REVISTA FACTO
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Abr-Jun 2017 • ANO XI • ISSN 2623-1177
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//Matéria Política

Reindustrialização: o rumo do desenvolvimento sustentável

Combalida pelos efeitos de uma crise internacional ainda em curso, fragilizada por distorções estruturais que degeneraram numa grave desindustrialização e, mais recentemente, castigada pela pior recessão de sua história, a economia brasileira vive um momento dramático. Em que pesem as mensagens de otimismo do novo governo, a dupla dimensão econômica e política da crise atual representa um enorme obstáculo à retomada do desenvolvimento.

O economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, assinala que as raízes do problema datam de mais de duas décadas, quando as condições para a retomada dos investimentos privados no País começaram a ser corroídas. “Desde 1994 a economia brasileira enfrenta uma quase-estagnação, decorrente de juros muito acima dos praticados em países do mesmo nível de desenvolvimento que o Brasil e de uma taxa de câmbio sobreapreciada no longo prazo e ciclicamente. Essa armadilha macroeconômica de juros altos e câmbio sobreapreciado torna as boas empresas industriais não competitivas e, assim, inviabiliza o investimento privado tanto nacional quanto estrangeiro”.

Os números contam a história do desmonte da indústria. Segundo o conselheiro da ABIFINA Marcos Oliveira, “a perda da participação da indústria de transformação no PIB brasileiro não é nova. Os primeiros alertas sobre esse fenômeno foram dados há mais de dez anos, quando a participação estava no nível de 17,6%, e desde então não parou de cair, atingindo 11,4% em 2016, mesmo nível de 1947. Para piorar o quadro, a inserção de conteúdo importado na produção industrial brasileira saltou de aproximadamente 16% em 2003 para 24% em 2016. A política cambial do período, mantendo o Real permanentemente supervalorizado, foi uma das principais, senão a principal responsável pela perda de dinamismo da indústria e pelo incremento persistente da importação de bens industriais. A sobrevalorização foi reduzida em anos recentes, mas não eliminada”.

Retomada do crescimento está fora do radar

Em recente entrevista ao portal G1, o economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), Rafael Cagnin, traçou um quadro realista das perspectivas do setor: “Não estamos numa recuperação ainda. O movimento atual é de estancamento da crise, com alguns componentes positivos e uma base de comparação muito baixa. No primeiro trimestre de 2017, contra o último de 2016, houve queda de 0,7%, com todas as grandes categorias em queda. Uma coisa é parar de piorar, outra é voltar a crescer”.

Quem tirou a indústria do vermelho na virada de 2016 foi o setor extrativo, que se beneficiou do boom de exportações ocorrido nos primeiros meses de 2017 e cresceu nada menos do que 8,2%, esclarece o economista. “Na outra ponta está a indústria de transformação, que continua no campo negativo e tem o maior déficit da balança comercial. A indústria de transformação continua em queda, não há recuperação”. Ele recorda que é próprio da dinâmica de ciclos a alternância entre crescimento, queda e retomada da economia, “mas a amplitude de cada uma dessas etapas não é previsível. Parar de cair não quer dizer que vamos voltar a crescer. Podemos ficar presos no fundo do poço por mais tempo. Dado o tamanho da queda e a dificuldade financeira das empresas, é preocupante”.

Mesmo assim, o atual governo acredita que, após a queda da inflação e dos juros, investimentos privados ocorrerão naturalmente, atraídos pelo tamanho do mercado brasileiro. Esse otimismo, de acordo com todos os especialistas entrevistados, é um exagero. Para o economista e ex-presidente do BNDES Carlos Lessa, “historicamente foi o mercado interno brasileiro que atraiu significativos investimentos do resto do mundo – predominantemente norte-americanos, secundariamente europeus e terciariamente japoneses. E o Brasil, como teve uma postura não restritiva à entrada de capitais, acumulou participações muito significativas desses capitais. Esse capital de origem estrangeira, assim como o capital nacional, investe em função de expectativas de lucros, e não sei se hoje as empresas estrangeiras instaladas no Brasil têm expectativas de lucro muito favoráveis em relação ao futuro. No mínimo, elas devem ter muitas dúvidas a respeito. Não creio na perspectiva de uma retomada significativa de investimentos estrangeiros baseada na nossa demanda interna”.

