Cresce a preocupação da indústria nacional com o aprofundamento da crise político-econômica do País. Programas de incentivo à produção local e à inovação tecnológica estão sendo desmontados sem que o poder público defina claramente um novo conjunto de diretrizes para o desenvolvimento econômico e social. O setor de química fina não é exceção. Pouco interesse tem sido demonstrado pelo atual governo no programa Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP), que foi concebido e implementado na última década para garantir o suprimento de medicamentos e fármacos ao Sistema Único de Saúde, fortalecer a cadeia produtiva e incentivar a inovação e a pesquisa tecnológica na indústria farmacêutica. No segmento agroquímico, que não chegou a contar com mecanismos específicos de apoio, discute-se a adoção de critérios de prioridade para registro de produtos que poderão desestimular ainda mais a produção nacional.
Parcerias de Desenvolvimento Produtivo em risco
O Ministro da Saúde Ricardo Barros manifestou a intenção de alterar os contratos das PDPs, reduzindo as compras de produtos oriundos dessas parcerias para 70% da demanda do SUS. Ele pretende que 30% passem a ser adquiridos mediante licitações internacionais, e que o preço obtido em tais operações determine o custo de aquisição dos produtos fabricados no País.
Isto significa uma volta à política praticada nos anos 1990, que praticamente aniquilou a indústria local de fármacos e medicamentos ao ignorar a estrutural falta de isonomia entre o fabricante nacional e seus concorrentes estrangeiros, especialmente da China e da Índia. Por meio de pregões eletrônicos internacionais, o governo adquiria princípios ativos como se fossem commodities, e frequentemente a qualidade desses produtos era tão baixa que o laboratório público precisava reprocessá-los antes de formular os medicamentos. Para solucionar o problema, em meados da década de 2000 o laboratório Farmanguinhos/Fiocruz obteve do governo federal permissão para contratar o fornecimento daqueles produtos com a indústria farmoquímica local, inaugurando parcerias precursoras das atuais PDPs.
Na opinião de Jaime Rabi, diretor executivo da Microbiológica, as distorções na política industrial brasileira vêm de longo tempo e não chegaram a ser corrigidas pelas PDPs. “Após mais de trinta anos de políticas industriais voluntaristas que, conceitualmente, incentivariam a inovação como ferramenta essencial para evolução competitiva da indústria químico-farmacêutica nacional, vemos que, na prática, houve apenas substituição de importações. Mesmo na versão atual da PDP, que é um projeto com estrutura e alicerces inexistentes no passado, o foco continua sendo a substituição de importações”.
Rabi aponta a repetição de antigos vícios nas iniciativas dos últimos governos em apoio à fabricação local de medicamentos. “Ao publicar listas de medicamentos ‘estratégicos’, passíveis de PDP, o Ministério da Saúde tem conseguido, de forma eficiente, orientar todo, ou quase todo, o potencial desenvolvimentista brasileiro no mesmo paradigma de imitar o passado. Exemplo claro é o Inova Saúde, de 2013, que usou como critério central de seleção o atrelamento dos projetos a alguma PDP vigente na época, colocando o apelo à inovação como um mero atrativo da chamada. A ideia da PDP como ferramenta de diminuição de custos é válida. Os resultados são aparentes, já que até as multinacionais têm aderido às chamadas como forma de evitar a possibilidade de licenças compulsórias. A política do menor preço, exercida principalmente sobre a indústria farmoquímica, não deixa margem nem para a manutenção e desenvolvimento das estruturas produtivas já instaladas, nem para o esforço inovativo em novos produtos e nem mesmo para a necessária atualização de nosso parque industrial. Essa política ainda limita em muito a tão desejada interação com a universidade”.
Para o presidente técnico-científico da Biolab Farmacêutica, Dante Alario, esse programa tem grandes méritos e deve ser preservado. “As PDPs foram concebidas para cumprir alguns importantes papeis. O primeiro seria trazer para o Brasil tecnologias inovadoras e produtos de ponta que não tínhamos, gerando demanda para novas fábricas, mais empregos qualificados, ganho de conhecimento, aumento do faturamento do setor de medicamentos e consequentemente maior arrecadação de impostos. Uma vez fabricados no Brasil, tais produtos teriam que ser obrigatoriamente mais baratos que os importados, reduzindo custos para o governo e para os usuários”.
