A política econômica desenvolvimentista praticada no País ao longo dos últimos 15 anos tem sido criticada por diversos ângulos. Sua baixa eficácia resultou não apenas de fatores conjunturais, como falhas de gestão nos programas governamentais, mas também, e principalmente, de fatores estruturais, como a resistência burocrática de amplos segmentos do poder público contra inovações voltadas para incentivar a indústria nacional. Esse quadro favoreceu a percepção do Estado como um obstáculo ao desenvolvimento e abriu espaço para a recente guinada no rumo da nossa política econômica. Nesta reportagem, em que economistas e executivos da indústria de química fina analisam o cenário atual, uma questão sobressai: ao reduzir a intervenção do Estado na economia, o atual governo estará, efetivamente, abrindo para o Brasil oportunidades de crescimento? O fato, visível e preocupante, é que a desarticulação dos mecanismos públicos de alavancagem da indústria não deu lugar, até o momento, a um projeto alternativo de desenvolvimento nacional.
A retração do Estado
O economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor e diretor da Faculdade de Economia e Administração da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), faz uma análise otimista do momento atual, embora admita que a economia brasileira ainda enfrenta o difícil desafio de superar a crise. “Os indicadores mais recentes de produção, consumo e emprego denotam que o pior já passou e lentamente temos o início de uma tênue recuperação. A crise foi intensa nos últimos dois anos. O Produto Interno Bruto (PIB) caiu 3,8% em 2015, mais 3,6% em 2016, acumulando uma queda de 7,2% nos dois anos. Teremos um muito provável crescimento de 0,5% em 2017. Mas o nível de investimento atual é cerca de 30% inferior a 2014, o que revela a grandeza do desafio”.
A queda da inflação, segundo o professor, é um indicador positivo. “Depois de atingir mais de 10% ao ano em 2015, reduziu-se para 6,3% em 2016 e deve fechar 2017 com cerca de 3%. Além do efeito da crise econômica dos últimos anos, tivemos uma revalorização do real em 2016 e o impacto da excelente safra agrícola que, favorecida por fatores climáticos positivos, reduziu os preços dos alimentos. A queda da inflação abriu espaço para a baixa das taxas básicas de juros, que foram reduzidas em 6,75 pontos percentuais para 7,5% ao ano. Trata-se de um nível muito próximo aos mais baixos do histórico brasileiro, mas essas taxas são ainda elevadas para padrões internacionais”.
Contudo, indicadores monetários positivos não bastam para garantir sustentabilidade à política econômica brasileira. Corrêa de Lacerda acredita que as eleições gerais de 2018 representam uma boa oportunidade de aprofundar o debate sobre esse tema e, mesmo considerando que época de eleições costuma gerar turbulência no mercado, decorrente das especulações sobre possíveis mudanças, aponta fatores que devem amenizar esses impactos. “As contas externas seguem com um quadro bastante positivo. O País conta com reservas cambiais, da ordem de US$ 380 bilhões, e vem registrando expressivo ingresso de investimentos diretos estrangeiros, em torno de US$ 75 bilhões ao ano, que praticamente não foram afetados pela crise. A desvalorização do real ocorrida nos últimos anos, assim como o efeito da crise econômica, diminuiu o custo do investimento em dólares. Isso, aliado a uma expectativa de recuperação da economia, tem impulsionado os projetos novos e as transferências patrimoniais, via fusões e aquisições de empresas”.
Por outro lado, afirma o professor, “a aposta em que o resgate da confiança pudesse estimular a realização de investimentos e produção não tem dado resultado. Embora a confiança seja importante, ela por si só não garante um ambiente promissor para estimular a produção, o consumo e os investimentos. As empresas não tomam decisões apenas levando em conta o grau de confiança, mas a expectativa de desempenho futuro da economia”.
Outro problema análogo, em sua opinião, está na falha de diagnóstico e de estratégia na política econômica. “É preciso que o governo federal adote medidas de política econômica para incentivar as atividades. O primeiro ponto importante é o papel do Estado e dos investimentos públicos. Em um quadro de crise, os investimentos públicos, assim como o papel do Estado de forma geral, deve ser anticíclico, ou seja, deve se contrapor à restrição de gastos das empresas e famílias. Ao contrário do discurso governamental utilizado como argumento para aprovação, no final do ano passado, da Emenda Constitucional (EC) nº 95, que fixou um teto para os gastos públicos, o Estado não pode agir como uma empresa ou família, porque tem obrigações que lhe são próprias”.