No mesmo tom pessimista, o economista e professor da PUC-SP Antonio Corrêa de Lacerda considera “pouco provável que apenas a sinalização do propalado ‘ajuste fiscal’ e o discurso das reformas sejam suficientes para a retomada. É um equívoco ao qual o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman chama de ‘fábula da Fada da Confiança’. Não há precedente histórico que confirme tal hipótese. Seria inédito se de fato isso ocorresse no Brasil, lembrando que vários outros fatores dificultam a retomada – tanto fatores macroeconômicos, tais como juros elevados, Real artificialmente valorizado e limitação de investimentos públicos, quanto outros ligados à questão da competitividade”.

A complexidade dos fatores envolvidos na retomada do crescimento econômico também é destacada por Marcos Oliveira. Segundo ele, “as quedas da inflação e dos juros são certamente variáveis importantes, mas creio que avaliar as perspectivas brasileiras de reindustrialização baseando-se apenas nelas é simplificar demais o problema. Há que se examinar o nível e a tendência da demanda agregada, ou seja, o mercado consumidor no País, e os rumos da macropolítica econômica do governo”.

“Não sei se hoje as empresas estrangeiras instaladas no Brasil têm expectativas de lucro muito fa voráveis em relação ao futuro. No mínimo elas devem ter muitas dúvidas a respeito” – Carlos Lessa

O conselheiro da ABIFINA chama atenção para a tendência de queda do poder de compra do consumidor brasileiro. “O mercado consumidor é um fator básico para o esforço de reindustrialização e merece uma atenção especial. Como nossa competitividade para exportar é baixa, a recuperação da produção industrial vai depender substancialmente do mercado interno, e o Brasil tem aí um problema grave diante das tendências da política do atual governo para o enfrentamento da crise financeira do Estado. O problema da diminuição do poder de compra é sério, seja no âmbito do mercado privado, seja na esfera do mercado governamental. O Brasil tem hoje cerca de 14 milhões de desempregados e a renda das famílias está em queda acentuada. As políticas desenhadas pelo atual governo, mudanças na Seguridade Social e nas relações trabalhistas tendem a agravar o problema da perda de poder aquisitivo das famílias. No caso do poder de compra do Estado, o problema não é menor. O orçamento para 2017, o primeiro depois da limitação legal dos gastos governamentais, foi aprovado com um déficit de R$ 139 bilhões, apesar dos cortes feitos nas verbas de custeio, distribuídas por todos os ministérios. O valor global do orçamento é de R$ 3,5 trilhões, dos quais R$ 946,4 bilhões são destinados somente para o pagamento dos encargos da dívida pública”.

Diante destes números, Oliveira conclui que “fica difícil acreditar numa recuperação da produção industrial baseada no mercado interno sem um reordenamento da política econômica do governo. Ela deveria ser orientada, em primeiro lugar, para a recuperação do poder de investimento do Estado via redução dos custos de rolagem da dívida e redistribuição da carga tributária e, em segundo lugar, para uma política redistributiva de renda”.

“Fica difícil acreditar em recuperação da produção industrial baseada no mercado interno sem um reordenamento da política econômica do governo” – Marcos Oliveira

O problema dos altos juros, na opinião de Marcos Oliveira, precisa ser atacado com urgência. “A dívida pública federal encerrou fevereiro no valor de R$ 3,13 trilhões, com um custo médio do estoque da ordem de 11%. Cerca de 60% dessa dívida está atrelada à Selic e a outros indicadores flutuantes. Com a inflação atingindo o nível de 4%, recessão de 7% do PIB nos últimos dois anos e um nível de desemprego elevado, não parece haver nenhuma razão para manter os juros reais num nível tão alto. Um corte acentuado na Selic traria uma redução nos gastos financeiros do governo que aliviaria o déficit orçamentário previsto”.