Em contrapartida à utilização do poder de compra do Estado para estimular a produção local e o desenvolvimento da indústria farmacêutica aqui instalada, explica Alario, “o governo teria maior segurança na elaboração e no cumprimento de uma política de saúde para atendimento de nossa população. No entanto, apesar destas e de outras vantagens que as PDPs propiciam, tal política encontra-se parada ou quase estática. E as indústrias, neste clima de insegurança total, encolhem-se, pois são altíssimos os investimentos feitos e a fazer sem garantia de que o governo comprará os produtos aqui fabricados a preços interessantes para ambas as partes”.
Alario chama atenção para as assimetrias tributárias que dificultam a oferta de preços competitivos pela indústria farmacêutica nacional. “Sem exceção, os medicamentos são classificados como essenciais por todo e qualquer governo/ país. No entanto, no Brasil, não se fala em reduzir ou mesmo eliminar impostos e, consequentemente, fazer com que os medicamentos cheguem ao paciente a um preço menor, possibilitando que mais pessoas acessem os produtos. Só se fala em aumentar a acessibilidade através do controle de preços, mas nunca na redução dos impostos incidentes sobre os medicamentos. Sabemos que o Brasil é um dos países com maior incidência de impostos sobre medicamentos no mundo, com 31,3% contra uma média mundial de 6,3%”.
“Produtos que estiveram vigentes por décadas foram substituídos em pouco tempo por outros, e estes por outros, de valor agregado cada vez maior, em ritmo alucinante” – Jaime Rabi
O diretor executivo da Eurofarma, Walker Lahmann, acredita que os bons resultados apresentados nos últimos anos pela indústria farmacêutica instalada no País a credenciam como candidata a um novo plano governamental de desenvolvimento. “Em tempos de crise e turbulências econômicas no Brasil, com o PIB lutando contra a imobilidade, vemos um setor farmacêutico que ousa crescer cerca de 10% em valores, no acumulado de doze meses até junho de 2017, comparado com igual período do ano anterior. Mesmo considerando que parte desse crescimento vem da recuperação da inflação, o resultado supera a média nacional. Mas poderíamos antever muitos outros anos vindouros com a mesma pujança e desenvolvimento que tivemos até hoje? Certamente não. Para garantir que, no futuro, a indústria farmacêutica no Brasil continue contribuindo para o desenvolvimento da economia nacional, é importante que ajustes sejam realizados desde já. Diria que estamos, aliás, bem atrasados em diversos aspectos estruturantes e que mereceriam a atenção de um plano de desenvolvimento do setor”.
A indústria farmacêutica nacional deu provas de sua capacidade de investir e se fortaleceu muito a partir da política de genéricos no Brasil, afirma Lahmann. “Durante esse período, as empresas nacionais desenvolveram-se e ofereceram tecnologias e produtos de classe mundial à população brasileira, ampliando o acesso, reduzindo custos e garantindo níveis de segurança e qualidade comparáveis aos mercados mais regulados do mundo. Hoje, essas mesmas empresas têm o desafio de continuar liderando o desenvolvimento do setor e produzindo inovação incremental e radical, além de biotecnologia. Para que possamos avançar na produção de inovação capitaneada pelas empresas brasileiras, há a necessidade de ajustes em políticas e ações públicas”. Alguns ajustes que poderiam ter efetivo impacto na capacidade de inovar, lançar produtos e produzir tecnologias relevantes, segundo Lahmann, dizem respeito à estabilidade do marco regulatório e desburocratização das atividades correlatas, à redução da tributação de serviços tecnológicos, à aproximação entre universidades e empresas para desenvolvimento conjunto de projetos de inovação e à adequação do sistema regulatório para a inovação gerada no País.
