Os dois choques do petróleo ocorridos na década de 1970 e o esgotamento das reservas cambiais brasileiras nos anos seguintes culminaram no período que ficou conhecido como “década perdida”. Nossa democracia renascia em meio à crise e, no plano econômico, a política de substituição de importações foi intensificada, numa tentativa de estancar a sangria de divisas no comércio exterior brasileiro. Acirraram-se, assim, os conflitos de interesse entre a indústria de capital nacional e os defensores de uma maior abertura do País para as corporações estrangeiras. Essas tensões foram o motor ideológico da fundação da ABIFINA, em 18 de junho de 1986.
A entidade se propôs, de saída, um objetivo ousado: zelar pela nacionalização crescente da produção industrial da química fina no Brasil, a começar pelos seus insumos ativos. Dessa forma seria possível superar a dicotomia entre o desenvolvimentismo fechado e a liberalização indiscriminada do mercado nacional, sem perda de soberania econômica e tecnológica.
Antes da ABIFINA, recorda Dante Alario, presidente técnicocientífico da Biolab Farmacêutica, “não havia entidade nacional que auxiliasse na coordenação de ações para transformar o Brasil em um país produtor de insumos farmacêuticos. As iniciativas eram individuais, isoladas e desprovidas de uma proposta que envolvesse os vários órgãos governamentais e respectivos Ministérios”.
O desafio da reconstrução
A década perdida arrefeceu o ânimo da indústria, mas por outro lado provocou, em alguns segmentos, a ambição de uma “volta por cima”. “Se no lado político havíamos acabado de entrar na era da redemocratização, no aspecto econômico um verdadeiro abismo nos separava do que chamávamos de Primeiro Mundo”, assinala Ogari Pacheco, presidente da ABIFINA e do laboratório Cristália. “Nossa indústria era sucateada. Víamos novas tecnologias em química fina e biotecnologia nascerem na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia e tínhamos poucas perspectivas de um dia alcançá-las. Neste contexto, foi fundada a ABIFINA, com o objetivo de incentivar a capacitação tecnológica das empresas do segmento, promover a inovação e a competitividade da indústria brasileira”.
Pacheco afirma que a ABIFINA teve, desde o início, uma atuação reconhecidamente relevante no trato de políticas visando à industrialização do País, ao desenvolvimento tecnológico e ao comércio exterior. “Destaco a missão empresarial a Genebra, em 1989, quando a atuação da entidade foi imprescindível nos debates do acordo internacional conhecido pela sigla GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), que resultou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1994. Em 1990, a entidade foi pioneira ao apresentar ao Congresso Nacional proposta de alteração do Código de Propriedade Industrial, vigente desde 1971”.
José Correia da Silva, integrante do time fundador da ABIFINA e seu primeiro presidente, lembra o ímpeto inicial da equipe. “Éramos poucos. Mas com tanta energia trabalhamos que, muito rapidamente, a recém-nascida entidade amealhou uma série de novos associados e participávamos ativamente de todos os foros onde se discutia a questão da produção local de química fina, seja no governo, nas universidades, no Congresso Nacional, nas entidades congêneres de representação industrial e no exterior. Destaco especialmente nossa atuação nas reuniões da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), uma vez que, na qualidade de maior produtor regional, o Brasil precisava, constantemente, se defender das tentativas de exportação privilegiada de pseudoprodutores instalados nos países vizinhos, que buscavam burlar nossos sistemas de controle de importações”.
Athayde Junior, dirigente do laboratório Libbs e um dos herdeiros do combatente de primeira hora Alcebíades de Mendonça Athayde, salienta o fato de a ABIFINA reunir tanto empresas privadas como laboratórios públicos, “o que lhe dá credibilidade para desenvolver e propor políticas públicas para o avanço tecnológico do setor químico-farmacêutico, estratégico para o Brasil”. Ele considera que uma das premissas para o desenvolvimento socioeconômico do País é a aliança entre a iniciativa privada e esferas públicas em projetos de pesquisa e desenvolvimento. “A história econômica está repleta de exemplos de países que, graças a essas alianças, se desenvolveram e hoje integram o primeiro time das economias globais. É o caso da Inglaterra, num passado mais distante, e do Japão e da Coreia do Sul, na segunda metade do século 20”.