A segunda via para a recuperação do poder de compra do Estado, de acordo com Oliveira, seria uma revisão tributária. “Repete-se o mantra de que a carga tributária brasileira é elevada, o que é discutível. Mas o pior é que ela é pessimamente distribuída, onerando mais as camadas de menor renda da população, exatamente aquelas que poderiam ter um papel mais relevante na recuperação econômica do País. Há anos que o governo não corrige as alíquotas do Imposto de Renda e sua faixa de isenção, o que, num ambiente de inflação elevada, significa aumento do tributo. O Brasil é um dos países que mais taxam bens e serviços e um dos que têm a menor taxação sobre rendas. Uma redistribuição destas taxas com foco na tributação das rendas, lucros e capital daria uma substancial contribuição para a melhoria do poder de compra da população de mais baixa renda sem necessariamente aumentar a carga tributária total”. 

Outra medida sugerida pelo conselheiro da ABIFINA para que o Estado possa recuperar seu poder de atuação em prol do desenvolvimento seria utilizar uma fração das reservas internacionais do País. “O Brasil tem hoje reservas da ordem de US$ 375 bilhões, suficientes para cobrir o volume de suas importações por mais de 32 meses, considerando- se o volume de importações de 2016. Isso é um exagero, além de significar um custo para as contas governamentais. O governo poderia confortavelmente lançar mão de US$ 25 a 30 bilhões dessas reservas para reduzir o déficit fiscal e permitir a recuperação de seu poder de compra e de investimento”.

Para o diretor geral da Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica (Protec), Roberto Nicolsky, o problema da retomada do desenvolvimento econômico e social do País transcende a questão do estabelecimento de parâmetros macroeconômicos competitivos. Ele acredita que uma eventual reativação dos investimentos motivada pelo tamanho do mercado consumidor “não é necessariamente o melhor custo/benefício para um país emergente. É claro que em alguma medida isso ocorrerá, mas será sempre após a busca por modos em que a eficácia do menor investimento possível seja a maior. Isso em geral significa importação dos componentes e uso de RH de montagem simples, agregando o mínimo de valor, principalmente quando já dominada uma parcela do mercado ou quando os competidores locais forem débeis nas funcionalidades agregadas ou qualidades. Esse tipo de investimento gera baixo crescimento do PIB e pouco afeta a exportação, além de criar dependência tecnológica, pois o centro de desenvolvimento de inovações fica fora do País e torna-se um regulador da eficácia da operação e do lucro. É o modelo seguido principalmente pelas indústrias de artigos duráveis de consumo, como a indústria automobilística, de celulares, tablets, computadores e outros segmentos da indústria eletrônica. Além da montagem, a indústria local tenderia a restringir-se às primeiras e mais simples transformações das matérias primas locais, tanto minerais e químicas quanto animais e vegetais. Sendo basicamente commodities, o resultado acaba sendo uma baixa produtividade e competitividade da economia”.

Repensando os fundamentos da política industrial

Pela sua capacidade de gerar valor agregado e de integrar os demais macrossetores como agropecuária e serviços, o setor industrial pode, segundo Corrêa de Lacerda, viabilizar o catching up da economia brasileira. “Não se trata, como pensam equivocadamente alguns, de uma demanda setorial corporativa. A indústria é fundamental para o desenvolvimento do País. Também isso não significa a necessidade de escolher entre a indústria e outros setores, mas de criar complementaridade. Poucos países no mundo podem desenvolver- se simultaneamente em diversos setores, mas o Brasil pode, por possuir economia de escala para tal”.

Por outro lado, a ideia de que uma política industrial é condição suficiente para a reversão do processo de desindustrialização do País está longe de ser um consenso entre os entrevistados. Corrêa de Lacerda, que tem debatido regularmente esse tema com um grupo de economistas (www. reindustrializacao.com.br), considera que a retomada “depende tanto de fatores macroeconômicos favoráveis, como juros compatíveis com a rentabilidade esperada dos projetos, taxa de câmbio de equilíbrio industrial e uma política de investimentos públicos, quanto de um conjunto de políticas de competitividade, envolvendo políticas industrial, comercial e de inovação. É esse o aparato de políticas de Estado que pode criar um ambiente propício à reindustrialização”.