“Só se fa la em aumentar a acessibilidade através do controle de preços, mas nunca na redução dos impostos incidentes sobre os medicamentos” – Dante Alario
“Sem um arcabouço legal e regulatório estável não conseguiremos potencializar os avanços da inovação no País”, sublinha o diretor da Eurofarma. “Hoje temos regulamentações que se alteram com frequência ou que dão margem a diferentes interpretações. Devido à complexidade e longo tempo necessário para o desenvolvimento de um medicamento, é imprescindível haver previsibilidade e estabilidade da regulamentação. Nesse sentido, temos, por exemplo, acompanhado iniciativas da Anvisa voltadas para identificar o impacto de novas normas regulatórias no setor produtivo, na sociedade e no próprio funcionamento da Agência. Iniciativas que buscam antever as consequências das novas regulamentações (Análise do Impacto Regulatório) podem garantir o atendimento aos anseios da sociedade sem causar rupturas nos processos de inovação já iniciados”.
Na opinião de Lahmann, a Anvisa tornou-se uma agência de nível mundial e elevou o patamar das empresas nacionais e outras estabelecidas no País. “Todas tiveram um denso processo de adaptação e incremento tecnológico, possibilitando importante progresso sanitário em benefício da sociedade. Mas cabe lembrar que a complexidade da regulação, somada ao crescimento do setor, trouxe alguns efeitos nocivos como a geração de enorme passivo na Agência e uma ampliação nos prazos para emissão de registros de medicamentos e para anuência de alterações em medicamentos já existentes – pós- -registros. Recente iniciativa da própria Anvisa deve dar um ganho de eficiência e agilidade nas análises de registros, com racionalização de processos internos. E novos procedimentos estão em discussão para também acelerar os processos de pós-registro. Essas iniciativas também são altamente meritórias e mostram que a capacidade de gestão e de otimização de recursos é fundamental para conferir mais agilidade”.
O diretor da Eurofarma assinala que o desenvolvimento de inovações farmacêuticas no Brasil irá requerer adaptações por parte da Anvisa. “Quase todos os pedidos de registro de produtos inovadores recebidos pela Anvisa foram submetidos por empresas multinacionais, com estudos realizados ou conduzidos no exterior. Esse é um cenário estabelecido, uma vez que tais empresas sempre foram geradoras de inovação farmacêutica. No entanto, a indústria instalada no Brasil já tem suas iniciativas de desenvolvimento para medicamentos inovadores – incrementais ou radicais. Assim, há uma mudança de cenário e faz-se necessário adequações no órgão regulador de forma a incentivar e tratar adequadamente o desenvolvimento feito no Brasil. Este processo é crescente e robusto; portanto precisaremos de técnicos e regulamentações ajustados a esse novo momento, principalmente no campo da inovação incremental”.
Remunerar adequadamente as conquistas da atividade inovadora é uma das reivindicações que, segundo Lahmann, serão encaminhadas ao governo pelas entidades do setor. “As normas da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed), que controla os preços de medicamentos no País, precisam avançar nos critérios de concessão de preços, pois as regras vigentes também foram lavradas em um tempo em que os medicamentos novos vinham do exterior e, agora, se mostram inadequadas para a correta precificação de inovações incrementais e/ou radicais produzidas no Brasil. Sem esse imprescindível ajuste, os projetos de inovação que vêm sendo desenvolvidos no País permanecem no campo da imprevisibilidade”.
No que tange à tributação de serviços tecnológicos, Lahmann defende que se façam mudanças. “Vivemos hoje um período de transição, no qual queremos utilizar novas tecnologias e, também, desenvolver processos inovadores localmente. Entretanto, para que isso aconteça, é necessário contratar serviços no exterior e internalizar tecnologias de que o País ainda não dispõe e que são fundamentais para a modernização e atualização da produção local, bem como para estimular a inovação. Dada sua importância estratégica para o desenvolvimento do setor no País, não deveriam ser tributados da mesma forma que outros serviços contratados no exterior de menor relevância. Usualmente tais impostos são superiores a 40%. É possível que, ao decidir tributar serviços realizados fora do território nacional, a intenção seja desenvolver fornecedores nacionais com o mesmo escopo. No entanto, quando desenvolvemos e internalizamos inovação e conhecimento, esse processo tributário torna-se nocivo e ineficaz. O mesmo acontece com o pagamento de royalties para a internalização de tecnologias, limitado a tal ponto que se torna um obstáculo à transação”.
