A discussão entre saúde e desenvolvimento em uma perspectiva de fortalecimento da capacidade nacional em ampliar seu grau de autossuficiência no desenvolvimento e produção de tecnologias em saúde que atendessem às reais necessidades da população remonta aos anos 50 e 60 do século passado. Inserem-se nesse esforço as produções de Mario Vitor de Assis Pacheco, de Mario Magalhães da Silveira, entre outros. Mais recentemente, o tema das relações entre política industrial, pesquisa, inovação e desenvolvimento em saúde ganhou novo fôlego não apenas no campo acadêmico, mas principalmente a partir da implementação de políticas governamentais que ganham centralidade com a eleição de Lula para a Presidência do País. De fato, o tema já era motivo de preocupação do denominado Movimento da Reforma Sanitária Brasileira. No documento apresentado por Sérgio Arouca no 1º Simpósio de Política de Saúde da Câmara dos Deputados em 1979, elaborado por Reinaldo Guimarães, José Luís Fiori e Hésio Cordeiro, aparece um claro diagnóstico da política de saúde daquela época, no qual podemos encontrar um conjunto de proposições estratégicas, que já faziam alusão ao campo do denominado Complexo Econômico Industrial da Saúde (Ceis). Isso fica claro quando os autores recomendam, entre outras medidas, que a nova política de saúde deveria:
“Definir uma política de produção e distribuição de medicamentos e equipamentos médicos orientada pela simplificação e eficácia tecnológica e dirigida à redução da dependência do capital estrangeiro através da maior participação estatal na pesquisa, formação de pesquisadores e desenvolvimento de tecnologia nacional dirigida à produção de matérias-primas fundamentais à industrialização de medicamentos essenciais…”
De lá para cá, uma longa trajetória de esforços importantes, mas desarticulados, foi criando um vetor que possibilitaria mais adiante o desenho de uma política nacional que buscasse articular a base produtiva da saúde com as políticas do setor em um arranjo inovador.
De um ponto de vista dessa trajetória histórica, podemos destacar:
- A criação da Ceme em 1971. Apesar de extinta anos depois por motivo de denúncias de desvios e corrupção, conseguiu desenvolver vários projetos importantes no campo da farmoquímica e dos produtos naturais, entre outros;
- A criação do Programa Nacional de Autossuficiência em Imunobiológicos nos anos 80, a experiência mais importante do País no campo das parcerias público-privadas de transferência de tecnologia na área da saúde brasileira;
- A política de genéricos de 1999, uma luta de décadas da saúde pública brasileira, mas que só vira realidade no início dos anos 2000;
- A criação da Anvisa em 2000, o que permitiu estabelecer uma estrutura em base nacional para o sistema de vigilância sanitária, um grande avanço em relação ao que havia até então;
- A criação da Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos em 2003, um passo decisivo para que o Ministério da Saúde (MS) conquistasse espaço e poder técnico-político na área de C,T&I em saúde;
- O Profarma BNDES, de 2004, introduzindo o Banco como importante agente de fomento e apoio ao fortalecimento da base industrial advinda das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs);
- O Programa Aqui Tem Farmácia Popular, de 2006, ampliando o acesso da população a vários produtos estratégicos e introduzindo nova dinâmica no varejo farmacêutico;
- A criação da Comissão de Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde em 2008 e seu posterior aperfeiçoamento com a lei federal que cria a Conitec em 2011.
Esse conjunto de esforços e iniciativas desenvolvidos ao longo de décadas cria as condições para o surgimento da primeira política efetivamente estruturada para o setor. Em dezembro de 2007, o MS lança o Programa Mais Saúde, composto por oito eixos estratégicos, sendo um deles voltado para o fortalecimento do Ceis. Ali surge a grande mudança qualitativa. Até então, o tema das relações entre política de saúde, política industrial, pesquisa e inovação em saúde era enfrentado de modo fragmentado entre inúmeras instituições e órgãos governamentais. Com o Mais Saúde, o Ministério da Saúde assume o protagonismo e a liderança na condução desse processo.
