A desindustrialização da economia brasileira, que avança a passos largos nos últimos anos, tem sido analisada por diversos ângulos. Recentemente, a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) acrescentou a essa discussão uma perspectiva continental, mostrando que o fenômeno atinge de forma generalizada os países latino-americanos que lograram algum desenvolvimento industrial em décadas passadas: além do Brasil, a Argentina, o Chile e, em menor grau, o México. Intitulado “Desindustrialização prematura na América Latina”, o estudo deixa claro que, no caso brasileiro, a dramática situação em que se encontram as indústrias de produtos de maior valor agregado provocou um efeito cascata, constituindo-se num dos motores da crise que ameaça desmobilizar o conjunto da economia.
Em todos os países em processo de desindustrialização, ocorreu uma regressão econômica, caracterizada pelo avanço e maior especialização em commodities agrícolas e minerais e serviços de baixa qualificação, em detrimento da indústria de transformação. Trata-se, em suma, de uma reprimarização das principais economias latino-americanas, e consequentemente de um maior distanciamento em relação a atividades geradoras de riqueza. A alegação dos defensores desse modelo de que é natural no atual estágio da globalização a indústria perder espaço para o setor terciário, embasada no fato de que países desenvolvidos crescem mais na área de serviços do que na indústria, é uma falácia no caso dos países emergentes. Basta lançar um olhar sobre a gama de serviços oferecidos: enquanto os países ricos destacam-se em serviços intensivos em conhecimento e tecnologia, nos países periféricos os serviços que se expandem são, em geral, de baixo valor agregado.
Seria positivo para o desenvolvimento econômico da América Latina se o crescimento em serviços compreendesse segmentos de alta tecnologia, como as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), associados a atividades que adicionem valor às cadeias produtivas globais ou que atendam a demandas estratégicas do setor público, como vem acontecendo nos países econômica e socialmente mais avançados. Infelizmente, não é isso o que vem ocorrendo e a diversificação produtiva na América Latina só progride em direção a serviços menos qualificados.
Para a economia brasileira romper o círculo vicioso da crise, que nos últimos anos solapou algo entre 15% e 20% da produção industrial, valeria seguir a recomendação de um relatório publicado em 2016 pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), sob o título “Trade and Development Report”. Esse documento sugere combater o quadro de desindustrialização através da aplicação de uma política industrial moderna e eficaz, capaz de induzir trajetórias de crescimento sustentáveis, caracterizada principalmente por uma burocracia estatal estável, altamente capacitada e estreitamente interconectada; por políticas macroeconômicas e regulação do sistema financeiro com viés pró-investimento; e pela definição de áreas estratégicas para o desenvolvimento e monitoramento do desempenho das empresas envolvidas.
Parece óbvio que os países que sofreram um processo de desindustrialização prematura, conforme diagnostica a Cepal, para retomarem o crescimento industrial devem definir e executar projetos de desenvolvimento no longo prazo, conduzidos pelo Estado de forma consistente e sem interrupções causadas por mudanças no Poder Executivo. O atual governo já definiu metas relativas aos gastos públicos para os próximos 20 anos. Agora, falta criar e implementar uma agenda positiva, também de longo prazo, para alavancar o crescimento industrial.
Defasagem tecnológica: como romper o círculo vicioso?
David Kupfer, coordenador do Grupo de Indústria e Competividade do Instituto de Economia da UFRJ, considera que o estudo da Cepal aponta com bastante nitidez questões relevantes do processo de desindustrialização, especialmente no que tange à incapacidade de países como o Brasil de definir uma estratégia de desenvolvimento industrial que promova um upgrading da produção, evitando assim a ampliação do hiato em relação ao desenvolvimento industrial internacional. “Concordo principalmente com a tese de que atenção excessiva aos problemas de conjuntura, ausência de visão de longo prazo e carência de instrumentos de planejamento são fatores determinantes da trajetória negativa que se estabeleceu por aqui. Porém, entendo que é necessário incluir um diagnóstico não só do Estado e das suas políticas, mas também do setor produtivo propriamente dito, da natureza do capitalismo brasileiro. É evidente que o que estamos discutindo não resulta somente de falhas do Estado, mas também da ausência de estratégia do setor privado e, acima de tudo, de uma conjunção desses dois elementos”.