Para contornar essas adversidades, informa o diretor da Eurofarma, algumas empresas nacionais que mantém o foco em inovação têm recorrido à prática de constituir unidades de pesquisa no exterior, “transferindo para outros países processos importantes relacionados às atividades de pesquisa e inovação. Um caminho possível seria reduzir a tri- butação para a contratação de serviços no exterior quando destinados a projetos de inovação. O mesmo deveria valer para o limite de royalties. Note-se que já existe precedente em outra área na legislação brasileira. O MDIC dispõe do Sistema de Registro de Informações de Promoção (Sisprom), que oferece às empresas redução a zero da alíquota do imposto de renda para pagamentos de despesas no exterior relacionadas à promoção de produtos ou pesquisa de mercado. A medida é eficaz na promoção das exportações brasileiras e tem funcionado bem. Para isso, as despesas candidatas à isenção são previamente validadas pelo MDIC. Sistema semelhante poderia ser adotado para a isenção de tributos relacionados a despesas de inovação, com validação prévia de algum órgão governamental. Este seria um importante mecanismo de incentivo à inovação no Brasil”.
A boa notícia, segundo o executivo, é que o diálogo com os diversos órgãos governamentais intervenientes na indústria farmacêutica tem sido “bastante amplo, participativo e eficaz. Essas e outras iniciativas têm sido propostas pelas entidades representativas do setor e muitos gestores públicos têm se dedicado à busca de soluções para os problemas. Embora sejam inciativas de médio e longo prazo, a perspectiva de avanços é real e positiva. O setor farmacêutico segue ampliando os investimentos em inovação e continuará perseguindo novos saltos. A indústria nacional está capacitada e comprometida com o desenvolvimento econômico e social do Brasil”.
Inovação: um desafio ainda por vencer
Em contraste com o otimismo de Lahmann, Jaime Rabi enxerga no ambiente industrial brasileiro um círculo vicioso de acomodação a uma posição subalterna no campo da inovação tecnológica. “Enquanto a grande indústria inovadora orienta seus esforços pelo potencial econômico que representa encontrar uma solução para uma necessidade médica ainda não atendida, nós, confortavelmente e incentivados pelo governo, nos acomodamos em uma postura de ‘autoengano’, a tentar imitar o passado com os resultados que ali estão, ou nem mesmo isto. E não é dizer que a indústria farmacêutica nacional não enxerga a inovação como mecanismo eficiente de buscar liderança internacional em alguma área, pois, de fato, as empresas mais capitalizadas pelo mercado de genéricos têm buscado sua inserção internacional, investindo em empresas emergentes no hemisfério Norte. Na realidade, acredito eu, o fazem mais como um investimento de risco, com grande potencial de retorno financeiro, do que pela emoção de participar da descoberta de um medicamento inovador”.
Na opinião do diretor da Microbiológica, falta ousadia. “Em outras palavras, assume-se o risco financeiro de apostar na iniciativa de outros, ‘diversificando’ inclusive o investimento em várias empresas emergentes, como se faz no mercado para minimizar o risco financeiro. Já assumir o risco de ser protagonista de um projeto renovador e liderar o estabelecimento de um novo paradigma tecnológico é uma atitude pouco frequente entre nós. Sendo assim, ou mudamos nossa postura ou deveremos nos contentar com o recolhimento em nossa relativa insignificância. Uma coisa é a transitoriedade do governo sem políticas de Estado, outra é a nossa responsabilidade, como empresários, de lutar constantemente para criar formas de existir no futuro”.