Além do incremento do investimento público, Corrêa de Lacerda considera necessário criar condições favoráveis ao investimento, produção e consumo privados. “Isso requer adotar medidas estimuladoras. Adicionalmente à aceleração da queda da taxa de juros reais, é importante fazer com que ela se reflita na queda da taxa de juros no crédito às empresas e às pessoas físicas, dentre outras ações”.
No entanto, o governo federal agiu na direção contrária ao criar a Taxa de Longo Prazo (TLP) referenciada à taxa das Notas do Tesouro Nacional (NTN Bs) nos financiamentos concedidos à iniciativa privada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em substituição à atual Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Segundo o professor, a medida alterará substancialmente o mecanismo de crédito ao setor privado, “na prática significando um retrocesso”.
“Diante da ausência de crédito de longo prazo privado no Brasil, o BNDES sempre exerceu um papel preponderante. Embora seja saudável estimular instrumentos de mercado para reduzir a dependência dos recursos públicos, é preciso levar em conta a inexistência de um mercado privado que ofereça recursos compat íveis com a rentabilidade dos projetos” – Antonio Corrêa de Lacerda
Garantir crédito e financiamento às empresas e consumidores a taxas de juros compatíveis com a rentabilidade da atividade produtiva e capacidade de pagamento dos tomadores é uma condição fundamental para a retomada do crescimento, adverte Corrêa de Lacerda. “No âmbito empresarial, diante da ausência de crédito de longo prazo privado no Brasil, o BNDES sempre exerceu um papel preponderante nessa área. Embora seja saudável estimular instrumentos de mercado para reduzir a dependência dos recursos públicos, é preciso levar em conta a inexistência de um mercado privado que ofereça recursos compatíveis com a rentabilidade dos projetos”.
Um dos argumentos dos que defendem a alteração ocorrida é o de que a prática implicava uma espécie de subsídio. De fato, afirma o professor, “do ponto de vista fiscal stricto sensu e de curto prazo, o diferencial entre Selic e TJLP significa um subsídio, principalmente se considerarmos as taxas praticadas atualmente. No entanto, considerando que o financiamento de projetos é de longo prazo e que há um efeito multiplicador dos investimentos realizados, a tese do ‘subsídio’ não se sustenta”.
Já sob o ponto de vista da competitividade, acrescenta o professor, “a TJLP não representa qualquer subsídio, simplesmente porque nossos concorrentes internacionais gozam de financiamentos a taxas de juros menores do que ela. Nos 65 anos de existência do BNDES, o diferencial representado foi e tem sido determinante para o papel do financiamento público no desenvolvimento brasileiro. Os desembolsos do banco, que durante anos apresentaram contínuo crescimento, tiveram expressiva redução”.
É preciso viabilizar uma nova fase de crescimento econômico, para a qual o financiamento é fundamental, salienta Corrêa de Lacerda, destacando que o papel representado pelo financiamento dos bancos públicos é insubstituível no curto prazo. “Dadas as condições desfavoráveis oferecidas pelo mercado privado – escassez de recursos, exigência de contrapartidas e elevadas taxas de juros praticadas –, ele não representa uma alternativa viável para suprir as necessidades de financiamento de longo prazo para os setores produtivos e a infraestrutura”.
“A paralisia política em que nos encontramos está condenando a indústria a um processo de envelhecimento, na medida em que não se consegue estabelecer um conjunto articulado de políticas que permitam algum caminho de reestruturação possível” – David Kupfer
Para David Kupfer, coordenador do Grupo de Indústria e Competividade do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma análise acurada dos rumos da economia brasileira deve levar em conta o processo de desindustrialização e seus efeitos colaterais. “A indústria enfrenta uma crise de longa duração, cuja origem pode ser datada no início da década de 1980, quando se dá o esgotamento do modelo de substituição de importações, em vista da crise causada pelos problemas do financiamento do balanço de pagamentos. A dificuldade de se lidar com a crise cambial e a escassez de divisas nesse período levaram à adoção de medidas macroeconômicas ineficazes, gerando um período de estagnação que colocou a indústria em atraso tecnológico”.