A necessária reforma das instituições intervenientes na política industrial deve ter como contrapartida, na visão de Kupfer, uma revolução do setor produtivo em termos de objetivos, estratégias e comportamentos. “Entendo que nosso setor produtivo, por razões até historicamente compreensíveis, é muito ‘curto prazista’, avesso a risco e refratário a investir e imobilizar capital. Isso decorre de um conjunto de regras que vêm governando o funcionamento da economia há muitas décadas”.
A gênese desse comportamento remonta, segundo o pesquisador, ao prolongado período de estagnação da década de 1980. “O projeto do ‘Brasil grande’, do Brasil potência, independentemente dos seus defeitos, exageros e equívocos, e muito criticado principalmente por ter sido liderado por um governo militar ditatorial, mal ou bem definia um norte, tinha uma capacidade de orientar o processo de tomada de decisão. Esse projeto evoluiu durante a década de 1970 e em seguida se esgotou, dando lugar a uma década de inflação alta e crônica, de muita escassez de financiamento e acesso a capital, e, pior, jogando-nos numa espécie de vácuo estratégico. Algo parecido com o que vivemos agora, porque, além de enfrentarmos uma crise fiscal e financeira, temos uma recessão importante no lado real da economia, e aparentemente o Brasil não sabe onde está, nem para onde ir”.
Foi esse cenário, afirma Kupfer, que incentivou o sistema produtivo brasileiro a economizar capital. “Dado o nível elevadíssimo de remuneração do capital financeiro que se consegue obter no Brasil, quase sempre é mais rentável aplicar o capital em títulos financeiros do que imobilizá-lo em ativos produtivos. Daí a prática das empresas brasileiras de superexplorar os equipamentos alocados na produção. Os ativos produtivos nunca são substituídos ou modernizados em ritmo rápido. Ao contrário, tendem a durar excessivamente. Agarramo-nos a gerações antigas de equipamentos, que têm vida longa demais. Muitas vezes esses equipamentos vão se tornando obsoletos e perdem eficiência, mas as empresas não decidem substituí-los porque ainda são capazes de produzir. Isso vai cobrando um preço em termos de hiatos de produtividade e competividade, e vai minando a própria rentabilidade do setor industrial. É um processo circular negativo, que se estabeleceu ali pela década de 1980 e que deixou sequelas. Temos que encontrar uma forma de quebrar esse círculo vicioso e trazer o setor produtivo para um comportamento menos conservador, mais empreendedor”.
Kupfer tem convicção de que os elementos da crise que dizem respeito à estrutura produtiva e às estratégias predominantes no tecido industrial brasileiro precisam ser equacionados em conjunto com as políticas públicas. “Quero dizer que um anda junto com o outro. As políticas industriais não funcionam porque não encontram no setor privado o dinamismo e a disposição necessários”. Para ele, a defasagem tecnológica da indústria brasileira deriva em grande parte desse comportamento minimizador de investimentos, que está na contramão da inovação. “Se o objetivo é evitar risco e imobilização de capital em projetos de retorno não garantido, evidentemente a inovação, que trabalha com risco alto e que requer programas de gastos de duração incerta, fica prejudicada. O sistema torna-se refratário à inovação e daí vem o atraso tecnológico em processos, produtos e modelos de organização da produção”.
E não há previsão de melhora do ambiente econômico em curto prazo. “Agora temos uma situação em que a indústria de maior intensidade tecnológica se retraiu no ciclo anterior, investiu pouco e se defasou; a indústria que cresceu baseada em recursos naturais hoje tem capacidade ociosa, tem problema de demanda; e, adicionalmente, outras indústrias, as chamadas indústrias tradicionais, produtoras de bens-salário, que dependem do nível de renda da população, da capacidade de consumo da população, estão enfrentando um problema de demanda efetiva muito grave e também estão em retrocesso”.