Entretanto, assinala Rabi, “não observamos mudanças de postura nem por parte do governo nem da maioria das empresas no sentido de focar em inovação tecnológica como forma de criação de futuro. É como se negássemos a nossa capacidade de criar valor, no Brasil, através do processo de invenção e apropriação de conhecimento. Continuamos trabalhando dentro de paradigmas tecnológicos estabelecidos no exterior. Não assumimos a responsabilidade de sermos líderes nem nas doenças (tropicais), que nos ameaçam de forma mais seletiva. Até para resolver os nossos próprios problemas, fundamentamos, na prática, nossa esperança no esforço de outros”.
Pela falta de investimento em inovação radical, prossegue Rabi, “nossa balança comercial continuará expandindo seu déficit ad eternum, ainda mais nos dias de hoje, quando a fronteira tecnológica está sendo continuamente desafiada em ritmo de grande aceleração. Produtos que estiveram vigentes por décadas foram substituídos em pouco tempo por outros, e estes por outros, de valor agregado cada vez maior, em ritmo alucinante. Não há commodities agrícolas nem minérios que consigam pagar os produtos da revolução tecnológica em curso. Assim, o nosso ‘tropismo’ pela imitação, que já fazemos com lentidão, de certa forma representa a condenação à morte antes de nascer. E não é apenas o que fazemos, mas dramaticamente também o como fazemos. Nesta perspectiva, nossa inserção competitiva no mercado é um sonho irrealizável”.
“Sem um arcabouço legal e regulatório estável não conseguiremos potencializar os avanços da inovação no País” – Walker Lahmann
O diretor da Microbiológica percebe com clareza os limites do poder de compra do Estado como instrumento de apoio à inovação. “O governo joga bem seu papel de comprador exigindo sempre o menor preço, buscando formas criativas de fazer valer o seu poder de compra. O governo quer visibilidade política para se perpetuar no poder atendendo às necessidades imediatas da população, que exige seus direitos definidos na Constituição. Até que uma nova crise nos ameaça e voltamos a enxergar que, sem inovação, o equilíbrio de nossa balança comercial fica dependente das commodities, distanciando-se da necessária elevação da qualidade do emprego e da renda dos brasileiros”.
A ciência, hoje em dia, é um bem cultural de primeira necessidade, conclui Rabi. “Como tal, devemos confiar no seu exercício como forma de ambicionar o futuro promissor que acreditamos merecer. No laboratório aprendemos a ver através da pesquisa, a revelar o que antes era desconhecido. Da mesma forma, no exercício da inovação, focado em problemas relevantes, poderemos desvendar soluções para problemas de saúde pública que nos ameaçam. O risco é grande, mas a trajetória é formadora de um tecido social essencial para existirmos com dignidade na contemporaneidade que nos desafia”.
“Acreditamos que a inovação oriunda da biodiversidade, seja na forma de extratos ou de moléculas inéditas desenvolvidas a pa rtir de moléculas naturais, seja um diferencial competitivo forte pa ra o Brasil” – Cristina Ropke
Para Walker Lahmann, a superação dos obstáculos à inovação inclui necessariamente a aproximação entre indústria e laboratórios universitários de pesquisa. “Há uma dissociação entre as universidades e empresas no setor da inovação farmacêutica. Os cursos de graduação ainda não estão preparando profissionais adaptados às necessidades atuais do setor. Da mesma forma, carecemos de mais frentes de pesquisa em inovação na academia que possam resultar em projetos aplicáveis na produção de medicamentos. Essa distância entre academia e indústria poderia ser diminuída com mecanismos de entendimento recíproco de necessidades. Um programa que leve para a universidade as necessidades do setor produtivo – em pesquisa, conhecimento e capacitação – poderia pavimentar essa ponte entre academia e instituições privadas e levaria também para as indústrias as iniciativas em pesquisa e tecnologia das universidades”.
Ciente das dificuldades de colaboração entre empresas e universidades, a Finep anunciou que lançará um novo programa para incentivar o setor privado e a academia a desenvolverem conjuntamente inovações tecnológicas. Segundo o presidente da agência, Marcos Cintra, com o programa Finep Conecta as empresas que investirem em projetos de pesquisa em conjunto com instituições acadêmicas terão taxas de juros menores, além de prazos e carências mais longos nos empréstimos da agência. “Com o Conecta, vamos aproximar o setor produtivo da comunidade científica e, ao mesmo tempo, financiar parte da necessidade de custeio da academia”, informou Cintra.