Kupfer chama atenção para o agravamento do descompasso brasileiro em relação ao ritmo da inovação industrial no mundo. “O sistema industrial brasileiro, que vinha de um período favorável em matéria de diversificação estrutural e de modernização, rapidamente se tornou tecnologicamente obsoleto. Contribuiu para isso o fato de que os anos 1980 foram de grande dinamismo e transformação da indústria mundial, particularmente no que diz respeito às formas de organização da produção e de divisão de trabalho entre empresas ao longo das cadeias produtivas. Foi um período de mudanças tecnológicas muito importantes, fortemente potencializadas pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação, tanto no hardware quanto no software, setores esses que o processo de industrialização brasileiro não havia conseguido incorporar. A indústria brasileira, por ter enfrentado esse período de mudança na indústria mundial em quadro de crise, se defasou acentuadamente nesse aspecto, tendo preservado um modelo de organização ainda muito baseado nos fatores relevantes da era anterior, que diziam respeito à capacidade de verticalização das empresas, da integração produtiva para frente e para trás”.
Na avaliação do pesquisador, “chegamos à década de 1990 com uma experiência de abertura desastrada e uma condução inadequada de políticas que favorecessem a incorporação de tecnologias sem prejudicar o tecido industrial. Isto criou um quadro difícil para a sobrevivência e a reprodução da atividade industrial no Brasil. Com o Plano Real, surge um modelo de estabilização que veio apoiado, fundamentalmente, numa âncora nominal e numa âncora cambial, ou seja, taxas de juros elevadas e taxas de câmbio apreciadas, combinação esta extremamente hostil à atividade industrial. E isso deprimia a rentabilidade da indústria, a capacidade de investimento em novos ativos produtivos e mais ainda em inovação que permitissem, pelo menos, a manutenção da distância em relação à fronteira internacional. A indústria brasileira passa a acumular um hiato crescente de produtividade que vai prejudicando a sua capacidade competitiva”.
O processo de privatização e mudança do modelo de construção e gestão da infraestrutura no Brasil ocorrido nos anos 1990, na opinião de Kupfer, “produziu muitos desacertos e custos de transição que não foram resolvidos até hoje, e que foram condenando nossa estrutura a um processo lento e gradual de encarecimento, perda de qualidade, de confiabilidade e outros problemas. A indústria é muito sensível aos custos relacionados a logística, energia e demais custos infraestruturais. Além do problema causado pelo atraso tecnológico, do ponto de vista de produtividade e inovação, ainda se somam os custos sistêmicos de uma infraestrutura incapaz de prover essa competividade para a indústria. Tudo isso cria um quadro negativo para a sobrevivência e a reprodução da atividade industrial, que prevalece há 30 anos. O modelo de estabilização econômica permanece baseado nesse mix de juros altos e câmbio apreciado, a infraestrutura continua sendo disponibilizada a preços crescentes, e tudo isso gera um déficit de competividade que não se consegue resolver de forma satisfatória. A indústria se vê obrigada a rodadas sucessivas de desadensamento e, para sobreviver, precisa trocar a produção pela importação – produção de insumos por importação de insumos, produção de máquinas por importação de máquinas”.
O que é grave e preocupante, no entender do pesquisador, é o fato de estarmos em crise novamente durante um período de inovação muito importante na indústria mundial, “algo que está reproduzindo um pouco a situação dos anos 1980. O mundo está se transformando com muita velocidade, por uma nova geração de tecnologias de comunicação e informação, não exatamente as mesmas de 30 anos atrás, mas com impactos semelhantes, como ocorre com a Inteligência Artificial, a comunicação máquina-máquina etc. E mais uma vez o Brasil está parado num momento crítico, agora mais do que nunca. A paralisia política em que nos encontramos está condenando a indústria a um processo de envelhecimento, na medida em que não se consegue estabelecer um conjunto articulado de políticas que permitam algum caminho de reestruturação possível. Não há renovação da indústria porque não há investimento, formação de capital, incorporação de capital novo mais atualizado tecnologicamente”.
Kupfer vê um círculo vicioso se formando. “Trinta anos de ambiente econômico hostil produziram, como resultado, um padrão de evolução em que a indústria se vê obrigada a cortar custos permanentemente, como num processo de enxugar gelo. A necessidade de sobrevivência leva ao imperativo da redução de custos e, como não há condições de se obterem ganhos reais de produtividade e de inovação, o que sobra para as empresas é simplificar produtos, substituir insumos por outros de menor custo, reduzir especificações nesses produtos. Enfim, é uma eterna busca de redução dos custos de produção a partir de medidas tópicas, pontuais, o que chamo de armadilha do baixo custo”.