“É preciso quebrar o ‘curto prazismo’ que caracteriza o comportamento dos agentes públicos e privados no Brasil. Temos que definir uma estratégia de transformação da indústria num horizonte temporal longo” – David Kupfer
Mas como romper o círculo vicioso? Na opinião de Kupfer, “em primeiro lugar é preciso quebrar o ‘curto prazismo’ que caracteriza o comportamento dos agentes públicos e privados no Brasil. Temos que de fato definir uma estratégia de transformação da indústria num horizonte temporal longo. E essa estratégia deve ser legitimada amplamente, para que depois sirva como um projeto, como um norte para o processo de tomada de decisão, tanto dos formuladores de políticas, que alocam recursos, quanto do setor privado, que irá realizar os investimentos propriamente ditos”.
Isso depende de uma visão do que pode ser a indústria brasileira e qual o lugar dessa indústria no mundo num horizonte de dez anos ou mais à frente, esclarece o pesquisador. “Acredito que, dado o grau de diversificação que ainda existe na indústria brasileira e dado o nível não muito favorável de competitividade autêntica que subsiste hoje, temos que montar uma estratégia não muito ousada. Não vejo espaço para uma transformação industrial de fôlego muito profundo. Adicionalmente, levando em consideração o grande peso das empresas transnacionais em setores muito importantes da matriz industrial brasileira, imagino uma configuração na qual iremos importar muito e exportar muito, havendo determinados segmentos industriais com produção local e outros que serão abastecidos pelo mercado internacional”.
Kupfer aposta numa estratégia de nichos em que a competitividade brasileira possa ser reconstruída e ganhar possibilidades de expansão. “É um desenho de política que envolve compreender, por exemplo, dentro da indústria de máquinas, quais são os itens que precisamos produzir e quais devemos importar; dentro da indústria têxtil, o que é viável produzir localmente e o que é melhor importar; e assim em todos os setores. Isto é muito diferente da prática recente, que não estava conseguindo trazer para a realidade industrial uma visão matizada e segmentada dos nichos potenciais existentes”.
Apesar da complexidade inerente à escolha desse caminho, Kupfer entende que ele é factível e sustentável, desde que se baseie numa institucionalidade “menos dedicada a defender as rendas setoriais e mais preocupada em formular e implementar planos de ação que, embora de retorno mais lento, possam promover mais renda futura para todos”.
Marcelo Morales, também pesquisador da UFRJ, acredita que a defasagem tecnológica responde, em parte, pela difícil situação em que a indústria brasileira se encontra hoje. “Todos os produtos com alto valor agregado dependem inicialmente da inovação tecnológica. Os países mais desenvolvidos, como os EUA – e até a China, que está se tornando uma grande potência –, quando começam a entrar em crise, ampliam seus investimentos nessa área. No caso do Brasil, é a inovação tecnológica que vai nos permitir sair do buraco rapidamente e com sustentabilidade. Precisamos de uma política nacional de ciência e tecnologia que seja priorizada e não varie ao sabor das crises, porque, quando cessa o investimento nessa área, retrocedemos décadas”.
A Embrapa, a Embraer e o Cenpes/Petrobras são exemplos vivos de políticas tecnológicas bem-sucedidas, assinala Morales. “A Petrobras possui um conhecimento tecnológico de prospecção em águas profundas que poucos países têm. Isso foi graças ao investimento pesado em ciência e tecnologia. Um desafio muito recente a que o Brasil também tem respondido à altura é o do zika vírus. Isto é ciência e tecnologia, são os nossos pesquisadores em alerta para detectar riscos na área da saúde. Foi uma formação de muitos anos em ciência e tecnologia que impediu um desastre na saúde, que teria um impacto econômico ainda maior do que teve. Hoje nós somos expoentes na produção de conhecimento em zika”.