Eduardo Gouvêa Vieira, presidente da Firjan, enxerga uma expressiva contribuição da ABIFINA para a formulação de políticas públicas e a capacitação tecnológica das empresas. “Não se pode deixar de mencionar, particularmente, sua colaboração na elaboração da Lei do Bem, que concede incentivos fiscais para empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento, e no estabelecimento do marco regulatório do setor químico-farmacêutico”.
Ex-secretário executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luiz Antonio Elias também enfatiza a contribuição da ABIFINA na área tecnológica. “A ABIFINA observou a necessidade de reduzir a brecha tecnológica existente no mercado brasileiro e reforçar o desenvolvimento estimulando a pesquisa básica, o que foi decisivo para laboratórios públicos como Farmanguinhos e Butantã”. No âmbito das políticas industriais e de ciência, tecnologia e inovação, igualmente, ele entende que “a entidade cumpriu um importante papel, contribuindo para a construção de instrumentos e mecanismos voltados para reforço do conteúdo local, para aquisição ou geração de conhecimento e para a formação de recursos humanos. Estes foram os elementos centrais de programas gerados em seguida e executados, por exemplo, pela Finep e pelo BNDES. A ABIFINA sempre se posicionou sobre questões importantes como produção local e desenvolvimento tecnológico com base em instrumentos como o poder de compra governamental, à semelhança do que praticam os países desenvolvidos”.
“Antes da ABIFINA, não havia entidade nacional que auxiliasse na coordenação de ações para transformar o Brasil em um pa ís produtor de insumos farma cêuticos” Dante Alario
A realização bem-sucedida das duas primeiras edições do evento técnico QUIMIFINA, concebido para discutir políticas para o setor, abriu caminho para a ABIFINA influenciar a redação do artigo 170 da Constituição, que trata dos princípios gerais da atividade econômica e estabeleceu, em sua versão original, o “tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte”. Outro dispositivo da Constituição que teve a contribuição da ABIFINA em sua redação original foi o artigo 171, que definia como empresa nacional aquela constituída exclusivamente por capitais nacionais, com controle efetivo e em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País. Estabelecia ainda que o poder público daria tratamento preferencial à empresa brasileira de capital nacional na aquisição de bens e serviços. Tais conquistas foram posteriormente anuladas pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995, quando o governo brasileiro já havia adotado e estava aplicando integralmente o receituário neoliberal prescrito pelos países ricos.
Em 1990, o presidente Fernando Collor começou a implantar no Brasil os ditames do Consenso de Washington, lançado em 1989 e que consistia na liberalização total da economia nos países emergentes, com abertura indiscriminada do mercado interno às importações e privatização de patrimônio e serviços estatais. Os emergentes asiáticos – Índia, Taiwan, Coreia do Sul e, mais recentemente, China – realizaram uma abertura comercial gradativa, orientados por projetos de Estado de longo prazo que asseguraram a adaptação de suas unidades produtivas nacionais aos padrões de competição do mercado global.
No Brasil, aconteceu o oposto. A onda neoliberal inundou abruptamente o mercado interno com produtos importados, derrubando a competitividade das indústrias locais. Antigas proteções tarifárias foram abolidas e, com isso, as multinacionais instaladas em solo brasileiro passaram a importar maciçamente produtos acabados, ou, na melhor das hipóteses, trazer os insumos estratégicos de suas matrizes no exterior, deixando às unidades locais apenas componentes e processos de menor valor agregado.
Ao longo dos anos 1990, a ABIFINA se dedicou à luta incessante pela preservação do infante complexo industrial da química fina, estruturado na década anterior ainda sob a vigência da política nacional de substituição de importações. Em 1991, quando o Congresso Nacional instalou uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar as causas e dimensões do atraso tecnológico na indústria brasileira, a ABIFINA denunciou que a queda da produção industrial, em particular no setor químico, resultava principalmente da abertura comercial indiscriminada.