O que determina a situação da indústria é sempre sua posição relativa frente aos competidores internacionais, lembra Kupfer, e sob esse ângulo o cenário é ainda mais preocupante. “O sistema asiático de produção, ao contrário do brasileiro, tem se mostrado fortemente progressista, vai ganhando competividade e escala. A China é o principal exemplo, mas sem desconsiderar os demais países asiáticos que, de algum modo, cooperam para a obtenção dessa competividade. Relativamente, a indústria brasileira vai se tornando cada vez menos competitiva e essa estratégia de foco no baixo custo mostra-se cada vez menos capaz de gerar as respostas necessárias para a retomada das condições de competição com os principais concorrentes asiáticos, daí a ideia de uma verdadeira armadilha”.
As exceções nesse processo de perda de competitividade concentram-se, segundo Kupfer, “naqueles setores em que o Brasil tem recursos abundantes e muito baratos, e onde, por desenvolvimentos tecnológicos anteriores, se conseguiu estruturar a produção com grande eficiência: segmentos do agronegócio, como a soja, ou da indústria extrativa, como o minério de ferro, e mais recentemente o petróleo, embora este venha enfrentando problemas diversos. Esses setores têm capacidade de resposta, estão na fronteira da competividade e conseguem avançar. Mas a indústria manufatureira propriamente dita está perdendo posição relativa. Não à toa, a participação da indústria brasileira no mundo vem recuando sensivelmente. Temos que pensar nas formas possíveis de quebrar a armadilha do baixo custo, porque esse tipo de comportamento não permite que a indústria dê o salto necessário para recompor suas condições de competitividade. A armadilha do baixo custo é a principal razão do processo de desadensamento na indústria, que reduz oportunidades de ganho de produtividade e eficiência e aumenta a necessidade de redução de custos. É um círculo vicioso”.
“A absoluta falta de coerência e isonomia causada pela inércia da autoridade regulat ória não só fere a Lei. Também destrói o espírito empreendedor, fomenta a concorrência desleal e inibe o investimento interno e externo” – José Correia da Silva
A condição para o País sair dessa armadilha, de acordo com o pesquisador, é “reunir as condições para um big push capaz de promover uma grande onda de investimentos, simultaneamente na renovação do equipamento de produção e na infraestrutura, para que se consiga ter uma mudança no patamar de custos que permita a recuperação das condições de competitividade. É preciso, primeiro, construir o circuito da inovação na indústria brasileira. Não há incentivo para buscar a inovação porque isto requer imobilização de capital de alto risco e as empresas são avessas a risco, em função do custo de capital muito elevado e da taxa de câmbio apreciada. Precisamos das políticas de inovação que todos defendem, mas que não serão suficientes se não estiverem acompanhadas de uma mudança no modelo macroeconômico que permita um ciclo longo de taxas de juros moderadas e taxas de câmbio competitivas. Precisamos também da correção das distorções microeconômicas que o regime competitivo carrega no Brasil – tributárias, tarifárias, custos sistêmicos de infraestrutura e tudo aquilo que compõe o chamado custo Brasil”.
David Kupfer está convicto de que essa grande onda de investimentos é indispensável para se conseguir um verdadeiro salto de reemparelhamento da indústria brasileira. “Isto significa construir um novo modelo de financiamento capaz de permitir que os recursos financeiros hoje empoçados no mercado de capitais voltem a fluir para o sistema produtivo, para transformar a estrutura produtiva e permitir que ela possa trabalhar num novo nível de produtividade e com mais inovação para restaurar a competitividade perdida”.
Expectativas da indústria
Diante de recentes alterações regulatórias no comércio internacional e da mudança de diretrizes econômicas no Brasil, a indústria de química fina instalada no País busca pontos de apoio para atravessar a crise. De acordo com Regis Barbieri, vice-presidente da Nortec Química, “o setor farmacêutico e farmoquímico no Brasil vive hoje um hiato entre a oportunidade do que podemos ser e a necessidade do que precisamos fazer. Não podemos acreditar que uma simples ação irá mudar a posição do setor como um todo. O conjunto de ações interrelacionadas passa pela compreensão da disponibilidade de insumos na cadeia de química base, estrutura de custos dos produtos, importações e exportações, necessidades e custos regulatórios, qualidade, cadeia de impostos, logística, custo de mão de obra, custo de capital para investimento, formação de novos profissionais, inovação, políticas públicas de incentivos, crescimento estratégico, desenvolvimento de tecnologia nacional e administração de risco, entre outras”.
