com a posse do novo governo, aumenta a expectativa de mudanças significativas na condução das políticas econômica e de comércio exterior brasileiras. Já na campanha eleitoral, o atual presidente defendeu a negociação de acordos bilaterais com países desenvolvidos, principalmente os Estados Unidos. Mais recentemente, o novo chanceler, Ernesto Araújo, reforçou o interesse do governo federal em estreitar relações com os EUA. Segundo especialistas, a ênfase em acordos bilaterais representa uma mudança na tradição diplomática brasileira do multilateralismo. No entendimento da ABIFINA, traz, ainda, desafios referentes à propriedade intelectual (PI), pela alta probabilidade de aprofundamento das cláusulas TRIPs, restringindo as flexibilidades previstas, especialmente na área da saúde, como já acontece com diversos acordos de livre comércio em vigor, notadamente aqueles com participação americana.
A inserção do Brasil no comércio global é necessária. Segundo dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI), apesar de ser a 10ª economia global, o País tem uma participação nas trocas comerciais internacionais abaixo dos 2%, com acesso preferencial a menos de 10% do fluxo mundial de bens. É importante, entretanto, estarmos atentos aos interesses brasileiros e às regras dos tratados de livre comércio que, muitas vezes, vão além das normas previstas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), como no caso dos dispositivos TRIPs Plus (TRIPs+) – regras para PI mais rígidas que as previstas no Acordo TRIPs, principal marco regulatório multilateral sobre o tema.
Desde 2000, observa-se um aumento contínuo do número acordos internacionais que incluem alguma previsão para PI. De acordo com o gerente de Negociações Internacionais da CNI, Fabrizio Sardelli Panzini, em sua participação na nona edição do Seminário Internacional Patentes, Inovação e Desenvolvimento – IX SIPID, antes de 1995, 37% dos acordos em vigor incluíam cláusulas sobre o tema. Desde 2009, esse número está em 96%. O quadro na página a seguir traz um levantamento feito pela Confederação dos principais acordos em vigor/negociação e as matérias reguladas por dispositivos TRIPs+.
Uma das áreas mais afetadas é a da saúde, sendo esse um dos principais motivos de atenção para o Brasil. Dos 170 acordos em vigor na OMC que tratam de PI, 55% possuem artigos específicos sobre fármacos, ampliando a abrangência e as proteções previstas originalmente pela OMC. Quando das negociações para o TRIPS, havia uma grande preocupação com saúde pública e acesso a medicamentos. Como reflexo disso, foram previstas flexibilidades que permitissem aos países signatários a adoção de medidas que reduzissem os custos das políticas de saúde, como o licenciamento compulsório e a produção de genéricos. Tais medidas permitiram ao Brasil, nas últimas duas décadas, construir sua bem sucedida política pública de genéricos.
Entretanto, com o aprofundamento das cláusulas de TRIPs em acordos internacionais, tais flexibilidades têm sido restringidas. Não só isso como os prazos para patentes vêm-se ampliando para além dos vinte anos previamente estabelecidos, podendo chegar a trinta anos em alguns casos. Há ainda previsão patentária para segundo uso de medicamentos, quando se descobre uma nova aplicação de um fármaco já conhecido e registrado – regra criticada por não atender aos requisitos de inovação. A exclusividade de dados, quando se protegem os resultados de testes clínicos e laboratoriais já realizados para determinado medicamento, é outro dispositivo TRIPS+ controverso. A não permissão de uso dos dados já existentes dificultaria e encareceria a produção e a comercialização de genéricos ao exigir a realização de testes a partir do zero.
Todos esses dispositivos estão previstos hoje em acordos dos quais fazem parte os Estados Unidos, país que costuma disciplinar o maior número de matérias em patentes farmacêuticas, e com regras mais rigorosas. Tanto o Transpacific Partnership (TPP) , do qual os americanos se retiraram recentemente, quanto a atualização do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta 2.0, como vem sendo chamado) preveem cláusulas mais rígidas para as patentes da área da saúde. O Nafta 2.0 inclusive aprofunda as já rigorosas normas previstas no TPP, conforme pode ser visto no quadro ao lado. Ao aderir a tais acordos, os países signatários são obrigados a mudar as próprias legislações nacionais. No caso da adesão ao Nafta 2.0, México e Canadá precisariam adequar suas leis ao que está previsto no tratado, fornecendo novas exclusividades para empresas farmacêuticas. Isso limitaria a concorrência dos genéricos e poderia aumentar os preços dos medicamentos disponíveis no mercado interno de ambos os países.
Essa é a preocupação da indústria farmoquímica e farmacêutica nacional. Com a proposta do novo governo de estreitar relações comerciais com os Estados Unidos através de acordos bilaterais, são grandes as chances de uma imposição das regras TRIPs+. Isso poderia afetar a política de genéricos que, desde 2010, proporcionou ao Ministério da Saúde uma economia de R$ 5,2 bilhões na aquisição de medicamentos, segundo dados do próprio MS. Outra consequência seria o retardo da entrada dos biossimilares no Brasil. Hoje, as drogas biológicas representam apenas 2% das compras públicas de fármacos, mas consomem 41% do orçamento, devido ao grande número de produtos sob proteção patentária. A partir de 2020, dezenas de patentes de medicamentos biológicos de referência começam a expirar. Sem a possibilidade de produção de biossimilares, o custo para a sociedade brasileira continuaria em níveis altíssimos.
O entendimento da ABIFINA é que, ao negociar qualquer acordo internacional, bi ou multilateral, o governo tenha em mente a necessidade de se buscarem dispositivos que promovam a competitividade e beneficiem o País, mas sem prejuízo às indústrias locais. Antecipando possíveis cenários referentes ao tema da Propriedade Intelectual nos tratados de livre comércio, a entidade planeja, no início de 2019, iniciar um monitoramento pró-ativo desse tema.
Referências:
- “Nafta 2.0. Chapter 20. Pharmaceutical-related patent provisions”, disponível em https://www.citizen.org/sites/default/files/nafta-2.0-pharmaceuticalrelated- patent-provisions.pdf
- “The curious case of monopoly rights as free trade: the TPP and Intellectual Property and why it still matters”, disponível em https://www.jstor.org/stable/10.5325/jinfopoli.7.2017.0204
PROPRIEDADE INTELECTUAL NO NAFTA 2.0
- Patentes secundárias/ Matérias patenteáveis
- Extensão do termo de patente (para o período de exame de patentes)
- Extensões de patentes (para período de revisão regulamentar)
- Exceção da revisão regulatória
- Proteção de dados farmacêuticos/ Proteção de testes não revelados ou outros dados (exclusividade de mercado)
- Proteção de dados farmacêuticos (exclusividade de marketing) para novas informações clínicas ou novos compostos
- Exclusividade adicional de três anos para novas informações clínicas e novas combinações
- Salvaguardas de saúde pública
- Biológicos
- Linkage
- Exclusividade de mercado e prazo da patente