A política de desenvolvimento produtivo do Ministério da Saúde está para completar uma década de desenvolvimento, e a atual equipe do ministério acaba de completar treze meses na missão de gerenciá-la. A melhor notícia é que a política continua viva. Mas sobre ela pairam ameaças importantes.
Em anos recentes, os melhores exemplos de políticas industriais e de inovação no Brasil dizem respeito a iniciativas setoriais nas quais as instâncias governamentais responsáveis pela gestão do setor propuseram, construíram e estiveram à frente de iniciativas no campo industrial e de inovação relativas a esse setor. São exemplos o setor de petróleo e gás, induzido e coordenado pela Petrobrás – hoje um global player na área -, e o setor agropecuário, induzido e coordenado pela Embrapa, que turbinou a agricultura familiar e, no segmento agroindustrial, transformou o Brasil em principal produtor e exportador de vários produtos agropecuários em nível mundial. Parcialmente inspirado nesses (poucos) exemplos de sucesso foi que o Ministério da Saúde decidiu construir e coordenar, a partir de 2008, uma política industrial setorial voltada à cadeia produtiva de saúde humana, mormente o segmento de medicamentos.
Nessa construção, em que o ministério teve uma grande colaboração do BNDES, em particular na articulação da política setorial às políticas industriais gerais implementadas à época (PITCE, PDP e Brasil Maior), foi enfatizada uma característica particular decorrente do setor finalístico envolvido ser uma política social. Em outros termos, foi preciso valorizar os impactos diretos na política de saúde ao lado dos impactos econômicos esperados. Daí derivou o conceito básico da política de que seria necessária uma sinergia entre os desenvolvimentos produtivo e tecnológico industriais por um lado e, por outro, a ampliação do acesso a produtos industriais de saúde pela população atendida pelo SUS.
Elemento importante na construção da política foi a constituição, também em 2008, de um colegiado denominado Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS), cuja missão foi a de articular todos os entes de governo que tinham relação com a política e que desde sua inauguração previu a existência de um Fórum de Articulação com entidades representativas do setor produtivo público e privado.
O desenvolvimento da política não foi linear nem isento de turbulências ao longo do tempo. A mais importante ocorreu em 2014 e envolveu um laboratório privado que pretendeu estabelecer uma parceria de desenvolvimento produtivo (PDP) não possuindo, todavia, condições mínimas de desenvolver e produzir o medicamento que era objeto da mesma. A publicidade dada ao fato, bastante amplificada pelas ações da Operação Lava-Jato, terminou por gerar a necessidade de ser estabelecida uma nova norma operacional reguladora das PDPs que foi publicada na forma de uma portaria do Ministério da Saúde em novembro de 2014, sob o número 2.531.
Na portaria, ao lado de vários avanços procedimentais, foi dada especial atenção ao modo pelo qual passavam a ser estabelecidos os preços dos produtos envolvidos na PDP por ocasião do estabelecimento da mesma, e o que deveria ser praticado pelo Ministério no momento da compra pelo SUS, quando da concretização bem-sucedida da PDP. Na norma anterior, o ministério deveria cumprir o que constava do acordo inicial, que previa preços cadentes durante o período de preferência de compra desses produtos. Na nova norma (§§1º e 2º do art. 55), os preços contratados inicialmente passaram a ser considerados uma referência e o processo de negociação de preços passou a ser estabelecido como um “procedimento administrativo distinto do processo de PDP”. Nada a opor quanto à obrigação da autoridade sempre procurar estabelecer o menor preço para suas aquisições, garantida a qualidade. Entretanto, vale ponderar que, no caso das PDPs, essa obrigação deveria ser exercida no momento de negociação da parceria e não no momento de sua concretização. Essa talvez tenha sido a primeira fratura importante nos pilares conceituais da política.
A despeito dessa turbulência, a política continuou ativa, mesmo que em velocidade menor do que a observada anteriormente. Vale lembrar ainda que, em 2015 e 2016, os efeitos da crise econômica sobre o orçamento público foram intensos e certamente contribuíram para a moderação dessa velocidade e por dificuldades crescentes na negociação dos preços de compra de medicamentos relativos a PDPs negociadas nos anos anteriores.
O deputado Ricardo Barros foi nomeado ministro da Saúde em 12 de maio de 2016 pelo então presidente em exercício, e sua presença pública no tema da política de desenvolvimento produtivo se deu em 19 de outubro, por ocasião da 12ª reunião do Fórum de Articulação do GECIS. Depois disso, ele presidiu as duas reuniões seguintes do Fórum, em 8 de dezembro e em 27 de abril deste ano. Nas três reuniões, a postura do ministro e de sua equipe foi a de anunciar seus planos, muitas das vezes mediante declarações de intenção pouco detalhadas, como por exemplo os investimentos de R$ 6,5 bilhões em infraestrutura produtiva e as compras de biossimilares no valor de R$ 443 milhões.
Mas, além das boas promessas, houve também duas propostas altamente preocupantes. A primeira, já aplicada largamente durante todo este ano, foi a de eleger o mercado internacional como régua da renegociação de preços de compra pelo SUS para as PDPs bem-sucedidas. Na prática, significa utilizar os preços indianos e chineses como parâmetro para a fixação de preços de compra. Isso, naturalmente, não é uma prática razoável, haja vista a gigantesca diferença de escalas de produção dos produtos oriundos daqueles países e a nossa produção local, bem como as diferenças regulatórias incidentes sobre produtos locais e importados, muito mais frouxas por lá. Ao justificar a renegociação de preços de compra de produtos industriais pelo ministério utilizando a régua do mercado internacional, o ministro alegou receio pessoal de ser questionado pelos órgãos de controle.
A segunda proposta, cujo impacto se soma ao impacto da proposta anterior, promete o estabelecimento de uma mudança no modelo de contratação das PDPs, no qual haveria um contrato para remunerar a transferência das tecnologias e outro para remunerar os custos de desenvolvimento e produção do objeto da PDP. Essa orientação é problemática por mais de uma razão. A primeira é que o cálculo do preço de tecnologias não é simples e, por certo, agregaria custos ao projeto. Um boa aproximação desses custos e da complexidade do processo pode ser observada em um recente documento da OMPI, intitulado Intellectual Property Valuation Manual For Academic Institutions, no qual o fato de ser destinado a instituições acadêmicas não retira o seu valor para as finalidades aqui discutidas.
Outro aspecto diz respeito à remuneração das tecnologias por parte do Ministério da Saúde. Para o pagamento dos produtos, o Fundo Nacional de Saúde/ Secretaria-Executiva/DLOG desenvolveu, ao longo do tempo, metodologias que garantem os pagamentos, mesmo que, por vezes, com algum atraso. No ministério, tais metodologias para realizar a valuation de tecnologias não existem e sua construção levará tempo. Mais ainda, a discussão entre o ministério e o proponente da PDP poderá ser desigual e impositiva, inclusive pela inexistência de parâmetros internacionais como os que existem para produtos acabados.
Torno aos dois vetores fundamentais da política de desenvolvimento produtivo que buscaram uma sinergia entre o desenvolvimento produtivo e tecnológico industrial por um lado e a ampliação do acesso a produtos industriais de saúde pela população atendida pelo SUS por outro. Suspeito que essas propostas recentes podem ferir de morte o primeiro desses fundamentos. Quanto ao segundo e essencial objetivo de ampliação do acesso da população a produtos industriais de saúde, quem poderá feri-lo de morte é o arrocho fiscal expresso na Emenda Constitucional 95, que já incide sobre o orçamento do Ministério.