Bresser-Pereira, da mesma forma, entende que a política mais importante para estimular a indústria é a de preços macroeconômicos. “Interferência do Estado através de uma política industrial é desejável, mas não é, em absoluto, a principal política governamental com capacidade para reindustrializar o País. A política industrial adotada pelo governo do PT (na verdade, três políticas, todas bem estruturadas) é como enxugar gelo. A principal política de desenvolvimento é acertar os cinco preços macroeconômicos: a taxa de câmbio deve ser competitiva porque torna competitivas as empresas de bens comercializáveis não-commodity; a taxa de juros deve ser baixa; a taxa de lucro do empresário (taxa de lucro esperada menos taxa de juros) deve ser satisfatória; a taxa de salários deve crescer com a produtividade; a taxa de inflação deve ser baixa. Deixar por conta do mercado a economia de um país em desenvolvimento que tem recursos naturais abundantes e baratos é condená-lo a uma doença holandesa, ou seja, ao câmbio sobreapreciado no longo prazo. O Brasil só cresceu extraordinariamente entre 1930 e 1980 graças a uma política macroeconômica que neutralizava a doença holandesa e tornava a taxa de câmbio geralmente competitiva”.

Marcos Oliveira também considera que o fomento às atividades industriais precisa inserir-se no contexto mais amplo de uma política de desenvolvimento, mas acredita que falhas de gestão explicam, em parte, por que as iniciativas de política industrial dos governos do PT não produziram resultados expressivos na balança comercial da indústria. “A ação do Estado formulando uma política industrial cujas diretrizes sejam obrigatórias para órgãos estatais e indicativas para o setor privado é certamente fundamental para a retomada da industrialização do País. O Brasil teve, nos últimos quinze anos, várias políticas industriais, quase todas claudicantes não necessariamente na sua formulação, mas sim na sua implementação. A atuação dos entes governamentais envolvidos não teve um controle efetivo, a coordenação foi frouxa, propiciando a que os diversos ministérios e agências tivessem suas prioridades próprias, não raro conflitantes. A política industrial deve ser formulada dentro do contexto mais amplo de uma política global de desenvolvimento do País, permitindo assim uma amarração mais forte entre os vários setores da economia e as necessidades sociais da população. Uma política de desenvolvimento da nação envolve um grande e diversificado número de objetivos. A eficácia e a eficiência na execução da política exigem que prioridades sejam alocadas para todos os setores, e o setor industrial não é diferente”.

Para Carlos Lessa, é importante reconhecer que nenhum dos ciclos de industrialização vividos pelo País até hoje nos retirou da condição de periferia mundial. “Penso que o Brasil é, ao nível da periferia mundial, a experiência mais avançada de desenvolvimento conhecida. Os processos que o Brasil vive são de vanguarda, porque estamos à frente do tempo histórico na periferia mundial sem deixarmos de estar na periferia. Esse é um ponto que acho fundamental na reflexão sobre o papel da indústria. O intenso desenvolvimento industrial que tivemos no Brasil não nos retirou da condição de periferia mundial. Basta olhar as exportações brasileiras, concentradas em soja, minério e ferro e outros produtos primários. Na verdade, o Brasil não conseguiu entrar no mercado mundial de bens industriais. A industrialização não foi capaz de superar a nossa situação periférica, embora tenha nos colocado em uma posição de vanguarda mundial nessa periferia”.

