REVISTA FACTO
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Out-Dez 2018 • ANO XII • ISSN 2623-1177
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//Artigo

DOENÇAS NEGLIGENCIADAS: UM MODELO ALTERNATIVO EM BUSCA DE NOVAS PERSPECTIVAS DE TRATAMENTOS

O ano de 2019 marca o aniversário de 110 anos da descoberta da doença de Chagas. Descrita pela primeira vez pelo médico brasileiro Carlos Chagas, a doença é endêmica em 21 países da América Latina e atinge também Estados Unidos, Europa, Japão e Austrália. De acordo com estimativas da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), 30 mil pessoas são infectadas e 14 mil morrem em decorrência da enfermidade a cada ano.

A reflexão sobre o que está por trás desse cenário nos coloca uma interrogação: por que a ciência, apesar de todos os avanços conseguidos em diferentes áreas e para as mais diversas doenças nos últimos anos, ou décadas, não foi capaz de solucionar os desafios da doença de Chagas? O que faz com que essa enfermidade mais do que centenária seja, ainda hoje, um problema não resolvido de saúde pública?

Não se pode negar que a doença de Chagas é complexa. Mas é certo que complexidade nunca foi obstáculo para a ciência. Evidências mostram que a situação atual da doença de Chagas, bem como de outras enfermidades tropicais negligenciadas, é resultado, sobretudo, de uma falta crônica de investimento em inovação aliada à falta de vontade política para solucionar de vez esse problema que aflige a região

POBREZA, NEGLIGÊNCIA E SILÊNCIO: UM ANTÍDOTO À INOVAÇÃO

Na raiz do cenário de negligência que marca a doença de Chagas desde sua descoberta em 1909, está o fato de que essa é uma doença da pobreza e da exclusão. Causada pelo parasita Trypanosoma cruzi (T. cruzi), ela é transmitida principalmente por insetos triatomíneos, conhecidos popularmente como “barbeiros”, que se alimentam de sangue e vivem em casas feitas de adobe, barro, sapé e outros materiais naturais tradicionalmente usados nas regiões rurais da América Latina. A transmissão de mãe para filho é também uma importante forma de contágio em países não endêmicos ou onde houve avanços importantes no controle vetorial.

Embora a doença seja comumente associada a áreas rurais, seu perfil epidemiológico tem mudado nas últimas décadas e, hoje, dois terços das pessoas com Chagas vivem em cidades. No entanto, a doença sempre afetou, e segue afetando, sobretudo, as populações mais vulneráveis em países em desenvolvimento, com acesso limitado ao sistema de saúde. Além disso, seus efeitos debilitantes de longo prazo, que, por vezes, impedem as pessoas afetadas de trabalharem e serem economicamente ativas, perpetuam esse ciclo de pobreza e marginalização.

A doença de Chagas também é, na maioria das vezes, assintomática durante anos após a infecção. É comum que novos casos não sejam identificados nem registrados, e a maioria das pessoas com a enfermidade não sabe que a tem. Entretanto, cerca de 30% das pessoas infectadas desenvolvem complicações na fase crônica da doença, inclusive danos irreversíveis em órgãos como coração e intestino, que podem levar a morte.

Existem apenas dois tratamentos para a doença de Chagas: o benzonidazol, mais comum, e o nifurtimox – ambos tripanocidas descobertos há quase meio século. Embora sejam eficazes em alguns grupos de pacientes, eles podem apresentar efeitos colaterais e não são indicados na fase crônica tardia, quando começam a aparecer complicações relacionadas à infecção.

Essa situação se repete com outras doenças marcadas pela negligência, como é o caso da Leishmaniose. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase 1 bilhão de pessoas no mundo todo estão em risco de contrair a doença. A leishmaniose visceral, a forma letal da doença, é endêmica em 18 países da América Latina e afeta entre 50 mil e 90 mil pessoas. Tal qual a doença de Chagas, a Leishmaniose também gera efeitos devastadores nas comunidades, incluindo dificuldades de trabalho, perdas econômicas e estigma social em populações que já vivem com recursos limitados.

Os medicamentos utilizados no tratamento contra a Leishmaniose são caros, tóxicos, difíceis de administrar ou mal adaptados para o uso em áreas remotas. Os pacientes sofrem graves efeitos colaterais, além de serem submetidos a tratamentos que requerem hospitalização ou dolorosas injeções por 20 a 30 dias. As dificuldades relacionadas ao tratamento agravam o estigma social e o impacto econômico da doença.

INICIATIVA COMBATE DESEQUILÍBRIO ENTRE INVESTIMENTO EM PESQUISA EM SAÚDE E NECESSIDADES DA POPULAÇÃO

Leishmaniose e a doença de Chagas são apenas dois exemplos de um cenário imperfeito em que as populações mais pobres vivem à margem dos avanços da ciência. Historicamente, pobreza, negligência e silêncio compõem um círculo vicioso que atua como um antídoto à inovação.

