REVISTA FACTO
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Jan-Mar 2017 • ANO XI • ISSN 2623-1177
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//Artigo

As Compras Governamentais e as Cabeças Trocadas

A falência do multilateralismo, a Rodada Uruguai do GATT/OMC e os acordos de livre comércio.

Uma das principais tendências observadas no ambiente do comércio internacional após os anos de 1960 tem sido a erosão da arquitetura multilateral construída no pós-guerra e uma das suas expressões mais visíveis é a crescente valorização de acordos bilaterais e plurilaterais de livre comércio. A rigor, as mudanças nas relações mundiais de comércio deram-se, inicialmente, no interior da arquitetura multilateral que, sob os auspícios do GATT e mais tarde OMC, orientou as conversações que o ex-ministro das relações exteriores brasileiro, Luiz Felipe Lampreia (1995-2001), chamou de “O maior acordo comercial da História” 1. Essas conversações ocorreram entre meados dos anos 1980 e 1990, foram denominadas no jargão diplomático de Rodada Uruguai e geraram, entre outros, os acordos TRIPs, relativo à propriedade intelectual, e de compras governamentais (GPA).

A linha geral desses acordos foi convergente com o espírito liberal e globalizante do período, traduzido em tentativas de uma harmonização mundial das regras relativas a esses temas. Daí decorreu que as tensões ao longo da década de discussão opuseram os diplomatas e políticos dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, sendo o resultado final francamente favorável aos primeiros. O Brasil aderiu imediatamente ao TRIPs, promulgando já em 1996 uma Lei de Propriedade Industrial, que em alguns aspectos estabeleceu regras além do disposto nesse acordo, mas não aderiu aos acordos de compras governamentais e de serviços. 

A OMC possui atualmente 164 países-membros. Ao GPA aderiram, até hoje, 19 parceiros em representação de 47 países-membros (os 28 países da União Europeia são considerados um único parceiro). Outros 29 países participam do acordo como observadores e nove dentre esses estão em processo de acreditação para o acesso pleno. No mapa, estão designados os parceiros (verde) e os observadores (amarelo), e chama atenção a concentração de parceiros entre os países ricos do mundo. A China, que é observadora, está no momento reivindicando a sua entrada como parceira.

Fonte: WTO – Parties, observers and accessions
www.wto.org/english/tratop_e/gproc_e/memobs_e.htm

Os detalhes do acordo podem ser encontrados em www.wto.org/english/docs_e/legal_e/rev-gpr-94_01_e. htm. De modo geral, sua missão é estabelecer regras comuns nas compras dos respectivos governos, nas quais não deve haver qualquer preferência dada pelo comprador a potenciais fornecedores nacionais ou estrangeiros, aí incluídos fornecedores estrangeiros com filiais no país comprador. Além da não-discriminação de fornecedores, o acordo inclui a obrigatoriedade do uso de meios eletrônicos e de transparência e a proibição de compensações tecnológicas (mecanismos de off-set) como critério de preferência. O acordo prevê flexibilidades transitórias para países em desenvolvimento e muito pobres.

A despeito das regras amplas de harmonização incluídas no acordo, que não homenageou adequadamente as profundas e crescentes assimetrias econômicas, tecnológicas e comerciais existentes no mundo à época e ainda maiores hoje em dia, a adesão ao mesmo revelou-se aquém das expectativas da OMC. Apenas para efeito de comparação, 113 países membros da OMC já aderiram aos acordos TRIPs e às suas flexibilidades, contra os 47 que aderiram ao GPA. Provavelmente, foi esse “fracasso” multilateral uma das razões que abriram caminho para o florescimento de negociações bilaterais e regionais com vistas a acordos de livre comércio a convite do mundo desenvolvido. Esse é o ambiente em que estamos atualmente e que vem animando alguns setores políticos e de representação corporativa a abrir a discussão, entre nós, sobre a adesão do Brasil a regras de harmonização do setor de compras públicas que, no País, movimentam recursos financeiros da ordem de 10% do PIB2. No meu ponto de vista, as razões que fizeram com que o Brasil não assinasse o acordo permanecem vigentes.

