É indiscutível que as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) representaram um avanço significativo no caminho da utilização do poder de compra do Estado para fomentar o desenvolvimento nacional, em particular, mas não apenas, da área farmacêutica.
Na opinião mais recorrente, esse foi o único setor em que a política industrial foi efetiva nos últimos anos. A principal razão parece ter sido a ação coordenada e diretiva com recursos para desembolso, tanto do Ministério da Saúde – com o orçamento do Procis para melhorar a infraestrutura dos laboratórios oficiais –, como da Finep e do BNDES – para os setores privado e público.
Uma descontinuidade no que deveria ser um programa de investimentos do governo pode causar prejuízos irrecuperáveis à capacitação da estrutura produtiva nacional da área farmacêutica projetada para o curto e médio prazo.
Menos se tem falado sobre as PDPs, no entanto, como portadoras de benefícios diretos à saúde e, no seu conjunto, quanto ao efeito que têm sobre o modelo de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS). Há evidências, por exemplo, de retrocesso, se não absoluto, mas relativo, na questão da área produtiva de vacinas, que não devem ser privadas, na nossa opinião, pelo próprio histórico de sucesso do Programa Nacional de Imunizações (PNI) no Brasil.
No que diz respeito à inovação, há efeitos que merecem maior reflexão. O objetivo de dar maior robustez ao parque produtivo na área de biofármacos tem induzido a uma certa permissibilidade na área de incorporação tecnológica, levando ao idealismo de uma independência de decisões sobre consensos terapêuticos que se baseariam apenas em critérios “técnico-científicos”. Há, todavia, a expectativa de se poder promover inovações incrementais.
Vale lembrar aqui que as PDPs, em resumo, foram criadas para responder, pelo menos, a três desafios do sistema de compras para o SUS. O primeiro é a questão de eficiência e qualidade dos produtos adquiridos dos laboratórios oficiais que abasteciam governos estaduais e federal. O segundo, assegurar o abastecimento regular de produtos estratégicos. E o terceiro, obter preços vantajosos para aquisição pelo SUS.
Ora, ao trabalhar nessa direção, conta o Ministério da Saúde com seu poder de compra, o qual é colocado a serviço do desenvolvimento econômico do País, em particular do desenvolvimento industrial autônomo. Abre também oportunidade para a inovação tecnológica em serviços e produtos de saúde.
A gestão dessas atividades e sua avaliação é complexa, recebendo a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde como um todo a tarefa de secretaria-executiva, apoiando-se no Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis). Do ponto de vista governamental – federal –, outros dois ministérios compõem seu núcleo diretivo: o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (Mdic). Apesar disso, rege-se a sua atividade interministerial com portarias do Ministério da Saúde, num reconhecimento de seu protagonismo na construção dessa política econômico-social.
O fato é que, talvez por isso, essa política industrial não tem encontrado espaços amplificados de coerência dentro desses ministérios que têm função diretiva. Absolutamente contrária aos objetivos dela, tem estado a política fiscal, inclusive no que concerne a importações, por exemplo.
De outro lado, não se encontrou ainda uma resposta adequada no campo da inovação, já que o instrumento das compras públicas e a própria segurança necessária para lidar com a saúde em termos de massa devem priorizar os produtos que já tenham passado pela fase de pós-comercialização, gerados, via de regra, em outros países. Assim, restaria a inovação em processos ou insumos visando a dar maior competitividade à produção nacional. Porém, a transitória reserva de mercado faz essa competitividade ser projetada para o futuro, ainda que seja urgente para ajustar a saída das PDPs. A inovação em produtos tenderia a se dirigir para meios diagnósticos ou em fisioterápicos.
A ampla aceitação das PDPs, no entanto, pela racionalidade do seu modelo, levou a desvios na sua concretização, frutos de questões políticas, de mercado e regulatórias.
Por esse quadro, e também por jogo de interesses de atores, precisaram e precisam ser ser aperfeiçoadas.
Os laboratórios oficiais são muito importantes e, para além de sua estrutura e mesmo da configuração legal – há autarquias, fundações, empresas públicas, S.A. – e da ampla diversidade organizacional, carecem de capacidade completa de se autogerir sem apoio federal. Os governos estaduais veem nas PDPs a possibilidade de que se tornem sustentáveis, especialmente na crise de hoje, mas esse objetivo não consegue ser alcançado.
Com a crise de 2013/14 envolvendo um projeto de PDP específico, houve um verdadeiro freio de arrumação, que obteve como resposta não a sua melhor adequação aos objetivos, mas exclusivamente a “segurança jurídica” dos gestores, com uma “tecnificação” de processos através de portaria do Ministro da Saúde. As propostas de PDPs precisam de avaliação de política setorial e não há espaço para tanto na portaria.