Antes disso, em abril de 2007, o licenciamento compulsório do Efavirenz, quando o Brasil pela primeira vez utiliza esse mecanismo para garantir a sustentabilidade do Programa de Aids, fortalece esse caminho e permite o acúmulo de uma série de saberes e práticas importantes para a elaboração da estratégia que passa a ser implementada a partir do lançamento do Mais Saúde.
Essa política foi concebida a partir de uma abordagem singular apoiada no poder de compra do Estado, na centralização das compras pelo MS, na rede de laboratórios públicos e nas empresas privadas, além da participação do BNDES e da constituição do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis), criando o espaço institucional adequado para a pactuação e implementação da política. E isso sob a liderança e coordenação do MS no sentido de que a dinâmica das indústrias da saúde deve estar subordinada aos ditames da Política Nacional de Saúde e às prioridades nacionais no campo sanitário. Essas questões estão fortemente ligadas aos conceitos de sustentabilidade econômica e tecnológica dos sistemas de saúde.
São múltiplos os desafios para que essa política prospere. O próprio projeto de nação, de aperfeiçoamento da democracia, de sua autonomia e soberania, da política industrial e do papel do Estado nesse processo, da primordial função da ciência e do desenvolvimento tecnológico para o futuro do País, do papel do SUS enquanto fator fundamental para a redução de desigualdades, de melhoria das condições de vida e de setor econômico fundamental para o desenvolvimento nacional. Infelizmente, não é possível perceber no atual governo qualquer tipo de sintonia com essa visão de país e teme-se pelo seu futuro.
Existem também obstáculos que se inserem na macro governança da política: questões regulatórias, normativas, legais, tecnológicas, da necessidade de aperfeiçoamento da capacidade dos laboratórios oficiais, entre outros. E dilemas mais estratégicos para o futuro das PDPs. Elas se limitarão a uma estratégia de cópia de tecnologias já colocadas no mercado ou a inovação também será contemplada como categoria central?
Nesses dez anos que vão da formulação à implementação da política, os resultados mostram o predomínio de parcerias para transferência de tecnologias no campo dos fármacos/medicamentos, com reagentes para diagnóstico e equipamentos ocupando espaço ainda incipiente.
Dentro da conceituação mais teórica do Ceis, temos o saber médico e dos demais profissionais como cimento entre a produção e o consumo em nível das redes assistenciais. Nessa equação, a política de assistência farmacêutica ganha extrema relevância, e a implementação do Aqui Tem Farmácia Popular foi um marco nesse processo.
O fato é que até hoje existem discordâncias entre especialistas sobre a questão da dispensação dos medicamentos prescritos no SUS. Defendo que a distribuição de medicamentos à população seja feita através da rede de farmácias privadas existentes no País, entendendo farmácia como um espaço de saúde pública integrado à rede assistencial. Dessa forma, a dispensação na rede pública seria destinada apenas àqueles medicamentos dos programas de saúde pública tradicionais: tuberculose, hanseníase, malária etc.
O Programa Aqui Tem Farmácia Popular foi um ensaio, embora ainda tímido, nessa direção.
Entretanto, uma proposta de universalização do Farmácia Popular com forte incorporação de outras tecnologias em saúde em seu rol de oferta terá que rever a economia do varejo farmacêutico, especificamente suas margens de lucro. As evidências levantadas pelo estudo Conta Satélite de Saúde, realizado pelo IBGE abarcando o período de 2010 a 2013, demonstrou que o desempenho da atividade “comércio de produtos farmacêuticos, perfumaria e médico-odontológicos” teve no período o maior aumento de participação no valor adicionado, que é uma medida de geração de renda em cada atividade econômica em um determinado período.
Mas há um último aspecto a ser considerado. Até aqui, as PDPs se concentraram em medicamentos, equipamentos e reagentes. Compreensível e adequado para o momento em que foi concebida a política. Mas urge abrir o debate sobre a busca de parcerias entre o governo e o setor privado para soluções tecnológicas que envolvam, por exemplo, redes integradas de atenção como as de alta complexidade ou para o programa Saúde da Família, buscando uma visão horizontal mais integrada para o sistema de saúde brasileiro.