A precária situação financeira das agências estaduais de fomento, evidenciada pelas recentes ameaças de corte no orçamento da Fapesp e pela quebra de compromissos da Faperj, que não paga os editais aprovados desde 2015, mostra que o Brasil corre o risco de um grande retrocesso em sua produção tecnológica. Segundo o pesquisador, “o estado do Rio de Janeiro é o segundo maior do Brasil em ciência, tecnologia e inovação, principalmente na área de petróleo. Dois anos sem pagar os pesquisadores é muito preocupante e causará enorme prejuízo à pesquisa científica e à inovação nos próximos anos”.
Morales chama atenção para a relevância da transição tecnológica em curso, que exige investimento contínuo em upgrading. “O mundo está partindo para a indústria 4.0, que é a nova revolução industrial. Os sistemas ciberfísicos, a aplicação da internet das coisas e dos processos de manufatura descentralizados irão mudar radicalmente o perfil da indústria, e quem não estiver nesse patamar vai ficar para trás. Essa revolução é análoga à ocorrida nos anos 1970 com a assimilação industrial da eletrônica, dos sistemas de computadores e da robótica. Quem não fizer o investimento agora para a quarta revolução industrial terá uma indústria obsoleta, incapaz de atender às demandas individuais de cada fornecedor. Tudo isso depende de investimento em C&T”.
No entanto, o Brasil é um dos países que podem sofrer atrasos nessa corrida. “Acho que falta articulação. O setor industrial, os profissionais que trabalham com ciência e tecnologia, pesquisadores e o Estado brasileiro precisam se organizar para levar a indústria nacional a alcançar esse novo patamar. O assunto é discutido, mas sempre vamos para a largada com um pouco de atraso, e a economia mundial não perdoa, não espera. Nossos pesquisadores estão prontos para responder a todas as demandas do País, mas falta investimento pesado em ciência e tecnologia. Enquanto não atingirmos uma fatia de pelo menos 2% do PIB, e as fundações estaduais de amparo à pesquisa não puderem contar com segurança jurídica para realizar seu trabalho, não teremos uma política vigorosa para ciência e tecnologia. Há uma falta de articulação e uma falta de visão estratégica sobre a qualidade do desenvolvimento que o País deve ter”.
BNDES mantém aposta no setor fa rmacêutico
Tendo em vista melhorar a articulação interna de suas unidades voltadas para o fomento ao setor da saúde, buscando uma atuação sistêmica, o BNDES criou o Departamento do Complexo Industrial e de Serviços de Saúde (Deciss), que uniu as atribuições dos antigos Defarma e Depos (Departamento de Operações Sociais). Segundo o chefe desse novo departamento, João Paulo Pieroni, toda a carteira de financiamento do BNDES nos serviços e na indústria de saúde ficou agora reunida sob uma única gestão, “permitindo, assim, a identificação das sinergias e o fomento a operações de caráter mais estruturante a partir de uma lógica unificada”.
Em paralelo, o Deciss busca também articulação com os demais órgãos públicos intervenientes na área da saúde. Como períodos de crise restringem o espaço para medidas que demandem elevado volume de recursos, Pieroni considera mais factível, nesses momentos, “buscar consensos para atuar em melhorias regulatórias e institucionais, visando aprimorar o ambiente de negócios, o estímulo à inovação e a ampliação da competitividade”. Nesse sentido, o BNDES considera importante a retomada do Gecis como um fórum de discussão de políticas públicas. “Em especial, temos a expectativa de que os grupos de trabalho constituídos possam funcionar como espaços de proposição e encaminhamento de melhorias, com destaque para o marco regulatório. O BNDES participará ativamente dessas discussões e entende que tem um papel relevante na formulação e implementação de políticas públicas em saúde”.
