A declaração taxativa do economista Delfim Netto reforça o que a ABIFINA defende há décadas: somente um Estado forte pode conduzir o crescimento sustentável do Brasil. O professor da Universidade de São Paulo (USP) foi ministro da Fazenda dos governos Costa e Silva e Médici, período em que planejamento econômico era regra. Hoje ele percebe que voltar a essa realidade é quase impossível. “Não temos poder para fazê-lo. O poder foi dissipado, distribuído, de tal jeito que não tem como coordenar um programa”, declara. Para Netto, o País vem adotando opções erradas há 30 anos. Mesmo o Plano Real, que apesar de ter acabado com a inflação, investiu na receita errada, com a combinação de câmbio e juros elevados, condições de morte para a indústria nacional. Agora, para voltar ao caminho do crescimento, o Brasil precisa encontrar consenso sobre como equilibrar investimento e consumo, conforme alerta o professor.
Como o senhor vê o atual cenário institucional do Brasil?
É óbvio que o problema é o Brasil saber o que quer ser. O País perdeu a perspectiva de longo prazo. Há 30 anos a relação entre a renda per capita do Brasil e a do mundo vem piorando dramaticamente. Na maioria das nações, quando você tem um regime parlamentarista, Executivo e Legislativo não se distinguem. Só nas repúblicas como Brasil e EUA, que são os dois casos mais notáveis, se tem uma federação de estados em que o Executivo e o Legislativo, como na concepção de Montesquieu, são independentes, harmônicos, junto com o Judiciário. Mas essa ligação não deve ser um troca- -troca. Ou você tem um programa e uma maioria para executá-lo ou você não tem nada. O problema do Brasil é que você tem muitos diagnósticos e nenhum poder para executar qualquer um deles, de forma que estamos frequentemente entrando em um caminho errado. Aqui é como o Asno de Buridan: cada um puxa para um lado e não consegue comer a alfafa.
Podemos considerar que se trata de uma questão ideológica?
A ideologia talvez tenha um pequeno papel nesta divergência de opiniões e objetivos. Mas o fundamental é que só existe um caminho para o desenvolvimento. Um Estado forte, constitucional e capaz de controlar os mercados. Pois você quer desenvolvimento com liberdade, iniciativa, capacidade de se apropriar do seu trabalho e uma relativa igualdade.
Liberdade e igualdade não são inteiramente compatíveis. Mas para gozar de liberdade e igualdade é preciso ter eficiência na produção de sua subsistência material. Quanto menos horas você tem para produzir sua subsistência, mais horas você tem para realizar a sua humanidade. Por isso, é preciso um sistema eficiente. E o homem não descobriu nenhum outro sistema mais eficiente do que os mercados. Agora, o mercado tem restrições. Funciona razoavelmente se for competitivo, se não houver conhecimentos privilegiados. Por isso é preciso um Estado forte, que regule o mercado, principalmente o financeiro.
Quais seriam as medidas fundamentais para o Brasil implantar um planejamento de longo prazo?
Não temos poder para fazê-lo. O poder foi dissipado, distribuído, de tal jeito que não tem como coordenar um programa. É preciso convencer a sociedade de que a execução de um programa exige um mínimo de consenso. É isso que a eleição deveria produzir. Quem ganhou no segundo turno deveria conduzir esse programa. A sociedade é quem vai escolher.
Os candidatos deveriam ter uma concepção de Brasil e propostas para os próximos 20 ou 30 anos. Porém, isso é um pouco de ilusão. Nem o eleitor tem essa racionalidade. Veja o seguinte. A última eleição foi uma mentirada que dá medo. Foi um estelionato brutal, como tem sido em todas as eleições. Então, o Brasil não carece de concepção. Tem muitas concepções, por isso não executa nenhuma. O Brasil é um país de projetistas e não de executores.