Nos anos 1990, os dados resultantes de um estudo realizado pela Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) revelaram que apenas 10% do orçamento para P&D era dedicado a 90% das necessidades de saúde da população mundial. É o que chamamos de “desequilíbrio fatal”. Em outras palavras, as pessoas afetadas por velhas doenças tropicais, como Chagas e leishmaniose, bem como malária, tuberculose e outras, não se beneficiavam dos avanços da ciência. Naturalmente, as prioridades da indústria farmacêutica, regidas pela lógica do lucro, não são as mesmas que as necessidades dos pacientes, sobretudo os mais negligenciados, com baixo poder aquisitivo. A iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês), bem como outras Parcerias para Desenvolvimento de Produtos criadas no âmbito de discussões sobre Inovação e Acesso em Assembleias Mundiais de Saúde, nasceram para preencher essa lacuna crítica da pesquisa e desenvolvimento.

Mais recentemente, outra ameaça mundial, dessa vez relacionada à resistência a antibióticos, gerou um pedido à OMS para que crie mecanismos para estimular a inovação nesse campo. O resultado foi a incubação, por parte da DNDi, da Parceria Global para Pesquisa e Desenvolvimento de Antibióticos (GARDP, na sigla em inglês), uma iniciativa que tem como objetivo desenvolver novos antibióticos e garantir o acesso sustentável.

Essas iniciativas não significam, entretanto, que a indústria farmacêutica nacional e a transnacional não tenham um papel crucial a desempenhar na busca de alternativas, seja para doenças negligenciadas, para o desenvolvimento de antibióticos ou qualquer outra ameaça global de saúde pública com a qual o mercado tenha se mostrado incapaz de lidar. Pelo contrário, é apenas por meio de uma colaboração efetiva entre indústria farmacêutica transnacional e nacional, seja ela pública ou privada, que a missão da DNDi pode ser realizada.

A DNDi atua como um coordenador em todas as etapas de P&D, integrando as capacidades e experiências de parceiros por meio de redes de colaboração globais. Desde a descoberta de novas entidades químicas e pesquisa pré-clínica, até ensaios clínicos e estudos de implementação, parceiros industriais participam das etapas, sobretudo na parte de registro, fabricação e distribuição a preços acessíveis em larga escala.

REDES COLABORATIVAS E INOVAÇÃO ABERTA PARA SUPRIR AS NECESSIDADES DE PACIENTES NEGLIGENCIADOS

Para obter os melhores resultados para aqueles que precisam dos medicamentos, a estratégia da DNDi alia abordagens de curto, médio e longo prazos, sempre norteada por perfis de produto-alvo claramente definidos (TPP, na sigla em inglês). Para a doença de Chagas, por exemplo, um desses TPPs foi definido pela Plataforma de Pesquisa Clínica em doença de Chagas, uma rede colaborativa de pesquisadores que busca novas ferramentas para a doença. Os TPPs identificam as necessidades de tratamento ideal, sua viabilidade científica, o preço alvo provável e sua capacidade de produção e adoção. Por exemplo, tratamentos orais em lugar de medicamentos injetáveis, produtos que não requerem cadeia de frio, cursos de tratamentos mais curtos etc.

De olho no pipeline de medicamentos no longo prazo, a DNDi trabalha na etapa inicial da P&D ao estimular a inovação e ao explorar caminhos não convencionais para o desenvolvimento de medicamentos, conforme mostra a tabela abaixo. Para isso, a iniciativa se organiza em consórcios multicêntricos de pesquisa, reunindo parceiros de diferentes especialidades com um objetivo comum. O primeiro passo consiste na identificação e validação de compostos ativos (hits), originados de bibliotecas de compostos comerciais ou provenientes de parcerias com indústrias farmacêuticas. Uma vez identificada uma nova série química de interesse, ela passa por processos repetitivos de otimização multiparamétrica (farmacodinâmica, farmacocinética e segurança). A otimização segue até que um candidato pré-clínico com características aceitáveis seja obtido ou a série química, abandonada.

Na América Latina, desde 2013, são realizadas atividades de descoberta com o programa Otimização de Compostos Líderes da América Latina (Lola, na sigla em inglês). Lançado em parceria com o Laboratório de Química Orgânica Sintética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo, hoje o consórcio extrapola fronteiras e une parceiros também na Bélgica, Suíça, Estados Unidos, Austrália, Escócia e China. Nessa rede, que segue os preceitos de inovação aberta, compostos são testados in vitro e in vivo contra Trypanosoma cruzi e Leishmania spp – causadores da doença de Chagas e da leishmaniose, respectivamente – e aprimorados por meio de ciclos iterativos de otimização. Esse processo em rede acelera e reduz os custos da descoberta de medicamentos, uma vez que é capaz de preencher as lacunas comuns na cadeia de desenvolvimento.

Para garantir que o medicamento seja acessível aos pacientes afetados pelas doenças negligenciadas, a DNDi trabalha para desvincular os custos de desenvolvimento do medicamento do preço final dos tratamentos. Para isso, o modelo adotado se baseia num financiamento da pesquisa feito a priori. Esse financiamento, proveniente de fontes diversas, tais como fundações privadas, setor público e grandes doadores, permite que o preço final do medicamento não seja impactado pelo investimento realizado durante todas as etapas do desenvolvimento. Dessa forma, o medicamento pode ser disponibilizado a um preço acessível para aqueles que mais precisam. Além disso, a DNDi negocia acordos de licenciamento que promovem o acesso, suprindo assim uma demanda dos pacientes que não é atendida pelo modelo de negócio da indústria farmacêutica. Dessa forma, é possível garantir que os pacientes se beneficiem, de fato, dos avanços na ciência.