Considerando a dimensão de sua biodiversidade, um segmento da indústria farmacêutica em que o Brasil teria grande potencial para inovar é o de fitoterápicos. “Acreditamos que a inovação oriunda da biodiversidade, seja na forma de extratos ou de moléculas inéditas desenvolvidas a partir de moléculas naturais, seja um diferencial competitivo forte para o Brasil”, afirma Peter Andersen, presidente do grupo Centroflora.
Os produtos naturais em geral são fontes importantes de inovação farmacêutica, observa Andersen. “Estima-se que até dois terços dos fármacos modernos possuam alguma relação com produtos naturais, mesmo que muitos sejam obtidos atualmente por rotas sintéticas ou semissintéticas. O Brasil possui cerca de 22% da biodiversidade vegetal do planeta, com 55.000 espécies de fanerógamas dentre as 250.000 descritas (fonte: The Status of Brazilian Biological Diversity, no website do Ministério do Meio Ambiente). Essa variedade biológica implica em diversidade química, um dos fatores mais importantes para a inovação farmacêutica”.
Porém, a indústria nacional tem encontrado dificuldades para converter esse importante diferencial em medicamentos. O presidente do Centroflora lembra que o déficit da balança comercial farmacêutica brasileira atingiu US$ 6,7 bilhões em 2016 (fonte: Abiquifi). “Além do grande volume de divisas, este déficit significa a não geração de dezenas de milhares de empregos de alta qualificação. A comercialização mundial de um único medicamento inovador brasileiro poderia modificar esse cenário. Vários medicamentos comercializados pelas multinacionais farmacêuticas faturam mais de US$ 1 bilhão por ano (os chamados blockbusters). Esforços vêm sendo feitos há décadas por instituições públicas e privadas, buscando o medicamento brasileiro. Houve algumas inovações, mas o grande salto ainda está por vir”.
De olho no futuro promissor dos fitoterápicos, o grupo Centroflora criou recentemente a Phytobio, empresa dedicada à inovação radical que está trabalhando na montagem de uma plataforma de Drug Discovery. Segundo Cristina Ropke, CEO da Phytobios, esta ferramenta ficará acessível às empresas brasileiras, “utilizando as melhores tecnologias e os melhores processos atualmente disponíveis”. Porém, acrescenta Ropke, “a simples concentração de bons recursos não é suficiente para o sucesso nesse setor tão complexo e competitivo. O cenário legal que afeta o emprego de plantas medicinais da biodiversidade brasileira precisa ser acompanhado de perto pelo setor produtivo. Na legislação há inúmeros termos técnicos, muitos deles utilizados com imprecisão e que, por isso, necessitam de certa margem de apreciação diante do caso concreto. A regulamentação da lei de acesso ao patrimônio genético continua um desafio a ser vencido e precisa haver uma maior interlocução com outros ministérios como o da Saúde, no que tange à promoção do desenvolvimento de medicamentos oriundos da biodiversidade. O fato de o Brasil lidar com o cenário de repartição de benefícios dentro dos preceitos da Convenção de Diversidade Biológica precisa estar em harmonia com iniciativas para aumentar o número de registros de medicamentos da biodiversidade nacional. Hoje ainda registramos muito mais medicamentos oriundos da biodiversidade estrangeira”.
Agroquímicos: importações avançam
As importações de produtos químicos para o agronegócio brasileiro, incluindo fertilizantes, intermediários e defensivos agrícolas, cresceram 10,4% (valor FOB) no primeiro semestre deste ano, em comparação com o mesmo período do ano passado. Esses dados constam no Sistema Alice (Análise das Informações de Comércio Exterior), mantido pela Secex (Secretaria de Comércio Exterior). Esse segmento da química fina em nenhum momento chegou a contar com o apoio de políticas públicas para estimular a produção local. Historicamente dependente da importação de defensivos, o agronegócio brasileiro corre o risco de se tornar inteiramente refém dos fornecedores estrangeiros.
