REVISTA FACTO
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Jul-Set 2016 • ANO X • ISSN 2623-1177
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//Artigo

A indústria fa rmacêutica e os horizontes TRIPs Plus: perspectivas brasileiras

A partir do advento do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, na sigla em inglês), as regras internacionais de propriedade intelectual associaram, de maneira inédita, saúde e comércio. O novo contexto, que inclui a obrigatoriedade de concessão de patentes para processos e produtos farmacêuticos, trouxe consequências para os preços e o acesso a medicamentos, as capacidades locais de inovação e produção e a manufatura de genéricos, como demonstraram inúmeros estudos. TRIPs reduziu a autonomia dos países no tocante à exploração das assimetrias em harmonia com os seus objetivos tecnológicos e industriais e suas políticas de saúde pública.

Mecanismos de financiamento adequados e preços justos são elementos relevantes para as políticas públicas de acesso universal. O preço do medicamento varia ao longo do tempo e pode ser influenciado por vários fatores, inclusive patentes, condições de mercado e eficácia na mobilização adequada das flexibilidades contidas em TRIPs. Grosso modo, os novos produtos lançados sob proteção patentária apresentam preços elevados e seus titulares desfrutam de ausência de concorrência. O Acordo definiu cobertura mínima de 20 anos. Entretanto, este tempo pode variar de acordo com as condições da legislação e do sistema de cada país, com efeitos para a comercialização dos genéricos.  

Logo após o surgimento de TRIPs, os Estados Unidos empenharam esforços na negociação de acordos bilaterais com vários países (Chile, Colômbia, Costa Rica, Marrocos, Peru, Vietnã, entre outros), promovendo mudança significativa na sua diplomacia comercial, até então bastante concentrada no sistema multilateral como solução para abrir mercados e desenvolver novas regras comerciais. Um dos focos desses acordos era um conjunto de regras mais duras em propriedade intelectual, objetivando se aproximar do padrão da legislação americana, em geral superior a TRIPs. Esse movimento refletia o desejo das firmas e dos grupos empresariais americanos de garantir proteção intelectual para os seus bens exportáveis. Por outro lado, havia parceiros dispostos a aceitar elementos TRIPs Plus juridicamente vinculantes em troca de acesso preferencial a certas fatias do mercado dos Estados Unidos. Acordos bilaterais também foram negociados pela União Europeia. As soluções do capítulo de propriedade intelectual desse número crescente de acordos de livre comércio variaram de país a país, de acordo com os interesses e o poder de barganha das partes, mas sempre partindo-se de TRIPs como piso.

Em seguida, novas agendas que envolvem direitos de propriedade intelectual se disseminaram: o grupo de trabalho Standards to be Employed by Customs for Uniform Rights Enforcement (Secure), o Acordo Comercial Anticontrafação (ACTA, na sigla em inglês) e, mais recentemente, a Parceria Trans-Pacífico (TPP, na sigla em inglês). Todas demonstram claramente um deslocamento dos foros multilaterais para os regionais. As negociações incluem apenas um grupo limitado de países e são caracterizadas pelo sigilo, ampliando os compromissos de propriedade intelectual em escopo, extensão e aspectos juridicamente vincu lantes que não foram incorporados no âmbito dos acordos da OMC.

Em fevereiro passado, 12 países (Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Estados Unidos, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura e Vietnã), que representam cerca de 40% da economia mundial, assinaram a TPP. No entanto, para entrar em vigor, o texto necessita passar pelo crivo dos parlamentos de cada um dos países signatários. Analistas, como o professor Peter Drahos, afirmam que o potencial impacto da TPP nos sistemas regulatórios locais é ainda maior que o resultante da Rodada Uruguai (1986-1994), que levou à criação da OMC e à entrada em vigor de TRIPs. Levará, portanto, à ampliação e ao fortalecimento da harmonização em matéria de patentes, direitos autorais, enforcement e outros temas. Sem dúvida, a TPP reflete o crescimento em importância da região do Pacífico, ao mesmo tempo em que representa reação ao desafio do crescimento acelerado da China. Entre outros fatores, o futuro deste Acordo dependerá da posição do Congresso americano, que deverá ser definida após as eleições presidenciais, e também das escolhas da China e da Índia, que estão envolvidas nas negociações da Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP). 

