Há um relativo consenso entre os especialistas de que o desenvolvimento econômico, tecnológico e social no Brasil está muito aquém do desejado e necessário. Mas há um enorme dissenso sobre como buscar esse objetivo e superar o subdesenvolvimento nacional. O argumento defendido neste artigo é que, sem uma indústria forte, dinâmica, competitiva e com maior protagonismo de empresas nacionais, não será possível um desenvolvimento soberano, sustentado e inclusivo.
O artigo avalia o processo de desnacionalização em curso na base produtiva brasileira. A desnacionalização está fortemente correlacionada a outras duas importantes tendências na estrutura produtiva, que têm-se constituído em obstáculos ao desenvolvimento industrial e tecnológico: a especialização regressiva da pauta de produção e de exportação e a inserção externa assimétrica.
O processo de especialização regressiva pode ser avaliado pela perda de participação de setores mais dinâmicos, de maior valor agregado e elevado conteúdo tecnológico nas estruturas de produção e de exportação. Como resultado, tem-se observado, nas últimas décadas, uma perda de participação do valor agregado manufatureiro (VAM) brasileiro no VAM global. Embora o Brasil continue posicionado entre as dez maiores indústrias globais, sua participação no VAM global reduziu de 3,6% para 2,3% nas últimas duas décadas. O grau de industrialização medido pela participação do produto manufatureiro no PIB reduziu de 16,2% para 12,2% (Sarti & Hiratuka, 2017).
A especialização regressiva também é observada na evolução da pauta de comércio exterior. Enquanto os produtos de média e alta intensidade tecnológica representaram pouco mais de um quinto do total das exportações, na pauta de importações essa participação superou 60% em 2015. O déficit comercial em produtos de média e alta intensidade tecnológica ultrapassou US$ 60 bilhões em 2015 e chegou a atingir US$ 90 bilhões antes da recessão econômica – o déficit em produtos químicos passou de US$ 25 bilhões, se incluirmos também produtos farmacêuticos e fármacos (Sarti & Hiratuka, 2016).
A especialização regressiva está em grande medida associada a uma segunda tendência, que é o crescente grau de internacionalização comercial e produtiva da indústria, com a ampliação dos fluxos de comércio e de investimento externo. A crescente inserção externa tem-se dado de forma subordinada e assimétrica, refletindo e reforçando a especialização regressiva da estrutura produtiva.
Com relação à inserção comercial, o aumento exponencial do coeficiente e conteúdo importado não teve como contrapartida um aumento proporcional do coeficiente exportado. Segundo dados da CNI, o coeficiente de penetração das importações (CPI), dado pela participação das importações no consumo aparente, cresceu de 14,1% para 21,7% entre 2003 e 2015. O coeficiente de insumo industrial importado (CII), calculado pela participação dos insumos importados no total de insumos utilizados, saltou de 19,7% para 28,8% no mesmo período. Já o coeficiente exportado (CX) ficou relativamente estagnado: subindo de 12,7% em 2003 para 14,3% em 2014. O salto em 2015 para 19% deveu-se muito mais à forte queda da produção que do aumento das exportações. O desempenho comercial assimétrico é ainda mais intenso nos setores químico (CPI = 25,9%, CII = 35,2% e CX = 10,9%) e de farmacêuticos e fármacos (CPI = 39,1%, CII = 41,9% e CX = 11,7%).
No que diz respeito à internacionalização produtiva, a maior presença do capital externo na economia brasileira reforçada pelos volumosos e crescentes fluxos de investimento direto externo (IDE) parece ter reforçado essa assimetria no desempenho das importações e exportações. O Brasil recebeu um volume de IDE superior a US$ 700 bilhões no período 2007-2016, sobretudo na forma de participação no capital e, em menor medida, em empréstimos intercompanhia. Em contrapartida, o processo de internacionalização de empresas nacionais, que já era bastante tímido, parece ter retrocedido nos últimos anos.