NOVAS PERSPECTIVAS DE TRATAMENTO

Elaboração: Área técnica ABIFINA. Fontes: Ministério da Saúde: http://portalms.saude.gov.br, DNDi: https://www.dndi.org, Médicos Sem Fronteiras: https://www.msf.org.br, Organização Pan Americana da Saúde: https://www.paho.org/bra, Organização Mundial da Saúde: https://www.who.int

Por meio desse modelo colaborativo, a DNDi já desenvolveu, melhorou ou implementou oito tratamentos. O mais recente, contra a doença do sono (tripanossomíase humana africana), acaba de ser aprovado pela agência europeia de medicamentos e deve ser registrado nos países endêmicos a partir do início de 2019. O medicamento, fexinidazol, foi desenvolvido a partir de uma molécula que havia sido descoberta nos anos 1980, e abandonada por falta de interesse da indústria. Por meio de uma colaboração com a Sanofi, o fexinidazol foi recuperado e, após a realização de todo o processo de P&D, resultou no primeiro tratamento inteiramente oral contra a doença do sono e eficaz nas duas fases da infecção. Para as pessoas afetadas por essa doença fatal, o tratamento representa uma esperança de cura e, para os médicos e pesquisadores, a realização de um sonho.

NOVAS PERSPECTIVAS PARA O TRATAMENTO DA DOENÇA DE CHAGAS E LEISHMANIOSE

O fexinidazol está agora sendo testado contra a doença de Chagas. Os resultados dos estudos clínicos de fase II serão conhecidos no decorrer do ano de 2019. Caso sejam bem-sucedidos, um novo medicamento para a enfermidade poderia ser disponibilizado nos próximos cinco anos. Esse seria o primeiro novo medicamento para a doença de Chagas em mais de meio século.

Em paralelo, a DNDi está também trabalhando com parceiros para aprimorar os tratamentos existentes. Por meio de uma estratégia de médio prazo, a iniciativa está testando novos regimes de benzonidazol em monoterapia, bem como em combinações com o propósito de aumentar a tolerabilidade e a eficácia dos tratamentos existentes. O sucesso de uma dessas opções pode resultar em um tratamento com menos efeitos adversos e, assim, melhorar a adesão dos pacientes, facilitando a adoção do mesmo.

Para a Leishmaniose, foram realizados grandes esforços nos últimos anos, na fase de descoberta de medicamentos para identificar novos compostos. A química medicinal permitiu, então, melhorar as propriedades medicamentosas de compostos identificados por meio de modificações específicas na estrutura química, mantendo- se a atividade leishmanicida. Atualmente, com a participação de vários grupos de pesquisa ao redor do mundo, incluindo companhias farmacêuticas, esperamse pelo menos dez novos candidatos a medicamento, de classes químicas distintas, progredindo para a fase de desenvolvimento clínico.

DA BANCADA DO LABORATÓRIO AO USO EFETIVO PELO PACIENTE

Embora a lógica da desvinculação entre o investimento em P&D e o custo final do produto seja essencial para que os pacientes sejam beneficiados pela inovação, o baixo preço não garante, por si só, o acesso por parte daqueles que mais precisam do tratamento.

Nossa experiência com a doença de Chagas demonstra que há inúmeras barreiras que dificultam o acesso das pessoas a diagnóstico e tratamento. Para isso, a DNDi desenvolve também programas em colaboração com ministérios da saúde e outros parceiros locais e internacionais, eliminando as barreiras que se interpõem entre as pessoas afetadas pela doença e o tratamento de que precisam. Na América Latina, os programas de acesso da DNDi se concentram na doença de Chagas e já estão em curso na Colômbia, Guatemala e Brasil. Na Colômbia, resultados preliminares demonstraram um aumento de quase 1.000% no acesso ao diagnóstico nas áreas onde foi implementado o piloto.

Por último, é importante lembrar que há pessoas que, embora não sofram de doenças que se enquadram na definição clássica de doenças negligenciadas, permanecem igualmente à margem dos avanços da ciência. É o caso das crianças com HIV, que não despertam o interesse da indústria farmacêutica, uma vez que a transmissão de HIV de mãe para filho já foi praticamente eliminada nos países em desenvolvimento; ou a hepatite C, cujo tratamento revolucionário é disponibilizado a um preço exorbitante, fora do alcance de grande parte das pessoas afetadas pela doença. Por isso, a DNDi expandiu nos últimos anos sua atuação de doenças negligenciadas para trabalhar em prol das necessidades daqueles que chamamos de pacientes negligenciados. Trata-se da ciência ao serviço da sociedade para um mundo mais equitativo e saudável.

Michel Lotrowska
Michel Lotrowska
Presidente da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi) na América Latina.
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