REVISTA FACTO
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Jul-Set 2016 • ANO X • ISSN 2623-1177
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//Editorial

BIG PHARMA: NOVOS DILEMAS

Em junho de 2014, aqui na FACTO (no 40), assinei um artigo intitulado “Os dilemas da Big Pharma”. Nele, tratei de discutir os desafios postos então para as grandes empresas farmacêuticas transnacionais face à crise no lançamento de novas moléculas capazes de se transformarem em blockbusters comerciais e ao vencimento do período de proteção patentária de um significativo número de produtos nessa condição. No texto, apresentei um conjunto de estratégias levadas a cabo pelas empresas para tentarem superar as dificuldades de então. Eram elas: 

  1. Operações de fusões e aquisições (M&A) cujo objetivo era o de adquirir os pipelines das empresas fundidas ou compradas.
  2. A decisão de diminuir a verticalização nas firmas, com o objetivo de compartilhar riscos com terceiros.
  3. A entrada no mercado de genéricos, que deixaram de ser “criminalizados” na medida em que a Big Pharma passou ela mesma a produzi-los e comercializá-los.
  4. A radicalização no terreno da propriedade intelectual visando a fortalecer interesses comerciais, mesmo que em detrimento do interesse público.
  5. A proposição de programas que visavam à aproximação entre empresas farmacêuticas e a comunidade científica, com vistas a tornar mais fluido o fluxo de conhecimento “translacional” (da bancada de pesquisa para as empresas).
  6. Finalmente, mencionei a inauguração (ou aprofundamento) de estratégias comerciais altamente heterodoxas, em particular nos terrenos de comercialização de produtos off-label, de promiscuidade no relacionamento entre profissionais e gestores de saúde e também da manipulação de dados de ensaios clínicos.

Passados dois anos daquele artigo, vale a pena rever o desenvolvimento dessas estratégias e apresentar pelo menos um novo grande desafio posto mais recentemente.

No que se refere a M&A, devo confessar um erro de avaliação. No artigo de 2014, sugeri que o ritmo das mesmas diminuiria em função da concentração já ter chegado a um ponto no qual os valores para novas operações de M&A seriam muito elevados, mesmo para gigantes farmacêuticas. Não foi o que se observou e, em 2015 (até setembro), o valor total das transações anunciadas alcançou US$ 850 bilhões1. Isso sem levar em conta que, em outubro de 2015, foi anunciada a compra da empresa irlandesa Allergan pela Pfizer, por US$ 125 bilhões, frustrada pelo governo norte-americano para evitar perdas fiscais. Observadores qualificados, como o jornal Financial Times, estimam a continuidade da tendência ascendente de M&A’s em 20162.  

A estratégia de compartilhamento de riscos avançou celeremente nesses dois anos. Genericamente denominada de Business Process Outsourcing (BPO), atualmente envolve a contratação de serviços de terceiros para processos relacionados à pesquisa pré-clínica e clínica, para etapas de manufatura e para operações de vendas e marketing. O mercado BPO na indústria farmacêutica valia US$ 127,4 bilhões em 2014 e seu crescimento entre 2015 e 2023 está previsto para ser de 8,9% a.a. Nesse passo, alcançará US$ 286,3 bilhões no último ano da série3.

O processo de descriminalização dos medicamentos genéricos vem sendo substituído paulatinamente por outra tendência de mesma matriz, agora dirigida aos biossimilares. Os aspectos mais visíveis dessa tendência dizem respeito ao padrão regulatório desses medicamentos, à possibilidade de serem intercambiáveis com os biológicos de referência e à nomenclatura para a comercialização dos mesmos. Nos medicamentos produzidos por rota biotecnológica, em particular aqueles representados por macromoléculas, o critério de bioequivalência não pode ser adotado como “padrão ouro” de identidade entre produtos e isso fornece espaço técnico e argumento político para que barreiras regulatórias à comercialização de biossimilares sejam erigidas. O resultado dessas barreiras é uma muito baixa velocidade no registro desses medicamentos. Na agência sanitária norte-americana (FDA), até o momento apenas dois produtos obtiveram registro, um em 2015 e outro em 2016. Um deles é o Filgastrim (primeira geração de biossimilares) e outro, o Infliximabe (segunda geração de biossimilares). Na agência europeia (EMA), foram concedidos 20 registros até abril de 2016, quase todos relativos a biossimilares de primeira geração (Filgastrim, Eritropoietina, Hormônio de Crescimento, Insulina Glargina) e apenas dois de segunda geração (Infliximabe e Etanercepte). Em comparação com a praticamente finda batalha em torno dos genéricos, as dificuldades técnicas para o estabelecimento da comparabilidade entre os biossimilares e os medicamentos de referência são objetivamente maiores face à complexidade das moléculas envolvidas, o que enseja uma luta mais acirrada na defesa de direitos. Por outro lado, diferentemente do caso dos genéricos, a Big Pharma está entrando no terreno da fabricação de biossimilares de modo bastante precoce, o que atenua as iniciativas de criminalização dela oriundas, outrora amplamente utilizadas no caso dos genéricos.