A desindexação da economia, empreendida para conter a inflação galopante dos primeiros anos da década de 1990, contribuiu para acelerar o movimento desindustrializante, ocasionando a quebra de muitas indústrias. Isto porque a moeda brasileira foi mantida em paridade com o dólar, engrossando ainda mais o fluxo importador desatado pela abertura comercial. Como resultado, nossa balança comercial se deteriorou exponencialmente. No setor químico, cresceram de forma assustadora as importações de medicamentos, fármacos e defensivos agrícolas, em detrimento da produção nacional.
Resistindo ao desmonte
A segunda década da história da ABIFINA – de 1996 a 2006 – foi marcada, em sua primeira metade, pela aniquilação do que restava de proteção ao desenvolvimento industrial no País; e na segunda metade, já sob o primeiro governo Lula, pela instauração de uma visão desenvolvimentista renovada e pela revalorização dos clássicos instrumentos de política industrial.
A ABIFINA lutou pela instituição de tarifas de importação que crescessem proporcionalmente à agregação de valor do produto fabricado no Brasil, como permite a OMC. No entanto, o Brasil se tornou um dos países que realizaram maiores concessões – inclusive desnecessárias – no seu comércio externo, como a não utilização do “período de graça” aproveitado integralmente pelos emergentes asiáticos, que previa até 15 anos de proteção para as indústrias locais se adaptarem às regras do acordo GATT.
Outra concessão combatida pela ABIFINA foi a Emenda Constitucional nº 6, que revogou a definição de empresa nacional e estendeu o tratamento preferencial constante do artigo 170 “às empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”. As mudanças ocorridas em função dessa Emenda anularam a possibilidade de o Estado brasileiro adotar políticas de proteção às empresas de capital nacional, a exemplo do que fizeram e continuam fazendo todos os países relevantes no comércio global. Para se adequar à nova realidade, a ABIFINA alterou seu estatuto, que até então restringia a atuação da entidade à defesa das “empresas nacionais”, e passou a contemplar, de forma mais abrangente, “empresas com fabricação local”.
O dito popular “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” expressa com perfeição a moral perversa que orienta esse tipo de política. Pois, contraditoriamente, um dos que adotaram políticas protecionistas mais claras e abrangentes durante seu período de industrialização foram os Estados Unidos, berço do neoliberalismo econômico. O motivo é simples: a liberalização só interessa aos países ricos quando adotada pelo dito “parceiro”, sem reciprocidade. Convém às multinacionais manter seus núcleos estratégicos – centros de pesquisas e desenvolvimento tecnológico – nas respectivas nações de origem, investindo no exterior basicamente em unidades fabris e logísticas para atender ao mercado local e, no caso dos países menos desenvolvidos, também para se beneficiar da mão-de-obra mais barata.
Da mutilação à Constituição brasileira perpetrada pela Emenda nº 6, salvou-se o artigo 219, que também havia sido defendido pela ABIFINA durante a Constituinte. Ele determina que o mercado interno “integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País”. Um pequeno detalhe fez toda a diferença dez anos depois. O “mercado interno como bem da nação” se tornou um dispositivo determinante para a adoção do poder de compra do Estado como instrumento de estímulo ao desenvolvimento de empresas nacionais num setor socialmente estratégico: a indústria farmacêutica.
Concretamente, em meados da década de 1990 a resistência contra o desmantelamento da indústria e da tecnologia nacionais se concentrou nos embates que cercaram a formulação da Lei da Propriedade Industrial. A ABIFINA teve um papel decisivo nesse processo, especialmente ao lutar para que não se emparelhasse a lei brasileira com as leis internacionais. A entidade se manifestou, por exemplo, contra a não utilização dos prazos de transição concedidos pelo acordo TRIPs (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) para o reconhecimento de patentes na área farmacêutica. Países que utilizaram plenamente esses prazos, como a Índia, viabilizaram o desenvolvimento tecnológico local e construíram uma cadeia produtiva forte nesse segmento.
