O Brasil atravessa um dos momentos mais delicados de sua história econômica, com elevado índice de desemprego, baixo crescimento, queda na produtividade, desindustrialização e o risco sempre presente de alta da inflação. Em meio a tantos acalorados debates sobre os melhores meios para se retomar o caminho do desenvolvimento econômico e social, parece que surgem alguns elementos de consenso (ou pelo menos com amplo apoio de variadas correntes): é necessário investir em educação, ciência, tecnologia e inovação, superar os gargalos da infraestrutura, simplificar o ambiente regulatório e as normas tributárias, atrair investimentos para o setor produtivo e exportar mais.
Um dos caminhos que mais podem contribuir para a consecução desses objetivos é a celebração de acordos comerciais. Um acordo bem negociado promove o crescimento das exportações brasileiras e facilita a atração de investimentos externos, tanto no setor produtivo como em infraestrutura. As empresas brasileiras, tradicionalmente voltadas para o mercado interno, poderão aumentar de forma exponencial seu potencial de vendas. Os produtos brasileiros (ao contrário do que muitos ainda acreditam) gozam, no exterior, de boa reputação. Essa imagem positiva, apesar de ainda muito associada a natureza e biodiversidade – com produtos como açaí, fragrâncias da Amazônia, medicamentos fitoterápicos e outros –, já beneficia setores de tecnologia de ponta, como o aeroespacial, no qual a Embraer se destaca entre os quatro maiores fabricantes de aeronaves do mundo.
Os ganhos em acordos comerciais, claro, não são automáticos. Os negociadores brasileiros estão atentos em negociar no estrito respeito à legislação nacional e em consultas regulares com o conjunto do governo brasileiro e com o setor privado. Não serão aceitas disposições que ponham em risco valores e interesses essenciais da sociedade brasileira.
Esse cuidado, válido para todos os temas em negociação, tem especial importância na área de propriedade intelectual.1 De uma negociação bem conduzida dependerão não apenas as políticas de saúde pública como também o fomento à inovação e aos investimentos. O Brasil sabe que a inovação tem de ser estimulada e recompensada. Sabe, também, que o monopólio temporário conferido ao inovador se dá em contrapartida aos benefícios auferidos pelo conjunto da sociedade. Dessa forma, a gestão da propriedade intelectual, para ser eficaz, exige tratamento equilibrado: descuidando-se dos incentivos a criadores e inventores, estes poderão deixar de inovar, ou passarão a fazê-lo em ambiente mais propício aos seus talentos; descuidando-se dos interesses gerais da sociedade, esta não tirará o devido proveito das inovações, ou poderá mesmo se ver prejudicada por conta de direitos concedidos sem contrapartida de real inovação.
Equilíbrio em propriedade intelectual é princípio consagrado no principal instrumento internacional sobre a matéria, o Acordo sobre Aspectos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, na sigla em inglês, como é mais conhecido). Dentre as cláusulas do Acordo que preconizam esse equilíbrio, destaca-se o Artigo 7º (Objetivos):
“A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social e econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações.” 2
Não se trata apenas de questão de princípio, porém. Equilíbrio é a única forma de garantir que um regime de propriedade intelectual traga resultados realmente benéficos para a sociedade como um todo. Essa é a conclusão a que chegam estudos isentos de várias procedências. Assim, a OCDE, em estudo de 2003, observa que:
“Os resultados não dão a entender que proteção mais rigorosa de patentes (ou direitos correlatos de propriedade intelectual) sempre resultará em crescimento do investimento estrangeiro direto e do comércio. Pode-se atingir patamar em que essa proteção passa da medida – e tais direitos resultam em excessivo poder de mercado para seus detentores. Nesse caso, os direitos de propriedade intelectual poderão ter influência negativa sobre o investimento estrangeiro direto e o comércio.” 3
No Brasil, a Confederação Nacional da Indústria (CNI), em seu documento “Propriedade intelectual: as mudanças na indústria e a nova agenda”, de 2014, reconhece o mesmo princípio:
“A propriedade intelectual precisa ser utilizada de forma justa e equilibrada para contribuir com sua função social de disseminação do conhecimento, de transferência de tecnologia e de desenvolvimento. O sistema de PI não apenas protege os frutos derivados da atividade criativa, mas também os investimentos que são feitos para levar esses frutos ao mercado. Bens de tecnologia, culturais e de informação (invenções, desenhos industriais, obras musicais, literárias e outros ativos imateriais), cujos direitos econômicos tiveram seus prazos de proteção encerrados, são considerados de domínio público, não sendo mais exclusivos de nenhum indivíduo ou organização. Tais bens são de livre uso de todos, uma vez que passaram a integrar o patrimônio cultural da humanidade.” 4
Um marco regulatório de propriedade intelectual com regras equilibradas e claras oferece enormes benefícios para empresas tanto de capital nacional como estrangeiro. Segurança jurídica é um dos principais elementos que buscam potenciais investidores antes de aplicar seu dinheiro em qualquer país. Um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia contribuirá para abrir novas oportunidades ao Brasil e aos seus vizinhos, e também para trazer mais conforto a um bloco econômico que reúne alguns de nossos principais parceiros, como Alemanha, França, Espanha e Países Baixos.