O maior dinamismo das importações e dos investimentos externos, quando comparado ao das exportações e dos investimentos brasileiros no exterior, configura um padrão de inserção externa que optou por promover a externalização da sua demanda doméstica (via importação e IDE), ao invés da externalização da estrutura produtiva (via exportações e investimentos no exterior), o que diferencia o Brasil das exitosas experiências asiáticas – China, Coreia do Sul – de desenvolvimento produtivo e tecnológico. Essas tendências têm provocado um intenso processo de desnacionalização da estrutura produtiva brasileira. O melhor desempenho econômico dos grupos estrangeiros já instalados no País, refletindo suas maiores capacitações técnicas e financeiras, somado ao forte fluxo de investimento externo (nas modalidades de novos investimentos ou de aquisições e fusões de empresas locais), tem ampliado a participação estrangeira nas estruturas de produção (e vendas domésticas) e de comércio exterior (exportação e importação), bem como nas estruturas de propriedade de empresas de uma gama muito ampla de setores econômicos.
A tabela 1, construída a partir de dados divulgados pelo jornal Valor Econômico na revista Valor Grandes Grupos, aponta uma significativa participação dos grupos estrangeiros nas variáveis de receita, patrimônio líquido e lucro. A tabela 2 mostra a maior eficiência e capacidade de resposta dos grupos estrangeiros frente à crise financeira. Em 2010, a rentabilidade do patrimônio dos grupos nacionais e estrangeiros era muito próxima. No período recessivo de 2014-2015, houve uma queda generalizada da rentabilidade, mas os indicadores dos grupos estrangeiros foram bem superiores aos dos nacionais.
Dados sobre operações de aquisições e fusões (A&F) compilados pela empresa de consultoria KPMG também permitem observar a intensificação do processo de desnacionalização da base produtiva brasileira. O aumento das operações de A&F no Brasil depois do início da crise internacional em 2008 foi consequência das operações cross border (CB), envolvendo empresas de capital estrangeiro e empresas de capital nacional, realizadas no Brasil e no exterior, que superaram as operações de aquisições e fusões envolvendo apenas empresas nacionais no mercado doméstico. Dentre as operações cross border (CB), prevaleceram aquelas em que empresas de capital estrangeiro adquiriram empresas nacionais no Brasil, denominadas de CB-1 na tabela 3 (KPMG, 2016). Essas operações representaram 60% do total das operações cross border, totalizando mais de 1.380 operações no período 2011-2015. Com um número bem menor, temos as aquisições de empresas estrangeiras por outra empresa estrangeira no Brasil (20% das operações cross border e um total de 459 transações) e de aquisições de empresas brasileiras por empresas estrangeiras no exterior (3% do total e 68 operações).
Por que o processo de desnacionalização preocupa? A origem do capital das corporações é um fator relevante no desenvolvimento produtivo e tecnológico, bem como no padrão de inserção externa. É preciso ter em conta que o processo de globalização nas suas diferentes dimensões – financeira, produtiva, comercial e tecnológica – é um processo assimétrico, seletivo e hierarquizado. Isso significa que a geração e captura de valor e a distribuição de ganhos e perdas decorrentes da globalização é bastante desigual entre setores de atividade econômica e empresas e, portanto, entre países e suas sociedades.
As grandes corporações controlam as cadeias regionais e globais de produção e valor. A partir da gestão de seus ativos financeiros, produtivos, tecnológicos e mercadológicos, decidem de forma seletiva e hierarquizada o posicionamento e a distribuição das atividades dentro da cadeia de valor. Portanto, controlam a geração e captura de valor nas diferentes etapas da cadeia. Os países sedes dessas grandes corporações beneficiam-se de hospedarem as atividades mais nobres e de maior valor agregado, como é o caso das atividades de P&D&I.
Nas economias periféricas, como é o caso do Brasil, as filiais das grandes corporações, cada vez mais presentes e protagonistas, têm tomado suas decisões estratégicas de produção, investimento, comércio exterior e atividades tecnológicas a partir da gestão dos diferenciais de capacitação competitiva, de custos e de grau de ociosidade da capacidade produtiva nos seus mercados de atuação. Por isso, as empresas instaladas no País, mesmo aquelas filiais de empresas estrangeiras, assumem um papel subordinado que gera e captura menos valor.
O avanço do desenvolvimento produtivo e tecnológico no Brasil dependerá do fortalecimento e maior protagonismo de suas empresas nacionais, conferindo ao País uma inserção externa menos frágil e subordinada nos fluxos globais de produção, comércio exterior, investimento e tecnologia.