No terreno da radicalização do regime de propriedade intelectual, destaca-se a expansão dos acordos bilaterais e plurilaterais com a presença constante de dispositivos relativos ao tema. Quanto a isso, merece particular destaque a negociação e o recente lançamento do Trans-Pacific Partnership (TPP), acordo comercial entre os EUA e um conjunto de 11 países cujo capítulo sobre proteção dos direitos de propriedade intelectual representa a implementação de tudo o que foi rejeitado no âmbito multilateral durante as discussões que resultaram nos acordos TRIPs em 1994, além de estabelecer cláusulas sequer imaginadas naquele momento, como, por exemplo, a perda da soberania dos países no julgamento de supostas infringências de cláusulas do acordo. Controvérsias deixariam de ser solucionadas pela Justiça do país onde ocorreram e passariam a ser dirimidas por arbitragem internacional. Para vigorar, a TPP deverá ser ratificada pelos parlamentos dos países envolvidos, o que está caminhando com muita dificuldade, em particular nos EUA. A importância desse tópico para o Brasil reside na excitação provocada pelo anúncio do acordo, cuja fonte são as correntes de opinião que propugnam uma nova abertura comercial em moldes similares à ocorrida na década de 1990 do século passado (a respeito do TPP, vale a pena ler o artigo de Claudia Chamas, na pág. 8 deste número da FACTO). 

Objetivando tornar mais fluido o trânsito entre a pesquisa e a produção, a iniciativa mais importante foi a criação, nos EUA, em abril de 2014, do acordo entre os National Institutes of Health, algumas ONGs e dez empresas da Big Pharma, denominado Accelerating Medicines Partnership, cujo objetivo era aproximar pesquisadores e farmacêuticas. As ênfases, até o momento, estão voltadas para três programas dirigidos, respectivamente, para doenças autoimunes (artrite reumatoide e lúpus), Alzheimer e diabetes tipo 2. Para um empreendimento dessa natureza, dois anos é um tempo muito curto para qualquer apreciação mais fundamentada a respeito de seus resultados. 

“A Big Pharma está entrando no terreno da fab ricação de biossimilares de modo bastante precoce, o que atenua as iniciativas de criminalização dela oriundas, outrora amplamente utilizadas no caso dos genéricos” 

Os primeiros anos desta década testemunharam uma avalanche de ações administrativas e judiciais contra uma boa parte das empresas da Big Pharma. As razões foram sempre relacionadas a aspectos das estratégias comerciais das mesmas e os resultados foram bem negativos para as firmas. Geograficamente, as ações ocorreram principalmente nos EUA, mas também no Japão e na China. Nesse aspecto, a britânica GSK teve indiscutível liderança. Em 2012, já havia sido multada em US$ 3 bilhões pela Justiça dos EUA por vender medicamentos para uso off-label e esteve sob pesada investigação na China, por alegada prática de suborno a médicos e hospitais. A norte-americana Johnson&Johnson fez acordo com a Justiça dos EUA declarando-se culpada de procedimentos pouco éticos de marketing. A multa foi de US$ 2,2 bilhões. A suíça Novartis foi multada em US$ 422 milhões e a norte-americana Pfizer em US$ 1,3 bilhão, também nos EUA e por razões parecidas. Os prejuízos causados por esses eventos não devem ser medidos apenas, e talvez nem principalmente, pelos prejuízos financeiros. É muito provável que as receitas auferidas com as práticas ilegais hajam sido bem maiores do que as perdas decorrentes do valor das multas aplicadas. O prejuízo maior é de imagem, num segmento industrial que há muito recebe críticas fundamentadas de estudiosos e políticos nos países do Hemisfério Norte. Nesse caso, ao contrário do dito popular, não é a dor no bolso que altera comportamentos, mas a dor na alma das empresas e tudo indica que a onda de radicalização comercial findou. E espera-se que não torne a voltar.

Mas o que há de novo nos desafios postos para a Big Pharma? Em verdade, não se trata de algo realmente novo, mas de uma tendência existente há algum tempo, que vem apresentando uma grande aceleração nos últimos dois ou três anos. A relevância do fato pode ser medida pelo lugar privilegiado que passou a ocupar na agenda da atual campanha eleitoral para a presidência do maior mercado farmacêutico do mundo. Refiro-me ao preço dos medicamentos de prescrição, não apenas os biossimilares, mas também produtos baseados em velhas moléculas sintéticas que, com pequenas ou nenhuma modificação estrutural, vieram a se tornar campeões de venda e alavancadores de grandes receitas para seus produtores (p.ex., o Sofosbuvir contra a hepatite C e o Daraprim, contra a toxoplasmose). Uma análise profunda e de grande amplitude sobre o tema dos preços dos medicamentos de prescrição nos EUA foi recentemente publicada no Journal of the American Medical Association (JAMA)4, sob o título “The high cost of prescription drugs in the United States: origin and prospects of reform”.