“Deixar por conta do mercado a economia de um pa ís em desenvolvimento que tem recursos naturais abundantes e baratos é condená-lo a uma doença holandesa, ou seja, ao câmbio sobreapreciado no longo prazo” – Bresser-Pereira

Sendo a indústria, como lembra Marcos Oliveira, “o setor da economia mais ativo na rota da inovação tecnológica e, portanto, essencial para o processo de desenvolvimento”, o diagnóstico de Lessa nos reporta, inevitavelmente, ao problema da defasagem tecnológica brasileira. Por isso, Roberto Nicolsky somente aposta na política industrial como um caminho para o desenvolvimento econômico sustentável se ela for duradoura, contínua e articulada com o desenvolvimento tecnológico. “O crescimento espontâneo será sempre no interesse das empresas globalizadas para abastecimento local ou produção de commodities. O único processo comprovado de desenvolvimento da indústria para uma matriz diversificada e internacionalmente competitiva em um país emergente, capaz de propiciar um crescimento autônomo e continuado da economia, é aquele representado por uma política industrial duradoura e contínua. Essa política pública deve ser moldada no desenvolvimento de tecnologia própria, pela elevada taxa de agregação de inovações tecnológicas através do compartilhamento do risco tecnológico entre Estado e empresa. Assim fizeram as economias emergentes de rápido crescimento do sudeste asiático após a Segunda Guerra Mundial – Japão, Coreia do Sul e Taiwan – e, pouco depois, a China. E assim também estão fazendo agora diversos outros países, com destaque para a Índia, um país mais complexo e contraditório que o Brasil, mas que está crescendo a uma taxa média três vezes maior do que a nossa pela via da sua indústria física e a de programas computacionais, com clara seleção setorial. As economias ricas da Europa, bem como os Estados Unidos, não servem de exemplos para países emergentes, por tratarem-se de formações históricas muito diferentes”.

O desenvolvimento econômico e social de um país com as dimensões e a população do Brasil só é viável, no entender de Nicolsky, com um forte crescimento da indústria, “pois no desenvolvimento de sua tecnologia e produção residem os bons empregos que vão gerar demanda crescente de formação técnica e superior e, assim, distribuir renda com efetividade e permanência. Até mesmo países pequenos em território e população que vivem de commodities já aprenderam que precisam acumular fundos soberanos para mitigar os riscos da volatilidade dos preços no mercado internacional”.

A questão de quais políticas públicas devem ser adotadas para induzir o desenvolvimento industrial depende, na opinião de Carlos Lessa, da superação de uma crise de identidade nacional envolvendo o papel do Estado na economia. “Acho que os episódios do presente são desdobramentos de uma crise que o Brasil está vivendo há algum tempo, e a discussão sobre o Estado faz parte dessa crise. Espero que essa discussão defina com razoável clareza o papel potencial e institucional que o Estado brasileiro deve desempenhar no nosso futuro. No momento eu diria que é pura potencialidade, porque não há nenhum projeto nacional em discussão. Acho que o Estado é fundamental para construir um futuro, porém esse futuro tem que estar no imaginário do corpo social. Qual é, hoje, o imaginário do nosso corpo social a respeito do Brasil? Eu não sei. A única coisa que posso afirmar é que essa crise vai nos levar inexoravelmente a uma discussão sobre o País, que não começou ainda, porque hoje os discursos estão polarizados entre duas escolhas afetivas conflitantes, sem que haja um projeto perfilado do Brasil de amanhã. Tenho absoluta certeza de que é impossível construir esse futuro sem o Estado, porém, somente com base no Estado, também não se constrói. O futuro exige um forte sentimento nacional em torno de um projeto de afirmação coletiva, e esse projeto nos falta agora”.

O papel do Estado: planejador ou empreendedor?

Assim como Lessa, Corrêa de Lacerda considera preocupante a carência, no Brasil atual, de um projeto de nação. “Dentro dele é indispensável a definição do papel da indústria e de como nos posicionarmos frente aos desafios atuais, a exemplo da desindustrialização experimentada pelo Brasil, e futuros, como a quarta revolução industrial, ou indústria 4.0, que contempla a nanotecnologia, a robótica, a internet das coisas etc. Definir prioridades é importante, porque quem não tem prioridade acaba dispersando-se em muitos objetivos, o que inviabiliza ou dificulta o seu alcance”.