“Precisamos de uma política nacional de ciência e tecnologia que seja priorizada e não varie ao sabor das crises, porque, quando cessa o investimento nessa área, retrocedemos décadas” – Marcelo Morales
Na avaliação de Pieroni, o presente cenário de restrição fiscal, combinado com uma crise econômica profunda, aumenta a intensidade da demanda de serviços de saúde pela população brasileira. “Entre outras consequências, a elevação do desemprego tem provocado o deslocamento de um contingente relevante de pessoas dos planos de saúde privados para o SUS, ampliando ainda mais a pressão de custos sobre o sistema”. Além disso, segundo o chefe do Deciss, há que se acrescentar um ponto a mais de atenção: as transições epidemiológica e demográfica. “O Brasil encontra-se em estágio avançado de envelhecimento da população e de redução do peso relativo das doenças transmissíveis, como dengue e malária, entre as causas de morbimortalidade populacional. Segundo projeções da Organização das Nações Unidas, em 2030 o Brasil deverá contar com uma proporção de idosos na população similar à atual da França, com quatro vezes a população atual e metade de seu PIB per capita. Esses processos estruturais se refletem no crescimento da incidência das doenças crônico-degenerativas, como câncer e diabetes, que correspondem às principais aplicações dos medicamentos biotecnológicos”.
O Deciss atribui um papel decisivo à inovação tecnológica. “Em todo o mundo, a incorporação de inovações tecnológicas na saúde representa um desafio enorme, no que se refere a seu impacto sobre a estrutura de custos do sistema. Em diversos setores as inovações tendem, no longo prazo, a contribuir para a redução dos custos e a popularização do acesso a tecnologias, como é o caso das tecnologias de informação e comunicação (TICs). Na saúde, ao contrário, o deslocamento da fronteira tecnológica está associado à ampliação dos custos, com métodos de diagnóstico complementares (e não substitutos) e medicamentos que ampliam a sobrevida das pessoas sem oferecer necessariamente uma cura”.
Em suma, o País tem pela frente o enorme desafio de lidar, simultaneamente, com desindustrialização, crise e restrição fiscal, envelhecimento da população, transição epidemiológica e custos crescentes em saúde. Como o BNDES poderá contribuir nesse processo? Pieroni recorda que, nos últimos anos, o apoio oferecido pelo Banco ao complexo industrial da saúde se baseou no conceito de aprendizado e trajetória tecnológica. “A ideia central é a de que as competências para inovar são cumulativas e as empresas precisam percorrer etapas que as credenciam para galgar degraus cada vez mais elevados em pesquisa e desenvolvimento de produtos, alavancando a competitividade da indústria. No início da década de 2000, o Banco apoiou o desenvolvimento de novos medicamentos genéricos dentro da linha de inovação, a partir da premissa de que os aprendizados envolvidos gerariam capacitação para que, posteriormente, essas empresas apostassem em inovação incremental e radical. A mesma lógica se aplica ao apoio do BNDES aos projetos de plantas industriais de medicamentos biossimilares no País”.
“O BNDES vem buscando, cada vez mais, construir uma agenda de longo prazo pa ra a integração virtuosa entre indústria e serviços de saúde, visando a aumentar o acesso da população brasileira à saúde de qualidade, ao mesmo tempo em que se promove a ampliação da competividade da indústria” – João Pa ulo Pieroni
Em seu novo enfoque, explica o chefe do Deciss, o BNDES vem buscando, cada vez mais, “construir uma agenda de longo prazo para a integração virtuosa entre indústria e serviços de saúde, visando a aumentar o acesso da população brasileira à saúde de qualidade, ao mesmo tempo em que se promove a ampliação da competividade da indústria. Essa visão sistêmica da saúde se alinha a uma das principais diretrizes da nova gestão do BNDES, que é priorizar projetos com elevado retorno social, traduzido no desenvolvimento de produtos alinhados às políticas públicas de saúde. Com isso, busca-se contribuir simultaneamente para a sustentabilidade de longo prazo do SUS e para o aumento de competitividade do complexo industrial da saúde”.