“A estrutura tributária cara, complexa e com muitas distorções, associada ao alto custo de produção local, são os principais fatores que contribuem para o desinteresse na produção em solo brasileiro, e estimulam as empresas a buscarem as soluções para seus problemas de rentabilidade e produtividade além das fronteiras nacionais” – João Sereno Lammel
O executivo destaca a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), instituída em 2010, como uma das importantes iniciativas voltadas para melhorar a competitividade da indústria nacional tendo o Estado como indutor econômico. “A função da PDP vai além da redução imediata do custo de medicamentos. Prover e ampliar o acesso do cidadão através da redução de preços é um propósito que deve ser respeitado, porém não podemos desconsiderar que parte fundamental da política é a transferência de tecnologia e a estruturação do parque fabril nacional, promovendo redução da dependência externa em medicamentos estratégicos.”
Outro fator a ser considerado numa avaliação do potencial competitivo do setor, segundo Barbieri, é a mudança do ambiente regulatório internacional. “Em meados de 2010, autoridades sanitárias como a FDA (EUA) emitiram uma crescente quantidade de alertas (warning letters) para diversos fabricantes do mundo, especialmente na Índia, abordando temas como Integridade de Dados. Multas superiores a US$ 500 milhões (caso Ranbaxy Laboratories) foram emitidas pela FDA, alterando o modo pelo qual os países desenvolvidos tratam a fabricação de insumos farmacêuticos ativos. Nos últimos cinco anos, mais de 44 fabricantes indianos tiveram seus produtos banidos e fabricantes chineses também têm enfrentado problemas relativos à alteração de dados (caso Zhejiang Hisun)”.
As mudanças não param aí, observa o executivo. “A propósito da disponibilidade de insumos farmacêuticos no mundo e da aplicação de normas ambientais, recentes operações diretas do governo chinês causaram o fechamento de parques fabris que alimentavam a cadeia de química base necessária à fabricação de IFAs. Como resultado das recentes inspeções, mais de 80 mil fábricas foram multadas, causando um choque de preços e de oferta no mercado que tem alterado significativamente a disponibilidade desses produtos. Estima-se que 40% das fábricas da China terão algum tipo de problema de falta de insumos e serão fechadas em algum momento pelas autoridades ambientais”.
Para o vice-presidente da Nortec, a recente associação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ao International Conference on Harmonisation of Technical Requirements for Registration of Pharmaceuticals for Human Use (ICH) abre caminho para o Brasil se posicionar como um importante player internacional no setor farmoquímico. “A conformidade das normas nacionais com padrões internacionais possibilita a entrada direta do Brasil em outros mercados, porém é importante levar em consideração o impacto dessas mudanças regulatórias na estrutura de custos, implicações econômicas e tempo necessário para o setor regulado efetuar os ajustes requeridos. É importante a Anvisa entender que sua capacidade de normatização é muito mais rápida do que a capacidade de adequação das empresas. É imprescindível, ainda, que a indústria nacional encontre na autoridade regulatória proximidade e amparo legal para que as regras operem segundo princípios de universalidade, homogeneidade, isonomia e equanimidade de condições entre fabricantes de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) nacionais e estrangeiros. Sem a aplicação desses princípios, o ambiente competitivo pode se tornar altamente desfavorável à indústria nacional”.
Isonomia regulatória é também a preocupação central do presidente do Conselho da Associação Brasileira da Indústria Farmoquímica e de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), José Correia da Silva, dadas as peculiaridades desse segmento. “Dos elos da cadeia de produção farmacêutica, a fabricação de IFAs – independentemente da tecnologia aplicada (síntese, extração, biotecnologia ou a mescla de duas ou mais destas técnicas) – é, seguramente, das mais sofisticadas e reguladas por um variado número de autoridades governamentais de todos os níveis. Na sofisticação e na regulação residem a força e a fragilidade do segmento farmoquímico no que tange ao desenvolvimento de um parque fabril com protagonismo nacional e internacional. Força porque se trata de uma atividade, no mais das vezes, crítica e perigosa, embasada numa ampla gama de conhecimentos técnicos (química, biologia, farmacêutica, engenharia, mecânica, eletrônica) que só se solidificam ao longo de anos de treinamento e disciplina. Para atender aos pressupostos das exigências regulatórias de autoridades e clientes, ela só sobrevive se inserida num ambiente que valoriza e usufrui desta capacitação.”