Embora não tenhamos aderido ao GPA, estamos negociando acordos bilaterais de compras governamentais. Em declaração recente, o ministro do Mdic, Marcos Pereira (entrevistado nesta FACTO na pág. 14), afirmou que o governo brasileiro concluiu há pouco um compromisso de compras públicas com o Peru, e negocia acordos sobre o tema com Mercosul, Chile, México e Colômbia. “É certo que a negociação de acordos de compras governamentais dá condições efetivas de maior acesso de empresas brasileiras a licitações realizadas em outros países e, por isso, trata-se de instrumento fundamental para atendimento de interesses econômicos do Brasil com seus parceiros comerciais estratégicos”.

Entretanto, caso não sejam tomadas precauções, acordos sobre compras governamentais encerram riscos nada desprezíveis para a indústria e os serviços brasileiros. A primeira dessas precauções diz respeito às já mencionadas assimetrias entre os países acordantes. Quanto maiores, maior o risco de que o aumento do fluxo de comércio entre eles venha a ser desvantajoso para o polo menos desenvolvido e talvez tenha sido essa uma das razões de termos iniciado a assinar nossos acordos com os países mencionados pelo ministro. A segunda precaução, ainda vinculada à assimetria, diz respeito à extensão setorial dos acordos. Setores nos quais o Brasil é mais competitivo em termos internacionais devem ter preferência absoluta. E a terceira precaução é sempre vincular a direção e a extensão setorial dos acordos às diretrizes da política externa brasileira.

O admirável (?) Mundo Novo e as cabeças trocadas

Desde a crise global de 2008/2009, os sinais políticos vinham aparecendo de modo mais ou menos intenso, tendo aumentado exponencialmente de intensidade nos últimos dois anos. A eleição do presidente Trump, com a saída dos EUA do Trans Pacific Partnership (TPP) e o provável congelamento dos acordos TTIP (EUA/UE) e Trade in Services Agreement (TISA), o Brexit, a derrota das reformas propostas pelo primeiro ministro Renzi na Itália, as dificuldades enfrentadas pelos países do sul da Europa, as tensões entre a Rússia e a Otan, o renascimento do espírito nacionalista e da xenofobia em todo o mundo, sugerem uma posição do Brasil em relação à sua indústria que nada tem a ver com a conjuntura neoliberal dos anos 80 e 90 do século passado, em cujo espírito se alicerçam as propostas para que o Brasil assine o GPA. Na verdade, esses sinais políticos expressam uma inflexão radical na trajetória global que emergiu em 1989 com a queda do Muro de Berlim e o colapso do mundo soviético. Trajetória que prometia uma crescente harmonização econômica (com a globalização financeira) e política (com a democracia liberal erigida como regime padrão), chegando, no limite, à postulação hegeliana do “fim da história” (Fukuyama, 1992), esta, aliás, revista por seu autor bem mais recentemente.

O estabelecimento de amplos acordos de livre comércio e, principalmente, a adesão do Brasil ao GPA terão profundas repercussões no ambiente industrial brasileiro, sendo que, para algumas cadeias produtivas, elas poderão ter um efeito devastador. Este será, certamente, o caso da cadeia produtiva da química fina, na qual se incluem os componentes das indústrias farmoquímica, farmacêutica, biotecnológica e agroquímica representados pela ABIFINA. No início dos anos de 1990, o governo do presidente Collor de Mello promoveu medidas de caráter similar e os resultados para este setor e, possivelmente, para outros foram muito negativos para as empresas brasileiras.

