A edição de uma ( então) nova legislação que veio a substituir o Código da Propriedade Industrial de 1971 não marcou apenas uma adaptação da antiga ordem sistemática, mas a reconstrução de um modelo cujas diretrizes foram deflagradas pelo cosmopolitismo jurídico. Nesse sentido, o Brasil mais uma vez confirmou seu pioneirismo internacional (como o havia feito como membro fundador da Convenção da União de Paris e na Convenção da União de Berna no século XIX), tendo sido um dos primeiros países a transformar sua regulação interna para ser acorde aos compromissos internacionais do recente Acordo ADPIC (na versão anglófona, TRIPs).
Além da Lei de Propriedade Industrial (9.279/96), importantes marcos legais foram implementados sequencialmente, como a Lei de Cultivares (9.456/97), a Lei sobre Programas de Computador (9.609/98), a Lei de Direitos Autorais (9.610/98) e a Lei sobre Circuitos Integrados (microchips, 11.484/2007), todos em conformidade com o anexo do tratado-contrato constitutivo da Organização Mundial do Comércio.
Destaque-se que, se houve um esforço patriótico memorável por parte do Itamaraty em garantir uma negociação de um tratado multilateral que respeitasse o bojo das características desenvolvimentistas canarinhas, de outra monta, o Congresso dos anos 90, dominado pelo perfil ideológico do neoliberalismo, abdicou de uma série de conquistas negociais que haviam sido incorporadas ao próprio Acordo TRIPs. Como no ambiente externo os interesses dos países economicamente dominantes eram o de garantir balizas mínimas (muito altas para o nosso padrão de então) – e esta missão só foi exitosa após muitos anos de negociação –, era inimaginável que algum dos maiores resistentes da agenda de expansão proprietária pudesse, espontaneamente, atribuir mais prerrogativas do que fora negociado. Tudo contra os interesses públicos primários.
Portanto, há 20 anos atrás, a “moldura textual- -normativa” foi publicizada e uma grande transformação econômica se apurou em mercados (como o biotecnológico, farmacêutico e agroquímico) que eram antes caracterizados pela plena liberdade de acesso. Com a vicissitude do perfil pretérito da liberdade includente para o paradigma contemporâneo das propriedades monopolistas-excludentes, a seara da química fina passou a experimentar não só um sistema de incentivos em que as multinacionais se destacavam, mas, de outro lado, uma arquitetura jurídica que permitiu os oportunismos dos atos-anticompetitivos (como a obtenção de patentes ilegítimas, os pleitos de prorrogação de patentes e as ações judiciais intentadas apenas para causar danos – sham litigation).
Ressalve-se que o transcurso dos 20 anos da LPI não significou que as normas (produtos da hermenêutica) dela advindas restaram estáticas. Como o direito não se confunde com os preceitos escritos, dentro das “molduras dos textos” sempre é possível construir mais de um sentido. Neste contexto, o Judiciário passou a ser (mais do que o Legislativo ou o Executivo) o foco de promoção das lutas empresariais e de ratificação das políticas públicas (PDPs e prazos das patentes de invenção), sendo o locus de enfrentamento entre as autarquias depauperadas (pelos seguidos e reiterados abandonos pelo Poder descentralizado) e as pujantes sociedades empresariais multinacionais.
Dentro da perspectiva democrática e da ampliação da função do Poder Judiciário quanto às discussões sobre justiça distributiva, que se intensificaram na seara da propriedade intelectual, no ano de 2006 um fato importante veio a trazer maior equilíbrio argumentativo e ideológico ao crescente número de litígios. Consigne-se que, no primeiro hiato de dez anos da LPI, a indústria nacional observou (quase passivamente) o avanço ganancioso por períodos mais gordos de duração de patente, de tipos de patente, e da erosão dos filtros legais (em especial da atividade inventiva).
Contudo, há dez anos atrás um audacioso projeto da ABIFINA (GAJ – Grupo de Apoio Jurídico) importou numa ruptura da apresentação monotemática sobre a problematização dos conflitos envolvendo patentes. Como até então apenas o discurso das multinacionais era objeto de oitiva pelos Órgãos Julgadores, qualquer ênfase à indústria nacional neste viés ganhava lustros pejorativos como de meros reprodutores, contrafatores da inovação alheia e, até, de economia produtiva de “fundo de quintal”.
Dessa forma, mesmo em teses jurídicas já direcionadas à expansão de tutela aos interesses estrangeiros (como a prorrogação dos prazos de patente advinda do Acordo TRIPs ou em combinação com o instituto das pipelines), os argumentos diferenciados colacionados pela ABIFINA surtiram efeito de convencimento crítico. Quando cada causa (objeto dos amici curiae) passou a ser individualizada, o produto químico objeto da discussão veio a ser identificado e o impacto nos preços (sem concorrência) se tornou conhecido pelos magistrados, construindo-se a percepção de que cada decisão no processo impacta nos planejamentos de políticas públicas (do SUS e da concorrencial).
Entretanto, o papel participativo da ABIFINA não se limitou a elucidar as grandes questões jurídicas debatidas, sendo suas intervenções judicias corroboradas com pareceres de importantes juristas e de manifestações técnicas sobre as minúcias das tecnologias em disputa. Por sua vez, a pujança da associação classista nacional também se deu em sede dos Projetos de Lei sobre a reforma-formal da LPI, contribuindo no Legislativo com sua participação em todas as audiências públicas até hoje realizadas.
Não obstante, além das discussões em lides individuais e nos polêmicos PLs (quase todos direcionados ao favorecimento do capital estrangeiro), a ABIFINA se tornou um dos players principais nas duas grandes Ações Diretas de Inconstitucionalidade que questionam: i) a possibilidade de privatização sem compensação das tecnologias que já estavam em domínio público (ADI 4234 – patentes pipeline – 230 e 231 da LPI) e ii) a legalidade constitucional de se dilatar o termo das patentes pela mora administrativa do INPI (ADI 5061 e 5529 – backlogs e parágrafo único do art. 40 da LPI).
Averbe-se, contudo, que o movimento hermenêutico sistólico (expansionista dos direitos de PI, mais voltado aos titulares de patente) e diastólico (reducionista dos direitos intelectuais ao nível mínimo exigido em lei, mais tendente à concorrência, ao Estado e aos consumidores) é dinâmico. Pelo seu movimento pendular, nenhuma conquista havida da jurisprudência edificada ao longo das décadas pode- se cristalizar como acabada. Todos os anos novas e criativas teses jurídicas judicializadas são trazidas pelas multinacionais, expandindo os horizontes da propriedade intelectual para o setor regulatório (registros sanitários), administrativo (licitações) e da proteção dos dados de testes.
Tal importa na fundamental vigilância e cooperação da ABIFINA, que, na seara de inter-relação da química fina e da propriedade intelectual, exerce um papel de colaborador ao ombudsman (Ministério Público), às autarquias e ao Poder Judiciário. Aliás, nos anos vindouros, audaciosos planos do GAJ- -ABIFINA visam ao apaziguamento interinstitucional quanto ao polêmico instituto da anuência prévia (art. 229-C da LPI), além da contribuição para a formação de jurisprudência que cristalize critérios objetivos sobre patentes de seleção, segundos-usos e polimorfos, além da vedação ao vilipêndio ao limite temporal para modificações de reivindicações (art. 32 da LPI).
Que os próximos 20 anos da LPI sejam tão proveitosos, mediante muita luta, para a indústria nacional e para o projeto desenvolvimentista estampado na Constituição Federal.