O artigo mostra que a derivada do gasto com medicamentos nos EUA (20% entre 2013 e 2015) é quase o dobro da do agregado dos gastos com saúde naquele país (11% no mesmo período), estimando que o gasto com medicamentos representa atualmente 17% de todo o gasto com saúde (US$ 3,2 trilhões em 20155), correspondendo a US$ 544 bilhões. Sugere também que a razão primária para essa aceleração reside nos preços de produtos de marca protegidos por reservas de mercado decorrentes de exclusividades concedidas pela agência de regulação sanitária (FDA) e pelo escritório de patentes norte-americano (USPTO). No caso de moléculas pequenas, a exclusividade concedida pelo FDA é de cinco a sete anos após o registro e, no caso de biológicos novos, pode chegar a 12 anos. No que se refere ao USPTO, um conjunto de extensões legais e outras passíveis de disputa administrativa ou judicial faz com que a entrada de concorrentes no mercado possa ser retardada por um largo período. Mencione-se que a Lei de Patentes brasileira oferece possibilidades de extensão de patentes similares à da lei norte-americana. 

O artigo também comenta a afirmativa da Big Pharma de que os altos preços são decorrentes dos custos crescentes envolvidos no processo de desenvolvimento dos medicamentos de prescrição, podendo alcançar até US$ 2,6 bilhões para um produto chegar ao mercado, segundo os fabricantes. A revisão do JAMA coloca esse argumento em tela de juízo lembrando o quanto de recursos públicos está embutido nas fases de pesquisa e desenvolvimento mais precoces, bem como o papel de investimentos de venture capital em fases algo mais avançadas. Em ambos os casos, são modalidades de recursos que não deveriam ser incorporadas na contabilidade do custo global do desenvolvimento bancado pela empresa produtora. Coincidentemente, também em agosto passado, a revista Nature6 publicou uma reportagem dando conta de processos inovadores de desenvolvimento de medicamentos, realizados pela organização Drugs for Neglected Diseases Initiative (DNDi), cujo custo é uma pequena fração da cifra apregoada pela Big Pharma. É muito provável que nem tudo que foi anunciado pelo DNDi possa ser aplicado sem ajustes em empresas de organização complexa e com obrigações rígidas de retorno comercial aos seus acionistas. Entretanto, é um correto chamado de atenção no sentido de que governos e empresas devem propor medidas para frear o aumento desenfreado e injustificável de preços.

Voltando ao artigo do JAMA, algumas sugestões são dadas com esse objetivo. A primeira delas fala de estimular a competição, principalmente mediante barreiras à extensão do período de proteção patentária. Além disso, um maior rigor na concessão de patentes, recusando-se estratégias de concessões baseadas em patentes secundárias a moléculas já patenteadas quando o impacto terapêutico é irrelevante. Mais ainda, as legislações nacionais deveriam restringir o aumento do escopo das patentes, por exemplo, negando patentes a sequências de DNA ou a isômeros ou estruturas cristalinas de moléculas já protegidas quando não representarem claros ganhos terapêuticos.

Uma segunda direção se refere a medidas governamentais para controlar preços de medicamentos, hoje praticamente inexistentes nos EUA. Vale aqui comentar as permanentes pressões existentes entre nós contra o controle de preços, exercidas pelas filiais brasileiras da Big Pharma. Igualmente importante seria uma ação governamental no sentido de disseminar informação sobre a efetividade e o custo-efetividade dos medicamentos, com vistas a estimular a prescrição e o uso mais racional desses produtos. No Brasil, um grande avanço nessa direção foi dado a partir da promulgação da Lei no 12.401, que regulamentou o princípio da integralidade no SUS e, entre outros dispositivos, criou a Comissão Nacional de Incorporação Tecnológica (Conitec). Infelizmente, observamos aqui também uma campanha permanente e injustificada de críticas ao funcionamento da comissão, realizada pelos representantes das multinacionais farmacêuticas que atuam entre nós.

Finalmente, há ainda medidas de esclarecimento relativas aos prescritores e aos pacientes. Àqueles, é sugerido que passem a dialogar com seus pacientes sobre os preços dos medicamentos prescritos e sobre a capacidade de os mesmos serem adquiridos. Aos pacientes, que busquem nos prescritores informações sobre isso e, eventualmente, indaguem aos mesmos a existência de alternativas terapêuticas mais acessíveis.

Reinaldo Guimarães
Reinaldo Guimarães
2º vice-presidente da ABIFINA.
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