Em recente debate no âmbito da Coalizão Empresarial Brasileira, a ABIFINA expôs com clareza a cautela que deve presidir a assinatura desses acordos, haja vista as assimetrias observadas em muitos casos. Defendemos o estabelecimento de acordos quando envolvam países ou cadeias produtivas em situação de mínima simetria ou de assimetria a nosso favor. Além disso, na conjuntura atual, compensações que se destinem ao fortalecimento da produção industrial e do desenvolvimento tecnológico locais devem ser reivindicadas. Os exemplos bem- -sucedidos de off-set praticados há muitos anos por Bio-Manguinhos e pelo Instituto Butantan no campo das vacinas, bem como a recente negociação para a modernização dos equipamentos da Força Aérea Brasileira, são bastante ilustrativos.

Essa nova conjuntura global está a produzir uma grande perplexidade nos corações e mentes pelo mundo afora. Talvez o fato mais emblemático a esse respeito tenha sido o discurso do presidente Xi Jinping na edição de 2017 do Fórum Econômico Mundial em Davos, quando, portando uma cabeça de presidente norte-americano de algum tempo atrás, clamou pelo livre comércio e em defesa da globalização, ao mesmo tempo em que, nos Estados Unidos, o presidente Trump, portando uma cabeça de líder chinês de algum tempo atrás, iniciava sua onda de iniciativas nacionalistas e protecionistas, praticando o que havia prometido em sua campanha vitoriosa. Dentre elas, a que enterrou o TPP, laboriosamente negociado por Barack Obama durante sete anos e que, por ocasião de seu anúncio em 2015, foi entusiasticamente saudado pela maioria dos analistas econômicos brasileiros. Naquele momento, o entusiasmo pelo que seria uma “harmonização comercial” que incluiria 40% do comércio mundial só era superado pelo pesar quanto à ausência do Brasil no acordo. Alguns desses analistas viram a possibilidade dessa adesão como a superação da “oportunidade perdida” pelo Brasil por ocasião do naufrágio da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta pelos EUA no início dos anos 2000.

Sem dúvida é muito cedo para saber quanto tempo vai durar e onde vai dar essa complexa conjuntura de “cabeças trocadas”, mas para iniciar uma apreciação desse novo quadro talvez seja útil buscarmos algumas pistas na matriz teórico-histórica desenvolvida por José Luís Fiori e seus colaboradores desde os anos de 1980 sobre as relações interestatais globais que conformaram o sistema mundial atual. No que aqui nos toca, pistas sobre a importância do estabelecimento de objetivos estratégicos e da necessidade de sua permanente atualização, bem como suas análises de conjuntura em que nos adverte sobre os perigos das análises de muito curto prazo.

“O que mais contradiz este ‘debate epistemológico’ dos economistas é o sucesso extraordinário do ecletismo chinês, que muda suas regras e instituições segundo seus objetivos estratégicos (…) E neste caso, a conclusão (…) parece apontar numa direção que também vai contra a convicção dos economistas: todos os ‘grandes ganhadores’ seguiram estratégias expansivas e ‘mercantilistas’ (…) até alcançar seus principais concorrentes. Nesta trajetória ascensional, estes países adotaram várias políticas fiscais e monetárias, ortodoxas ou heterodoxas, dependendo das circunstâncias e do juízo dos seus governantes sobre os desafios aos seus projetos de expansão do seu poder e da sua riqueza. (…) Ou seja, no longo prazo, a importância da variação das políticas econômicas conjunturais se dissolve, transformando-se numa variável quase irrelevante para a história de sucesso das grandes potências capitalistas”3

1 Lampreia, LFP – Resultados da Rodada Uruguai: uma tentativa de síntese. Estud. av. vol.9 no.23 São Paulo Jan./Apr. 1995. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141995000100016

2 Biderman, R. et al. (orgs) – Guia de compras públicas sustentáveis: Uso do poder de compra do governo para a promoção do desenvolvimento sustentável. 2008. http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicassustent% C3%A1veis.pdf

3 Fiori, J.L. – Macroeconomia e Estratégia. http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_k2&view=item&i d=1068%3Amacroeconomia-e-estrat%C3%A9gia-%7C-jos%C3%A9-lu%C3

Reinaldo Guimarães
Reinaldo Guimarães
2º vice-presidente da ABIFINA.
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