Na percepção de Bresser-Pereira, as prioridades estratégicas de uma política industrial devem ser voltadas para “apoiar setores ou empresas que podem vir a ser competitivos mas precisam de um empurrão inicial. E é necessária uma política tecnológica permanente”. Roberto Nicolsky, igualmente, ressalta a importância da definição de prioridades, pois “é muito difícil um país ter vantagens comparativas na produção de todos os produtos de que necessita. Nem mesmo a maior e mais completa economia é autossuficiente. Portanto, a política industrial precisa estimular o desenvolvimento dos artigos para os quais se está mais vocacionado, tomando como padrão a competitividade internacional. É claro que essa escolha deve ser por setores e não por empresas e precisa ter caráter dinâmico para um permanente ajuste de curso, posto que as condições do mercado mundial mudam ao longo do tempo e em função da reação dos demais competidores. Há também a condição excepcional de setores que assumem posição estratégica em algum momento e por razões diversas, podendo merecer prioridade desde que objetivem alcançar competitividade internacional”.

Para Carlos Lessa, a definição de prioridades pelo Estado deve levar em conta o cenário atual da infraestrutura social brasileira. “Uma das coisas que devemos pensar de maneira extremamente rigorosa é: o Brasil é uma economia urbana/urbanizada? Sim. É uma urbanização que apresenta algumas características estruturais complicadas, claro. A principal delas é a internalização na metrópole dos clássicos problemas sociais do passado. É inquestionável que o problema brasileiro não é mais um problema no campo, é um problema na metrópole, é um problema urbano. Então, a pergunta relevante é a seguinte: levando em conta esse funcionamento da metrópole brasileira, qual é o elemento central? Eu diria que o elemento central é a industrialização por meio da instalação local, em massa, de filiais das empresas estrangeiras de todas as economias líderes do mundo. Exemplos disso são a indústria automobilística e a metal mecânica em geral. O lado preocupante é que, na prática, a poupança interna nacional, ou uma parcela colossal dela, fica comprometida com a ampliação da frota de veículos automotores. Essa ampliação traz a vantagem de gerar empregos desde o flanelinha até o engenheiro de projeto, passando pelo operário ultra especializado. Porém, de outro lado, inquestionavelmente limita, freia e determina toda a estrutura dos investimentos urbanos e o modo pelo qual a cidade se comporta. Então, temos a seguinte situação muito complicada: nenhuma política pode desconhecer o imenso peso estratégico da indústria metal mecânica instalada no Brasil. Porém, ao mesmo tempo, mantê-la tal qual está é empurrar uma situação precária para o futuro do País. Então, temos que diminuir o peso relativo dessa presença”.

A melhor maneira de efetuar essa delicada transição sem traumas, na opinião de Lessa, é definir outras prioridades de política industrial que mobilizem a indústria metal mecânica, desatrelando-a do setor automobilístico. “Só consigo imaginar uma que corresponda aos anseios da população, às possibilidades de atuação do Estado e às características futuras desejáveis para o Brasil, que é a indústria da construção residencial. Acho que o sonho da casa própria é acalentado por toda e qualquer família brasileira, mesmo se a ‘família’ se resume a um indivíduo solitário, porque até ele precisa de um espaço para se isolar. Não consigo imaginar nada mais relevante para a vida futura do brasileiro do que robustecer a ideia de que toda e qualquer família deve ter acesso à casa própria”.

Nessa opção Lessa enxerga grandes vantagens: “Seria uma bandeira que faria sentido na metrópole, desde o seu miolo até a periferia, faria sentido na cidade de porte médio, na pequena vila e ainda num simples lugarejo. Em todos os lugares onde haja aglomeração de brasileiros, esse sonho seria um denominador comum para superar a ânsia do veículo próprio. Creio que todas as questões associadas à qualidade de vida passam de alguma maneira pelo espaço próprio da residência”.