Pieroni acrescenta que, “ao mesmo tempo, o apoio à inovação tecnológica, tão importante em períodos de crise, continua sendo uma prioridade para o BNDES. Em um mercado que apresenta taxas de crescimento mais baixas, a diferenciação de produtos se torna cada vez mais importante para a competividade das empresas. As melhorias incrementais em novos medicamentos, associadas a um custo acessível, parecem ser estratégias factíveis de crescimento”.
Em sintonia com essa visão, o laboratório Aché está decidido a apostar em inovação numa perspectiva global. Segundo seu presidente, Paulo Nigro, o processo de internacionalização da empresa inclui produtos com diferenciação tecnológica e alto valor agregado para os mercados externos. “Esta estratégia, ponta de lança para abrir os mercados estrangeiros, envolve um processo longo e caro que enfrenta a concorrência de grandes empresas globais. Por isso, no cenário ideal, poderia ser feito um esforço conjunto de governo e empresas brasileiras para promover a internacionalização da indústria, com o apoio de linhas de crédito específicas. Cada um deve fazer sua parte, e nós do Aché estamos elevando o patamar de nossos produtos, com ativos inovadores e diferenciados, para não somente exportá-los, como também registrá-los em outros países. Nessa linha, estamos fazendo alianças com empresas globais no desenvolvimento de produtos tecnológicos, a exemplo da recente parceria com a empresa suíça Ferring Pharmaceuticals”.
Defensivos agrícolas: indústria quer mais flexibilidade
No setor agroquímico, a competitividade brasileira tem sido prejudicada por equívocos na política tributária que desestimulam a produção local. Segundo João Sereno Lammel, conselheiro da Ourofino Agrociência, “o segmento de defensivos agrícolas é gerador de um grande déficit e isto se deve, entre outros fatores, à existência de incentivo tributário para a importação de produtos acabados e prontos para uso em detrimento da indústria local de formulação. O discurso parece repetitivo, mas esse fator desestimula os investimentos no País e, por consequência, mantém a indústria estagnada e sem incentivo para novas expansões. Vemos com preocupação essa situação, que requer uma análise criteriosa dos governantes. O setor já provou ser importantíssimo e estratégico para a economia brasileira, podendo ser ainda mais benéfico quando estimulado”.
Enio Marques, consultor em políticas de defesa agropecuária e ex-titular da Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, admite que o governo, nesses últimos anos, “não acertou a mão na combinação das políticas, agravando ainda mais a situação dos agentes econômicos no País, e algumas indústrias abandonaram a produção local”. Como a política industrial e as demais não são coerentes entre si, explica, “as empresas globais que compraram plantas industriais locais e ativos para atender ao mercado brasileiro depois verificaram que o custo de produzir aqui era mais caro do que nas suas fábricas em outras localidades. Uma plataforma tem que trabalhar 24 horas, e quando se trata de atender terceiros países é preciso ter maior grau de liberdade de registrar produtos. No Brasil, mesmo para se exportar um produto, ele tem que estar previamente registrado aqui. Há uma série de armadilhas e obstáculos nesse processo que fizeram com que as empresas repensassem onde produzir”.
O consultor entende que, a partir da releitura dos acordos vigentes sobre medidas fitossanitárias, é possível fazer uma série de ajustes nas regras atuais que permitam diminuir o tempo de registro, proporcionando assim uma previsibilidade aos processos que hoje não existe. “É um absurdo esperar anos para se aprovar um produto que, às vezes, já é conhecido no mercado”. Na questão do registro de produtos, Marques reconhece que o governo está fazendo essa releitura de alguns anos para cá, “mas será possível avançar mais se houver clareza quanto à caracterização de duas fases importantes: o registro propriamente dito e a vigilância do uso do produto. Essa vigilância é importante para que empresas possam fazer os seus ajustes pontuais, que chamamos de inovação tecnológica incremental. Se tenho um produto, ele está no mercado e precisa de ajustes permanentes, não é razoável esperar cinco anos para fazer isso. Às vezes essa inovação tecnológica no processo ou mesmo no ajuste da forma para a necessidade é até mais relevante do que lançar novos produtos. Então é preciso separar o registro e o pós-registro da atividade de vigilância”.