A estratégia de imposição dos interesses norte-americanos em patentes visava prioritariamente a América Latina, como evidenciaram as negociações da Alca. O embaixador Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores, comenta que “a firme posição da ABIFINA foi sempre um fator fundamental em favor de um sistema de propriedade intelectual que não desamparasse totalmente a indústria brasileira e em defesa de um sistema de patentes que não obstruísse nosso desenvolvimento, mesmo sob a ameaça de sanções unilaterais, como ocorreu notadamente em 1988 pelos países desenvolvidos”.
No acordo da Rodada Uruguai, recorda Amorim, “logramos, apesar da avassaladora pressão da ideologia neoliberal, preservar pelo menos alguma ambiguidade em relação à licença compulsória. Esta ambiguidade se revelou útil quando, anos mais tarde, os EUA intentaram uma ação – afinal abandonada – contra o Brasil por pretensas infrações às regras da OMC. Nessa época, entre 2000 e 2001, eu era embaixador em Genebra e acompanhei de perto a questão. Com a ajuda de outros diplomatas, inclusive o atual diretor-geral da OMC, Roberto Azevedo, encontramos, na legislação norte-americana sobre apoio governamental à pesquisa, disposições que potencialmente violariam acordos da OMC (TRIMs e TRIPs), o que, a meu ver, contribuiu para que Washington desistisse do pedido de painel”.
O médico sanitarista Eduardo de Azeredo Costa, que acumula ampla experiência em diversos órgãos públicos na área da Saúde, comenta os efeitos nefastos da Lei da Propriedade Industrial não só para a indústria nacional como para as políticas públicas de saúde: “Havia uma pressão muito forte dos Estados Unidos para que os países aderissem ao tratado internacional envolvendo o reconhecimento de patentes industriais ligadas principalmente à nutrição e à área da saúde. E a Lei de Patentes acabou sendo aprovada de uma forma muito prejudicial ao País, apesar da competente oposição feita pela ABIFINA. Claro que algumas de nossas críticas foram contempladas na lei. Por exemplo, argumentávamos que o direito de patente não podia se sobrepor ao direito à saúde – uma visão herdada dos debates na Assembleia Constituinte. Foi assim que incluíram na lei a possibilidade da licença compulsória, de maneira que a patente pudesse ser reconsiderada em caso de necessidade da saúde pública. Por outro lado, permaneceu na lei o mecanismo do pipeline, segundo o qual uma patente concedida no exterior seria automaticamente válida no Brasil, pelo período de um ano, se o titular requisitasse. No fim das contas, essa lei derrubou quase tudo que o País tinha. Conhecimentos que não podiam ser usados aqui por estarem sob patentes em outros países foram levados para a Índia, que desenvolveu grande parte da sua indústria farmacêutica com a nossa colaboração”.
Os anos 1990 se caracterizaram por abusivas concessões do poder público brasileiro em duas grandes áreas: a propriedade industrial e o acesso ao mercado interno. À época das negociações da Alca, Sandra Rios era chefe da unidade de negociações internacionais da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e participava ativamente desses debates. Ela conta que “havia uma preocupação em evitar compromissos de abertura do mercado de compras governamentais no Brasil para a concorrência estrangeira, e a ABIFINA sempre expressou suas posições de forma bastante firme em relação a essa questão. Era a entidade setorial brasileira com uma visão mais estruturada sobre a questão da propriedade intelectual”.
Pedro da Motta Veiga, consultor da CNI nessa mesma época, acrescenta que “a química fina era o setor – e não há muitos assim no Brasil – em que havia indústrias de capital nacional lutando para manter seu espaço e de certa maneira se opondo às transnacionais que estavam aqui no País, e que obviamente tinham mais interesse em defender a visão global das suas matrizes”. A estratégia maior nas compras governamentais, explica Vargas, “tinha a ver com a percepção de que os entes públicos são atores destacados no mercado brasileiro de medicamentos e esse era um instrumento relevante de política industrial, que poderia ficar prejudicado se, por força de um acordo no âmbito da Alca ou com a União Europeia, houvesse o compromisso de abrir o mercado para empresas estrangeiras em licitações nessa área”.