A chegada da TPP igualmente nos faz refletir sobre que papel TRIPs, OMC e OMPI desempenharão no sistema multilateral de propriedade intelectual. Esses organismos continuarão relevantes para o comércio global? Os acordos plurilaterais acabarão por fixar novos padrões de proteção patentária e de enforcement, superiores ao nível estipulado por TRIPs? Entre várias novas medidas, a TPP estabelece restrições por meio da exclusividade de dados e de mercado, inclusive para produtos biológicos. Além disso, uma das cláusulas da TPP designa a extensão do prazo de vigência da patente, compensando atrasos no exame ou no registro para comercialização. Efeitos imediatos desses mecanismos incluem o atraso no lançamento de genéricos e a inibição da concorrência, o que pode levar à necessidade de compras de medicamentos sob preços elevados por um período mais longo. Vale lembrar que acadêmicos, diversas organizações da sociedade civil e empresas de países em desenvolvimento têm apontado críticas e receios à aprovação do TPP e suas possíveis consequências para o acesso a medicamentos.

Nesse cenário, é essencial para o Brasil compreender o alcance dos novos acordos regionais e monitorar e avaliar os impactos das tendências em preços e condições de acesso a tecnologias e produtos uma vez que as normas propostas tendem a reduzir ainda mais os espaços para ajustes das políticas locais de propriedade intelectual e impõem limites às flexibilidades de TRIPs. Em busca de homogeneidade, o reconhecimento das diferenças de progresso econômico entre os países passa a ser ainda menos relevante nos novos compromissos, com severas implicações para a política tecnológica e industrial e de saúde pública de nações em desenvolvimento. 

O Brasil vive momento crucial da sua história, fragilizado por uma crise econômica e política. Não haverá saída sem a promoção da inovação, do fortalecimento industrial e dos incentivos à cooperação internacional. Em paralelo, existe a urgência em se fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), que articula várias dimensões, inclusive o Complexo Industrial da Saúde. O Brasil tradicionalmente adotou posições estratégicas privilegiando o multilateralismo na busca de proporcionalidade entre os deveres e o espaço para o desenvolvimento. Nesse quadro, os acordos comerciais e tecnológicos são de grande relevância para alavancar oportunidades, amparar a integração com parceiros de outros países e impulsionar a posição do País nas cadeias globais de valor, sem, porém, abrir mão dos compromissos de estímulo à indústria local e dos pilares do SUS.

A proteção patentária e de outros ativos intangíveis é um dos mecanismos disponíveis para o incentivo à inovação e para a coordenação entre os diversos agentes no campo farmacêutico. Considerando- -se essas duas dimensões – a saúde pública, por um lado, e os interesses industriais, por outro – , entende-se que é necessário um olhar equilibrado para que os negócios sejam estimulados, sem que se abra mão dos objetivos da saúde. O patamar de proteção patentária estabelecido por TRIPs, no âmbito das flexibilidades incluídas neste acordo, tem sido um bom parâmetro para se atingir os incentivos adequados aos investimentos e o fomento ao interesse público.

Na ótica do desenvolvimento farmacêutico local, faz-se necessário avaliar o quanto a adoção de novas normas de fato contribuiria para o incremento dos processos de transferência de tecnologia ou o quanto restringiria a concorrência, dificultando os processos de inventing around e a cópia legal para produção de genéricos, e favorecendo a transferência de renda para os países desenvolvidos. A experiência brasileira e internacional acumulada, analisada em numerosos estudos, demonstra com clareza as consequências a se esperar. 

Claudia Inês Chamas
Claudia Inês Chamas
Pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz e professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em associação com a Fiocruz.
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