Para controle e acompanhamento adequados desses processos, é fundamental que eles estejam totalmente informatizados. Hoje, segundo o consultor, a informatização é parcial e os inúmeros sistemas são antiquados e não se falam. “É indispensável informatizar de maneira integrada, permitindo que o agente econômico seja dono da conta e possa depositar no sistema todas as exigências feitas – dossiês, ensaios etc. – pois, no caso dos defensivos, exige-se uma quantidade muito grande de ensaios no que concerne ao meio ambiente, à saúde pública e à própria questão agronômica. Isso representaria um grande salto de qualidade”. Um salto maior ainda, no entender de Marques, seria a possibilidade de se depositar no sistema o resultado dos testes que demonstram o cumprimento das exigências. “Em vez de colocar o dossiê inteiro, o ideal seria que se colocassem os resultados e o dossiê ficasse disponível para quem quisesse olhar”.
Outra questão que, segundo o consultor, “facilitaria a administração das filas absurdas que temos é a própria empresa cuidar das obrigações relativas aos rótulos e bulas. Isso deveria ser de responsabilidade do agente econômico. Ele entra na plataforma, deposita os rótulos e as bulas dos produtos e vai mudando conforme a necessidade. Hoje existe uma corresponsabilidade do poder público e uma quantidade absurda de pareceres, o que, em minha opinião, é desnecessário. O Brasil deveria usar o princípio da não objeção. O agente cumpre todas as exigências e, havendo objeção da autoridade responsável, ela fica registrada e enseja as providências necessárias”.
Marques entende que, “se o agente econômico tem uma plataforma, se ele deposita no sistema as exigências, e se ele próprio corrige rótulos e bulas, também poderia inserir dados referentes a autocontrole. No lugar de o governo fiscalizar pelos métodos tradicionais, que são caros e falhos, as empresas deverão demonstrar que são capazes de controlar seus processos. Se tudo isso constasse em uma plataforma, o governo teria os alertas e mais facilidade para supervisionar o andamento do autocontrole”.
“Uma plataforma eletrônica dotada de mecanismos de autocontrole pa ra os usuários permitiria que a Secretaria de Defesa Agropecuária contribuísse imensamente pa ra a desburocratização do sistema” – Enio Marques
Na fase pós-registro, a empresa também faria constar na plataforma o que vem acontecendo durante o uso de seu produto. “É o que chamamos de farmacovigilância. A empresa acompanha a aplicação do produto e deve ter um grau de liberdade para ajustes incrementais – por exemplo, havendo um componente que é mais seguro ou mais barato, ele poderia ser incorporado. Hoje isso não é possível e acarreta um ônus absurdo. Em resumo, uma plataforma eletrônica dotada de mecanismos de autocontrole para os usuários permitiria que a Secretaria de Defesa Agropecuária contribuísse imensamente para a desburocratização do sistema”.
Outra questão que, na opinião de Marques, deveria ser contemplada no contexto de uma política sanitária mais atualizada é a da farmácia mínima adequada. “O que é isso? O Brasil cultiva uma grande variedade de espécies animais e vegetais para consumo humano, e isto exige um permanente monitoramento da ocorrência de pragas e doenças. É preciso ofertar soluções tempestivamente, tanto para as pragas locais quanto para as que possam, eventualmente, migrar de outras regiões para cá. Por exemplo, a gripe aviária entrou no Chile e pode, um dia, acontecer aqui. Para o mercado oferecer essas soluções com a agilidade necessária, o governo tem que ter confiança nos agentes econômicos. A farmácia adequada deve ter uma quantidade razoável de alternativas, pois se houver uma pressão muito grande sobre um único produto cria-se resistência e essa tecnologia, ainda que seja mais recente, pode perder a eficácia”. De acordo com o consultor, a Anvisa é o órgão público mais adiantado no equacionamento desse problema. Já está considerando a questão da não objeção e transferindo responsabilidades para os agentes econômicos, o que representa um avanço significativo.