A ABIFINA participou intensamente dos debates que resultaram no resgate de políticas desenvolvimentistas após o desmonte da indústria na década de 1990. “Ao longo das inúmeras reuniões ocorridas em 2003 no âmbito do Fórum de Competitividade da Cadeia Farmacêutica, a ABIFINA sempre representou uma voz ativa, sonhando com uma indústria de química fina nacional e diversificada”, recorda Pedro Palmeira, ex-chefe do Departamento de Produtos para Saúde do BNDES. “Em situações em que as discussões em torno das alternativas de políticas para esse objetivo eram propositadamente distorcidas com argumentos ‘traiçoeiros’, a ABIFINA estava lá, sempre pronta a defender os interesses de uma base produtiva nacional forte e proporcional à grandeza de nosso País”.
A partir do Fórum, o BNDES formulou seu programa de apoio à cadeia farmacêutica, um dos quatro setores considerados estratégicos pela política industrial que estava em gestação, a PITCE. Palmeira acredita que parte do sucesso do Profarma tenha resultado da decisão do BNDES de ouvir ativamente os atores da indústria. “Assim, foi possível ao Banco, em abril de 2004, lançar um programa que até hoje permanece alinhado com os interesses do País e da indústria, induzindo ações e investimentos que, em conjunto com outros instrumentos da política industrial em curso, permitiram um renascimento da indústria farmacêutica nacional”.
Rumo à reindustrialização
A decisão governamental de reativar mecanismos de política industrial e tecnológica para dar sustentabilidade ao desenvolvimento econômico do País revelou-se, desde o início dos anos 2000, um caminho promissor, que contou com a entusiasmada adesão da ABIFINA. Luiz Antonio Elias ressalta que a ABIFINA contribuiu não só para a política de propriedade industrial como também para as políticas de ciência e tecnologia, como as do Plano de Ação para CT&I 2007-2010 e da Estratégia Nacional de Ciência e Tecnologia 2012-2015; e para as políticas industriais mais amplas abrangidas pelo Plano Brasil Maior, como a Política de Desenvolvimento Produtivo, em 2008, e a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), em 2003.
O avanço das políticas públicas brasileiras na área da saúde despertou reações entre os grandes detentores de patentes farmacêuticas. Em meados da década de 2000, diversas ações judiciais que buscavam extensões de validade de patentes obtiveram, no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, decisões desfavoráveis ao sistema nacional de saúde pública. De acordo com Mauro Maia, ex-chefe da Procuradoria Federal Especializada junto ao INPI e atual vice-presidente do Instituto, “por volta de 2005, a Procuradoria do INPI percebeu a necessidade de intervir nessas ações e passou a ter uma atitude proativa. Foi um trabalho árduo de desconstrução da jurisprudência que estava começando a se firmar em desfavor do INPI. Estávamos muito isolados e a Procuradoria, por mais que se dedicasse, sentia falta de uma força lateral que nos apoiasse nessas ações. A atuação da ABIFINA como amicus curiae nessas causas foi muito positiva e nos deu um suporte, robusteceu todos os argumentos. A partir daí, passou a prevalecer um entendimento contrário às extensões de patentes, conseguimos reverter o processo e consolidar uma jurisprudência afinada com o interesse público”.
A ABIFINA contribuiu muito, reitera Maia, por meio de argumentos sólidos “que permitiram a correção daquele cenário negativo do ponto de vista do interesse público, notadamente nas patentes relacionadas a produtos farmacêuticos. Com isso conseguimos manter a vigência que tinha sido definida pelo INPI, permitindo que esse conhecimento pudesse entrar em domínio público no limite do prazo de patente concedido, e a partir daí se instalasse um ambiente de livre concorrência. Isso repercute positivamente nos programas de saúde pública do governo federal, na medida em que possibilita maior acesso da população aos medicamentos e estimula a produção de genéricos”.