Um bom acordo em propriedade intelectual presta importante contribuição para a criação de ambiente propício aos negócios e ao crescimento econômico: além das regras claras e da segurança jurídica, a garantia da efetiva proteção da inovação, bem como a preservação de condições equitativas de concorrência. Em suma: regras equilibradas de propriedade intelectual são peças-chave para o fortalecimento de um capitalismo mais sadio e vigoroso, e menos desigual.
O Brasil goza hoje de amplo respeito nas Nações Unidas e em outros organismos internacionais. Não por acaso, um diplomata brasileiro foi eleito por consenso diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Na OMC, como também na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e na Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é conhecido e respeitado por buscar o equilíbrio e dialogar com todos os países. É respeitado também pela coerência de suas posições ao longo dos anos.
Essa abertura ao diálogo não significa que o País abdique de seus princípios. Na OMPI, a adoção em 2007 da Agenda do Desenvolvimento, proposta por Brasil e Argentina, contribuiu para o crescente reconhecimento da importância da propriedade intelectual para o crescimento econômico e o progresso social. O Brasil tem repetidamente asseverado que as recomendações da Agenda do Desenvolvimento são de interesse de todos os países membros da OMPI, em desenvolvimento ou não. 5
O cenário multilateral (Organização Mundial da Propriedade Intelectual e Organização Mundial do Comércio), pela possibilidade que oferece de diálogo e articulação, é o mais propício à gestão e regulamentação internacional da propriedade intelectual. No entanto, os mais recentes desdobramentos nessa área têm ocorrido no âmbito de acordos comerciais bilaterais ou plurilaterais (como a Parceria Transpacífico, ou TPP). O Brasil, portanto, acompanha com atenção esses desdobramentos: se, em muitos casos, as cláusulas de propriedade intelectual são mais restritivas que o acordo TRIPs, em certas situações percebe-se que o interesse mútuo pode favorecer solução de equilíbrio.
Nesse quadro, as negociações recém-retomadas entre o Mercosul e a União Europeia apresentam ao mesmo tempo desafios e oportunidades. Em outubro de 2016, em Bruxelas, reuniu-se pela primeira vez grupo negociador sobre propriedade intelectual. A UE, em seu conjunto, representa imenso mercado para o Brasil e o Mercosul, tanto em agricultura como em outros setores produtivos. No território da UE, encontram se algumas das economias mais inovadoras do mundo, além de muitas das mais avançadas instituições de ensino. Não há dúvidas de que é do interesse do Brasil e do Mercosul aproximar-se da UE. O desafio é fazê-lo sob regras que de fato preservem – e fortaleçam – nossa capacidade de atuação na economia, na inovação, na educação e na saúde pública. Para tanto, resguardada a flexibilidade natural em processo negociador, TRIPs continuará a servir como referência básica.
Não há investimento mais valioso para um país que a educação e a saúde de sua população. Mas isso não basta: há exemplos no século XX de países que souberam garantir saúde e educação para sua população sem criar o necessário dinamismo em sua economia para tirar proveito dessa mão de obra sadia e qualificada. Consequências: estagnação, perda de competitividade, frustração, emigração (a chamada “fuga de cérebros”). Dessa forma, em consonância com sua atuação nos foros multilaterais, os negociadores brasileiros e dos demais países do Mercosul trabalham para encontrar denominador comum com a UE, regras que satisfaçam nossos interlocutores e que contribuam para nosso esforço de promover a saúde pública e um setor produtivo pujante, dinâmico e inovador. Se não há ganhos para ambas as partes, que sentido faz a negociação de acordo comercial?
1 Em vista do caráter ainda incipiente das negociações sobre propriedade intelectual, em especial entre Mercosul e União Europeia, este artigo se aterá a descrever os princípios e valores que norteiam os negociadores brasileiros na matéria.
2 Conforme reproduzido no Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994.
3 Tradução livre. The Impact of Trade-Related Intellectual Property Rights on Trade and Foreign Direct Investment in Developing Countries, OCDE, 2003. Disponível neste link. Acesso em: 31/10/2016. Nikolaus Thumm, do Escritório Federal Suíço de Propriedade Intelectual, chega a conclusão similar: “studies also find that too much patenting may deter research, development, and innovation”. “A Statutory Research Exemption for Patents”, in: Healthy IPRs – a forward look at pharmaceutical intellectual property, organizado por Meir P. Pugatch e Anne Jensen, The Stockholm Network, 2007.
4 Página 28. Disponível neste link. Acesso em: 31/10/2016.
5 Por exemplo, em outubro passado, durante a primeira Assembleia das Partes do Tratado de Marraqueche, foram ouvidos vários depoimentos de representantes de organizações de cegos e pessoas com deficiências visuais dos EUA, insistindo para que seu país aderisse logo ao instrumento, que prevê exceções e limitações aos direitos de autor para a difusão de versões acessíveis a pessoas com deficiências visuais de livros e outras obras sob proteção.