Apesar de muitas manifestações afirmativas com respeito a ela como “marco regulatório” das PDPs, não o é. Ela regula um instrumento de política, o ambiente de contrato, mas não o norteia; fala em avaliação, mas não a propõe. Em última análise, a direção técnica se repousa em designações institucionais sem justificativas e em servidores em sua maioria provisórios.
Mais que tudo isso, ela não pode regular o governo, nem mesmo o federal, já que é um instrumento infralegal. Assim, não é capaz de regular licitações, ou processo legal, podendo facilitar a judicialização de processos que se pretendem administrativos.
A instabilidade política no seio das PDPs de 2013/14 não foi favorecida pela portaria. Ao contrário, em particular a decisão de “adequar” as PDPs ao novo “marco regulatório”, de resto equivocada, pois, retroativa, provocou uma salva de recursos que expuseram ainda mais as falhas já visíveis, mostrando fragmentação de decisões, riscos por conflitos de interesses institucionais e riscos a investimentos públicos e privados já realizados.
Os laboratórios oficiais dependem de legislação estadual, enquanto o objetivo das PDPs é nacional. No entanto, com a nova portaria, esses laboratórios devem sair por conta própria a procurar parceiros privados dentro e fora do País para submeter ao governo federal, quase como em uma licitação. Ora, como instrumento de política, essa ação federal não pode ser passiva, mas proativa, contribuindo para a efetividade da política. É surpreendente a falta de um projeto de orientação e capacitação desses laboratórios para firmar os contratos com seus parceiros estrangeiros.
Todas as afirmações que fazemos têm pelo menos um caso a exemplificar, o que não cabe neste artigo. De genérico, o que se colhe, é que as PDPs podem se transformar em prolongamento de patentes, que fecham preços sem negociações específicas para cada caso. Que as estimativas de redução de preços são projetadas sem acompanhar as modificações de mercado.
Tudo isso é passível de estudo e de avaliação, bem como de correção cuidadosa. As PDPs não podem ser assunto dentro de um departamento da SCTIE, mas sim de toda a Secretaria, para que as incorporações ao SUS sejam articuladas e já negociadas, para que os incentivos às inovações sejam também articulados e programados e, assim, financiados oportunamente.
A crise sanitária protagonizada pela introdução dos vírus chikungunya e zika mostrou que, no ambiente da portaria que rege as PDPs, não seria possível usufruir com presteza as possibilidades que poderiam dar, tanto no campo da inovação como do desenvolvimento produtivo, para contribuir para a gestão da crise. Uma portaria dirigida às emergências sanitárias foi elaborada e encaminhada ao Conjur, mas não foi assinada pelo ministro, que se afastou.
O desafio central da gestão das PDPs – que foi absorver no campo da gestão da saúde, com sucesso, um programa com viés que o identifica com um empreendimento econômico-financeiro com riscos associados à vulnerabilidade decisória, por isso necessariamente dependente de decisões colegiadas, mas com ação executiva proativa – não pode agora ser burocratizado. Assim, é preciso avançar, não retroceder. A possibilidade de utilizar uma consultoria externa qualificada deve estar no horizonte da mudança necessária.
De resto, se fosse perguntado o que foi possível fazer nos cinco meses pelos quais dirigimos a SCTIE, diríamos que nem mesmo opinar num processo sobre um recurso pode o secretário da SCTIE: não há possibilidade de correção sem uma mudança importante na portaria que rege as PDPs.
Para avançar mesmo, dando estabilidade à política das PDPs, precisamos que o “marco regulatório” seja um decreto presidencial cuja estrutura chegamos a delinear, redesenhando também o organograma interno da SCTIE e revalorizando o papel decisório do Gecis. Essa iniciativa já tinha sido por nós proposta à Sub-Secretaria de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, sendo aceita. Os acontecimentos políticos maiores que nos levaram a acompanhar a saída temporária do governo Dilma a estagnaram. As entidades interessadas, como a ABIFINA, deveriam estudá-la.
“Vale lembrar aqui que as PDPs, em resumo, foram criadas para responder, pelo menos, a três desafios do sistema de compras para o SUS. O primeiro é a questão de eficiência e qualidade dos produtos adquiridos dos laboratórios oficiais que abasteciam governos estaduais e federal. O segundo, assegurar o abastecimento regular de produtos estratégicos. E o terceiro, obter preços van tajosos para aquisição pelo SUS”
Ainda que possa parecer paradoxal, é provável, no entanto, que a portaria vigente seja modificada pelo atual ministro, que parece ter mais disposição para tanto do que seu antecessor, já que liderava uma frente parlamentar de apoio aos laboratórios oficiais, sobre os quais repousa, de fato, a operacionalidade do modelo brasileiro de utilização do poder de compra do Estado para a importação de tecnologias produtivas.