João Sereno Lammel, conselheiro da Ourofino Agrociência, prefere analisar o problema sob a ótica do ambiente macroeconômico. “A indústria brasileira tem perdido espaço no contexto da economia global, por uma combinação de fatores amplamente conhecida e debatida no dia-a-dia das empresas, das entidades representativas do setor e da imprensa. Entre os motivos que trabalham contra o desenvolvimento local, poderíamos mencionar a infraestrutura deficiente, os serviços ineficientes, a insegurança jurídica, a estrutura tributária cara e complexa e o excesso de burocracia. Enfim, o chamado ‘custo Brasil’ para fazer negócios”.
“Será preciso avançar em aspectos importantes, como ter um sistema regulatório mais previsível quanto ao tempo pa ra a concessão de registros de defensivos agrícolas, e corrigir as distorções tributárias existentes” – João Lammel
No segmento de defensivos agrícolas, além dos fatores gerais que prejudicam o avanço industrial do País, Lammel aponta obstáculos específicos. “Os principais são a demora e a imprevisibilidade na concessão de registros, bem como distorções tributárias que incentivam a importação de produtos prontos para uso em detrimento da produção local. Esses desincentivos à produção local, apesar da relevância econômica e estratégica da nossa agricultura, inibem o desenvolvimento de produtos e formulações específicas para as necessidades de clima e solo brasileiros, assim como impedem a compra nacional de componentes como embalagens e serviços, o que afeta a geração de empregos e o incremento da cadeia industrial química”.
Mesmo que a indústria brasileira de defensivos agrícolas venha a experimentar algum crescimento, afirma Lammel, “será preciso avançar em aspectos importantes, como ter um sistema regulatório mais previsível quanto ao tempo para a concessão de registros e corrigir as distorções tributárias existentes. Essas mudanças estimulariam o desenvolvimento nacional de formulações e componentes, aumentariam a geração de emprego e gerariam inovações tecnológicas com a introdução de produtos mais adaptados às condições brasileiras de solo e clima”.
Atualmente, mais de mil produtos aguardam o aval do governo federal para serem comercializados e aplicados nas lavouras do País. O sinal verde é dado somente depois de os produtos serem aprovados em três análises distintas. O Ministério da Agricultura avalia a eficácia do produto, a Anvisa verifica a segurança para a saúde humana e o Ibama analisa as implicações ambientais. Pela fila geral, que obedece à ordem cronológica das inscrições, a espera leva atualmente cerca de oito anos, em média. Para se ter ideia, no ano passado foram concedidos 277 pedidos.
A pretexto de apressar o registro de um pequeno grupo de produtos, sob a justificativa de que seriam essenciais para a segurança da produção agrícola nacional, o Ministério da Agricultura criou uma lista de prioridades para registro cujos critérios têm sido criticados dentro e fora do governo. Há pesados interesses comerciais envolvidos, uma vez que o direito de furar a fila de espera abre para o beneficiário um mercado bilionário – só em 2016, o Brasil movimentou US$ 9 bilhões em defensivos agrícolas.
A lista já está em sua terceira versão. Foram as duas últimas, editadas este ano, no entanto, que provocaram maior reação. Na seleção formulada pelo Ministério da Agricultura constam, por exemplo, princípios ativos que foram banidos da Europa e substâncias indutoras do crescimento de plantas, sem nenhuma função propriamente defensiva contra pragas. Também chama atenção o fato de que a lista inclui como possíveis beneficiários da prioridade, além de fábricas instaladas no Brasil, escritórios de registro, que não necessariamente representam fabricantes locais.
É natural que, num contexto de crise econômica global, as pressões comerciais se acirrem, atingindo sobretudo países com cadeias industriais vulneráveis, como o Brasil. Em momentos críticos como o atual, faz toda diferença a postura do Estado frente aos interesses em jogo. É preciso que os governantes estejam cientes de que certas concessões, mesmo gerando ganhos imediatos, podem comprometer o desenvolvimento econômico e social do País no longo prazo – ou seja, o nosso futuro.