A fragilidade, por sua vez, manifesta-se “quando a produção local, atendendo aos pressupostos discriminados, compete com produtores externos que não estão submetidos às mesmas regras e escrutínio. A fragilidade se dá pela inércia da autoridade regulatória que, ao mesmo tempo, fiscaliza correta e ferozmente a fabricação local no que concerne às Boas Práticas de Fabricação e Controle, à qualidade e eficácia dos IFAs; e por outro lado, num extremo de liberalidade perigosa e incompreensível, pouca ou nenhuma fiscalização exerce sobre IFAs fabricados em condições desconhecidas.”
Para que o Brasil tenha uma indústria de insumos farmacêuticos alinhada com seu parque produtivo de medicamentos faz-se necessário, segundo Correia da Silva, “cumprir a lei que determina que a regulação sanitária incida também sobre os insumos importados, tal qual ocorre nos EUA, Europa e Japão; ou, se queremos um exemplo doméstico, tal qual ocorre na própria indústria de medicamentos. Cumprida esta simples e comezinha etapa, o mercado local, por seu tamanho e variedade de produtos e processos na fabricação de medicamentos, se tornará atrativo para investimentos e tecnologias que só vicejam em ambiente de regulação segura e previsível”.
Na indústria agroquímica, as principais queixas dizem respeito ao tratamento tributário. Na opinião de João Sereno Lammel, conselheiro da Ourofino Agrociência, “a estrutura tributária cara, complexa e com muitas distorções, associada ao alto custo de produção local, são os principais fatores que contribuem para o desinteresse na produção em solo brasileiro, e estimulam as empresas a buscarem as soluções para seus problemas de rentabilidade e produtividade além das fronteiras nacionais. Problemas de competitividade também são enfrentados diariamente, e aqueles que crescem e exportam são os que conseguem manter uma administração interna eficiente, incluindo um bom gerenciamento das variáveis de câmbio e juros”.
Na área de defensivos agrícolas, Lammel afirma que essa situação é uma constante. “As indústrias estrangeiras buscam prioritariamente produtos fabricados em suas matrizes, aproveitando-se das distorções e desincentivos da indústria brasileira. Estamos enfrentando um cenário complexo, porém o agronegócio, de maneira ampla, continua se consolidando como um dos principais motores do País”. Para o Brasil retomar o desenvolvimento, segundo ele, “é preciso investir além das políticas públicas. É necessário corrigir as distorções, fomentar os setores de pesquisa e educação e apostar em empresas e instituições nacionais, por meio de incentivos públicos e privados”.
A desaceleração da indústria é apenas uma das consequências do longo processo da crise brasileira, assinala o conselheiro da Ourofino. “Os problemas iniciam com a perda da capacidade de investir ou de se modernizar. Empresários e investidores estão engessados pela conjuntura econômica, corrupção, alto custo de produção, sistema regulatório imprevisível e também pelas incertezas quanto à aprovação, no Congresso, de reformas essenciais para o crescimento do País”.
“A indústria farmoquímica tem no horizonte grandes desafios para se consolidar como um importante pilar econômico e tecnológico no País” – Regis Barbieri
Regis Barbieri manifesta confiança no discernimento do Estado brasileiro frente à gigantesca tarefa que lhe cabe. “A indústria farmoquímica tem no horizonte grandes desafios para se consolidar como um importante pilar econômico e tecnológico dentro do País. Para que esse cenário se concretize, é importante pensar numa política pública ampla, de dimensão nacional, que transcenda as unidades federativas e interesses regionais específicos. Na consolidação desse cenário, o Estado Nacional deve assumir seu papel de indutor dos ciclos de transformações econômicas”.
Barbieri destaca que, na China e na Coreia do Sul, países que apresentam hoje elevada taxa de crescimento do PIB per capita, o Estado exerceu nas últimas décadas papel decisivo na formação de um ambiente favorável à criação de alavancas econômicas. “Nesses países, a força de um Estado com ‘E’ maiúsculo aparece como indutora principal de ciclos econômicos virtuosos. O desenvolvimento é o resultado fundamental e não se restringe aos indicadores macroeconômicos, evidenciando-se também na melhoria das oportunidades, na empregabilidade, e consequentemente na redução das desigualdades sociais”.
A capacidade de enxergar o Estado como responsável por uma política de longo prazo indutora do desenvolvimento econômico vai além da política cíclica de quadriênios, conclui Barbieri. “O ambiente propício para elevação do nível de investimento (interno ou internacional) só ocorre quando existe segurança futura mínima e previsibilidade, seja ela de ordem regulatória, jurídica ou institucional”.