“O único processo comprovado de desenvolvimento da indústria pa ra uma matriz diversificada e internacionalmente competitiva em pa ís emergente é uma política industrial duradoura e contínua” – Roberto Nicolsky

A atividade da construção civil pode ser pensada sob dois diferentes ângulos, no entender do ex-presidente do BNDES. “Por um lado ela é atividade mercantil, capitalista, transformação de valores, gera um volume significativo de empregos qualificados e atividades econômicas correlatas. Por outro, pode ser uma atividade de natureza quase artesanal. No sonho da casa própria eu vejo uma compatibilidade particularmente interessante e estimulante entre o chamado desenvolvimento mercantil da empresa de construção civil e o desenvolvimento artesanal da construção consorciada popular. Acho que as duas têm repercussões ao nível das indústrias de suporte, tais como cimento, aço de construção, cerâmicas, tintas, pregos, cravos, todos esses segmentos onde a indústria nacional ainda é relevante. Penso que a mobilização de um projeto nacional em torno da ideia da residência própria vai nos ajudar a repensar e recolocar a questão da cidade, desde o seu cotidiano imediato até suas perspectivas de desenvolvimento estrutural futuro, restaurando a visão de planejamento de longo prazo”.

Até que ponto a política industrial de um país emergente pode prescindir do Estado empreendedor? A essa controvertida questão Corrêa de Lacerda responde que “é preciso sair da armadilha de como essa dualidade é equivocadamente colocada no Brasil: Estado x mercado, universidade x empresa, empresa nacional x estrangeira. Na verdade há espaço para todos e só a integração é que nos permitirá vencer os desafios. Portanto, para além de falsas dicotomias, é preciso criar um plano de desenvolvimento que supere o conforto do rentismo, dos ganhos fáceis no mercado financeiro – algo insustentável no longo prazo. Daí a premência de tratarmos de políticas de desenvolvimento que viabilizem o crescimento de longo prazo, a diminuição sistemática das desigualdades e a criação de oportunidades”.

Segundo Marcos Oliveira, embora a participação do Estado na atividade econômica deva ser quase sempre planejadora e controladora, ou normativa, “há instâncias em que sua participação como executor é importante. Diferentemente do investidor privado, que tem suas prioridades de investimento orientadas pela maximização do lucro e minimização do risco, o Estado deve orientar os investimentos pelo seu significado estratégico para a economia como um todo. Assim, investimentos em infraestrutura, geralmente elevados e com longo prazo de maturação, isto é, de retorno do capital investido, devem ser preferencialmente exercidos pelo Estado. Da mesma forma, investimentos em atividades de alto risco, como as geradoras de pesquisa tecnológica básica, ou investimentos em setores ou tecnologias pioneiras, sempre se beneficiaram por serem conduzidos por empresas do Estado, pelo menos durante as fases iniciais de sua maturação no País”.

O diretor da Protec não atribui a mesma importância à empresa estatal. Nicolsky admite apenas que “podem ocorrer situações atípicas em que seja eficiente assegurar, por um tempo finito, que uma empresa pública, ou tornada pública (como foi o caso da GM na crise de 2008), possa ser garantidora do crescimento de seu setor ou produto e contribuir para o soberano desenvolvimento econômico do País”.

Para Bresser-Pereira, “o Estado deve coordenar ou planejar o setor não competitivo da economia, particularmente a infraestrutura e a indústria de base. E deve ser responsável por entre 20 e 25% do investimento total do País. Essa segunda alternativa depende de o Estado realizar uma poupança pública – um objetivo que é distante neste momento, dados os erros cometidos, primeiro entre 2011 e 2014, de expansão fiscal, e desde 2015, no sentido inverso, de corte dos investimentos públicos. Por outro lado, os capitalistas rentistas têm capital acumulado muito grande e não sabem o que fazer com ele. Logo, é preciso contar com o investimento privado nessas áreas, mas sob estrito controle do Estado”.

Parece ser consenso entre os economistas preocupados com o desenvolvimento e o futuro do País a ideia de que a escalada do rentismo precisa ser contida. Nas palavras de Bresser-Pereira, “desenvolvimento econômico é sofisticação produtiva, é transferir mão de obra para setores com maior valor adicionado por pessoa, que pagam melhores salários. É, portanto, industrializar o País. Não há desenvolvimento econômico sem industrialização”.

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