Mas havia obstáculos concretos e difíceis de superar na cadeia produtiva do setor farmacêutico nacional. Eduardo Costa, na época diretor do laboratório público Farmanguinhos/ Fiocruz, explica as dificuldades que cercavam a produção. “Toda empresa privada tem fornecedores fixos que produzem sempre no mesmo padrão. As licitações públicas eram um desastre, porque a cada ano recebíamos o produto especificado numa qualidade diferente e nossas máquinas não serviam para todos os tipos de insumo. Então adotei em Farmanguinhos uma modalidade de licitação para serviços de produção de IFA [Insumo Farmacêutico Ativo], em vez do tradicional pregão para compra de IFA. Para que o serviço de produção fosse eficiente, ele deveria ser prestado em território nacional, de forma que pudesse ser acompanhado durante todo o desenvolvimento. Assim, acompanhávamos a qualidade de toda a cadeia”.
Naquele momento, já estava em gestação o modelo das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP). Eduardo Costa comenta a motivação e o desafio inerente à integração de diversos agentes produtivos. “Por precaução, achei que era importante darmos um passo adiante e, em vez de escolher uma única empresa, compartilharmos a iniciativa através de um consórcio. Eu sempre brinco que obtivemos efeitos inesperados. Debocharam muito de nós porque, na primeira tentativa de fazer a aprovação na Anvisa, os testes de homogeneidade não deram certo, o que atrasou em uns três meses a pesquisa. Mas conseguimos e foi uma vitória fantástica”.
Como desdobramento desse processo, foi editada a Portaria Interministerial 128, que regulamentou e estendeu esse tipo de licitação aos demais laboratórios públicos; e mais adiante foi aprovada a inclusão do item das encomendas tecnológicas em toda a rede de licitações públicas. Costa esclarece que o modelo da PDP foi delineado com base nesse tripé: contratação do serviço de produção do IFA, encomenda tecnológica e efetivação do pagamento através da compra da produção para viabilizar a absorção de tecnologia.
Pode-se dizer que a indústria nacional de fármacos experimentou um renascimento naquele período. Ogari Pacheco sintetiza assim o enorme avanço conseguido entre 2007 e 2010: “visando à reversão do cenário de desindustrialização do País, o Ministério da Saúde incentivou os laboratórios oficiais a contratarem a fabricação local de fármacos. Com base na experiência de sucesso realizada por Farmanguinhos, contando com o apoio da ABIFINA na articulação das empresas nacionais e tendo como diretriz o modelo de parcerias público-privadas definido pelo Programa de Aceleração do Crescimento, o Ministério da Saúde implantou o sistema de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo no Complexo Industrial da Saúde”.
A ideia de criar o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis), para garantir eficiência de gestão à política de revitalização da indústria farmacêutica nacional, surgiu em conversas do ex-ministro José Temporão com sua equipe do Ministério da Saúde. “Percebemos que era fundamental um fórum em que todo o governo estivesse presente e o setor privado pudesse participar, para que todos os projetos de PDP e questões políticas pudessem ser debatidos democraticamente e com transparência, aperfeiçoando o processo”.
Ao assumir a pasta da Saúde, Temporão já trazia em sua bagagem acadêmica da Fiocruz a visão de que o fortalecimento da capacidade produtiva local era fundamental para garantir a sustentabilidade tecnológica e econômica do Sistema Único de Saúde (SUS). Era preciso “usar o poder de compra do Estado como eixo central dessa política, levando em consideração pelo menos três fatores de relevância epidemiológica: doença, custos e também o que chamamos de janela de oportunidades raras – o Brasil tinha acumulado algum tipo de capacidade no campo de produção e desenvolvimento”.
Na época, o antirretroviral Efavirenz era um medicamento importante e havia uma expectativa de ampliação do número de pacientes a serem tratados com essa droga. Temporão observa que “existia ali uma equação econômico-financeira complexa, na medida em que se estava tentando, sem sucesso, redução do preço com o laboratório produtor. Quando essa informação me foi trazida pela equipe técnica do programa de Aids, solicitei que se preparasse um documento colocando de forma clara todas as implicações dessa questão. Levei o documento para o presidente Lula, que me delegou a tarefa de resolver aquele assunto da maneira mais adequada do ponto de vista da saúde pública brasileira”.