Vínhamos caminhando bastante bem, o Temer tinha imposto uma espécie de parlamentarismo de ocasião que conseguiu aprovar coisas quase impossíveis. Depois houve a tragédia com a delação da JBS, dando a impressão de um complô, e atrapalhou tudo isso. Acredito que o Temer tenha tempo agora de fazer a reforma da Previdência. Ele vai fazer força e nós deveríamos dar suporte para ele.
Uma coisa é segura: não há nada que resista à aritmética. O País está gastando 60% da receita somente com salário e Previdência. Ou seja, é um Estado autofágico, que recolhe todos esses recursos e sua primeira prioridade é sustentar uma casta de altíssimos funcionários com custos gigantescos. E a coisa mais grave é que o governo não consegue convencer o pobre do trabalhador de que é preciso fazer o limite de 65 anos. Falta a transmissão desse conhecimento.
Porém, no regime democrático, você erra, mas pode corrigir. Acho que não vamos repetir a brincadeira de 2014, porque aprendemos. O que vem ninguém sabe, mas é certo que as tolices feitas não vão ser repetidas. Os últimos quatro anos mostraram que existem restrições físicas que não podem ser violadas. O País precisa de um equilíbrio entre o crescimento do investimento e o do consumo. Se você insiste no crescimento só com investimento, ele murcha, pois não tem consumo. Se insiste só no consumo, ele murcha, pois não terá investimento.
Economistas neoliberais dizem que o Estado deveria deixar o mercado livre para ação do setor privado. O senhor acredita que a “mão invisível” do mercado funciona sem a “mão visível” do Estado?
Essa ideia de livre mercado é uma estupidez. O mercado precisa da propriedade privada para funcionar e quem garante a propriedade privada é o Estado. Quem pensa desse jeito realmente é míope. Não existe mercado sem propriedade privada. E não existe propriedade privada sem um Estado forte para garanti-la.
A democracia é um instrumento muito interessante, pois permitiu que a maioria, o trabalho sem capital, se pusesse em paridade de poder com o capital. Na urna, não importa se você é ou não capitalista, você tem um voto. Quando essa maioria tem um controle, por que não acaba com a propriedade privada e, portanto, com tudo isso? Pois a história das sociedades desenvolvidas mostra que o desenvolvimento é um processo de ganha-ganha. A interação entre o trabalho vivo e o capital é produtivo.
O que é o capital? É o trabalho morto que está cristalizado. O que é um trator? É o trabalho vivo anterior, que virou um trator. Mas quando ele é usado pelo trabalho vivo e novo, aumenta a produtividade. Na medida em que você aumenta a quantidade de bens de capital por unidade de trabalho capaz de operá-los, você tem um ganho de produtividade. Então esse processo é que produz desenvolvimento, que consiste apenas nisto: aumento da produtividade do trabalho.
Como o contexto de hoje afeta a indústria?
O setor industrial foi destruído. Em 1980, o Brasil tinha a indústria mais sofisticada do mundo emergente. Hoje tem uma indústria atrasada, provavelmente seu equipamento tem 12 ou 15 anos de vida. Estamos andando para uma indústria 4.0 e ainda devemos estar na indústria 1.5. Essa indústria foi destruída por uma política consciente que usou o câmbio como instrumento de combate à inflação e que usou taxa de juros elevadíssima para sustentar esse câmbio. Ampliou a carga tributária de forma gigantesca e eliminou o desconto do imposto da exportação. Quer dizer, fizemos tudo errado. Nos últimos 30 anos, o Brasil cometeu erros mortais.
O Plano Real foi uma pequena joia que reestabeleceu o que parecia impossível, acabou com a inflação. Mas do ponto de vista do crescimento é um fracasso monumental. O Brasil cresce hoje 1/3 do que cresce o mundo emergente. Ou seja, o País perdeu a velocidade do crescimento. Cometemos diversos erros e hoje estamos numa situação difícil, pois a posição fiscal é muito mais dramática do que as pessoas pensam.