“Temos aqui um ponto importante a lembrar”, pontua o ex-ministro. “O licenciamento compulsório para conseguir preços mais vantajosos vinha sendo insinuado em gestões anteriores, principalmente na do ex-ministro Serra, mas nunca se concretizava. O laboratório produtor do Efavirenz apostou nisso. Como não houve mudança na postura da empresa e o preço fixado ameaçava a sustentabilidade financeira do programa de Aids, tomamos a decisão de efetivar o licenciamento compulsório, com a concordância do presidente Lula. É claro que isso envolveu uma complexa operação. O Ministério criou um grupo de trabalho que envolveu a Controladoria-Geral da União, a Advocacia-Geral da União, Tribunal de Contas da União (TCU), vários Ministérios e o Itamaraty, que acompanhou os aspectos legais, institucionais, econômicos e políticos das relações internacionais. Foi uma decisão tomada de maneira muito segura”.
Verticalizar a produção para o Brasil conquistar algum grau de autossuficiência era também uma preocupação, por isso a farmoquímica nacional foi engajada como parceira desde o início. “Quando a Fiocruz passou a produzir o medicamento, todo o processo estava verticalizado e internalizado, desde o princípio ativo até a formulação final. Foi uma experiência inovadora, desafiadora e muito importante. A imprensa bateu muito, com ameaças do tipo ‘o governo está afastando os investidores’, ‘isso vai trazer insegurança’ – mas o que se viu foi exatamente o contrário. A partir daquele momento o mercado de medicamentos continuou crescendo, as parcerias se multiplicaram, o próprio fabricante do Efavirenz reviu a sua posição e hoje tem parcerias de desenvolvimento produtivo com o governo brasileiro”.
“A ABIFINA nos apoiou politicamente desde o primeiro momento”, frisa Temporão. “Esta é uma marca da entidade, que não se guia apenas pelo conjuntural, mas está sempre olhando para o estrutural, trabalhando por um Brasil independente, com economia forte, visando à diminuição das desigualdades e à ampliação do acesso às tecnologias”.
“Faz bem olhar para trás e perceber os avanços que nos trouxeram para uma realidade em que a indústria farmacêutica nacional passou a assumir a dianteira do mercado no Brasil e a fazer frente às multinacionais”, afirma Carlos Eduardo Sanchez, presidente do Conselho de Administração do grupo NC. “É extremamente gratificante comprovar a modernização de nossas leis, de nossas fábricas, de nossos processos, de nossas gestões, de nossas discussões, de nossa militância em nome da qualidade de vida da população”.
Sanchez afirma que a Abifina está onde se realizam os principais embates, e também onde se encontram as decisões e soluções mais acertadas. “O Complexo Industrial da Saúde e as PDPs, por exemplo, são algumas contribuições suas que merecem ser citadas pelo que representam em termos de revolução e evolução em um modelo de acesso mais amplo à saúde”.
“A ABIFINA observou a necessidade de reduzir a brecha tecnológica existente no mercado brasileiro e reforçar o desenvolvimento estimulando a pesquisa básica, o que foi decisivo para laboratórios públicos como Farmanguinhos e Butantã” Luiz Antonio Elias
Para Sandra Rios, a ABIFINA “teve a capacidade de defender bem seus pontos de vista e, de alguma maneira, plasmar esses pontos de vista nas políticas públicas brasileiras. Ela mostrou ter um poder de influência tanto na forma como a legislação evoluiu no Brasil como nas posições que o governo brasileiro assumiu nos fóruns internacionais que tratam de propriedade intelectual”.
Hoje, diante de mais uma crise econômica de grandes proporções, agravada pela crise política interna, o futuro da política industrial e tecnológica brasileira encontra-se, novamente, ameaçado. Fragilizado institucionalmente, o Brasil está exposto à sanha predadora das corporações globais ávidas pelo nosso mercado interno e nossos recursos naturais. Se saberemos ou não rechaçar essas ofensivas e proteger as tímidas conquistas dos anos recentes, ainda é uma incógnita. A única certeza que podemos cultivar, neste momento difícil, é que a luta continua.