REVISTA FACTO
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Abr-Jun 2016 • ANO X • ISSN 2623-1177
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//Artigo

Comemorações

Alguns eventos foram organizados para comemorar os 20 anos de vigência da Lei no 9.279, que regula direitos de propriedade intelectual no Brasil, promulgada em 14 de maio de 1996.

Curiosa comemoração. Aos menos avisados, poderia parecer que o júbilo cívico teria sua justificativa por ter essa lei inaugurado no Brasil a era do reconhecimento de direitos relativos à propriedade intelectual. Erro crasso: o Brasil, por força de um Alvará de D. João VI emitido pouco tempo após sua chegada ao Brasil, mais precisamente em 28 de abril de 1809, passou a reconhecer direitos de proteção às invenções antes mesmo de ser um Estado independente. Note-se: o reconhecimento de tais direitos era, pelos ditames do Alvará real, aplicável apenas ao território da colônia, isto é, exclusivo ao então Estado do Brasil.

A Constituição imperial de 1824 acolheu o princípio. A legislação infraconstitucional, ao longo de todo o Império, o respeitou seguindo práticas não muito diversas, diga-se, das que então se utilizavam universalmente. Mais: o Brasil foi signatário de primeira hora da Convenção da União de Paris (CUP), de 1883, o primeiro tratado internacional que homogeneizou certos conceitos e condições relativos à concessão de direitos de propriedade industrial, em vigor ainda hoje. É significativo notar que a adesão do Brasil à CUP não exigiu adaptações na nossa lei, que se mostrava atualizada em relação às condições da época, exceto quanto à proteção das marcas.

As Constituições republicanas de 1934, 1937, 1948, 1967 e 1988 mantiveram o princípio da proteção aos direitos dos inventores. A legislação infraconstitucional, a partir de 1945, passou a ser regulada por Códigos promulgados por via de Decretos-leis em 1945, 1967 e 1969. O Código de 1971, já na vigência da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), foi discutido e aprovado pelo Congresso Nacional e vigorou até o advento da Lei no 9.279, objeto das aludidas comemorações.

A gestação da Lei no 9.279 se deu, é bom lembrar, no âmbito das discussões sobre comércio internacional realizadas na Rodada Uruguai do GATT, que se estenderam de 1986 até 1994. Um dos resultados das discussões foi a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), no âmbito da qual foi feita a adoção de um tratado internacional regulando as condições mínimas de proteção à propriedade intelectual que a legislação dos Estados Membros deveria atender, o conhecido acordo TRIPs.

O sentido geral de TRIPs foi o de uniformizar os direitos a serem concedidos, em todas as áreas do conhecimento, fosse qual fosse o grau de desenvolvimento dos países membros. Isso gerou um movimento de repulsa por parte dos países mais atrasados, liderados inicialmente por Índia e Brasil, que viam nesse princípio não apenas um obstáculo ao seu desenvolvimento, mas também um entrave poderoso às suas necessidades de prover meios razoáveis de sobrevivência aos seus nacionais, especialmente nas áreas de saúde e alimentação. Ao final dos anos 80, o Brasil estava imerso numa grave crise cambial, com fortes desajustes em suas contas externas (sempre elas), e não foi capaz de resistir às fortes pressões exercidas pelos países desenvolvidos liderados pelos EUA, e foi obrigado a ceder acatando as disposições de TRIPs. Estas seriam internalizadas no ordenamento jurídico brasileiro, em 1996, através da Lei no 9.279.

Se a gestação da Lei no 9.279 no âmbito de TRIPs foi conflituosa, com seus contornos definidos sob fortes pressões, o parto no Congresso Nacional não o foi menos.

Mesmo antes do término das negociações da Rodada Uruguai, o governo brasileiro, sob a presidência de Fernando Collor, resolveu adotar várias iniciativas destinadas à liberalização do comércio internacional do Brasil, reduzindo drasticamente as proteções existentes para os produtores nacionais. No bojo dessas reformas, foi enviado ao Congresso Nacional um projeto de lei modificando o Código de Propriedade Industrial em vigor, no qual se inseriam dispositivos constantes do Acordo TRIPs, ainda não finalizado, especialmente a previsão de concessão de patentes para produtos químicos e farmacêuticos, vedada pelo Código de 1971. O texto do projeto foi elaborado por uma Comissão criada pela Portaria Interministerial no 346, de julho de 1990, e enviado ao Congresso em 2 de maio de 1991.

A concessão de patentes para produtos químicos e farmacêuticos e a extensão do prazo de vigência das patentes para 20 anos estavam entre as principais demandas dos industriais de países desenvolvidos que atuaram como grupos de pressão nas negociações de criação da OMC e do acordo TRIPs. A Lei no 9.279 acolheu ambas as medidas, que certamente fazem parte das razões pelas quais se celebram comemorações pelos 20 anos da vigência da lei.

O projeto Collor viria a se somar a dois outros, apresentados previamente, e que continham alguns dispositivos que protegiam os países menos desenvolvidos, criando um prazo de carência para a internalização de TRIPs em suas legislações nacionais. Curiosamente, esse dispositivo inserido no projeto apresentado pelo deputado Luiz Henrique, e muito criticado nas discussões no Congresso Nacional, foi a solução encontrada pela OMC para reduzir divergências no âmbito de suas discussões e que veio a constar do texto final do acordo TRIPs.

As discussões sobre a nova Lei da Propriedade Industrial no Congresso Nacional se estenderam de 1991 até 1996. O projeto Collor, apresentado em 1991 em regime de urgência, evitou sua caracterização legal como código, embora o fosse, como todas as leis de 1945, 1967,1969 e 1971 que o antecederam. Ocorre que, regimentalmente, projetos apresentados como código não podem tramitar em regime de urgência, daí o subterfúgio de apresentá-lo como lei. Isso deu origem a um embate regimental que se estendeu por meses e que inaugurou o longo período de marchas e contramarchas no Congresso, plenas de práticas nada republicanas, com a inclusão de vários “jabutis” no texto final e a adoção de dispositivos que iam muito além do requerido por TRIPs. Na sua inteireza, a lei como parida não tinha o condão de beneficiar equilibradamente o processo de desenvolvimento brasileiro, mas certamente atingia o objetivo de beneficiar alguns setores da indústria, especialmente as filiais de indústrias estrangeiras aqui instaladas.

Marco Aurélio, o imperador romano e não nosso preclaro magistrado, dizia que “a lei não basta para melhorar os homens”, e a Lei no 9.279, com todos os seus inconvenientes, não é por si só a causa única da situação precária em que se encontra o sistema de PI no Brasil. A lei deve ser interpretada, regulamentada e aplicada, e isso não é tarefa trivial quando se trata de propriedade intelectual, muito em função do caráter subjetivo de alguns dos princípios básicos em que a lei se fundamenta para conceder o privilégio do monopólio temporário, e também pela necessidade de definir áreas de não patentabilidade.

Não é justo atribuir pecados apenas ao Congresso. O Executivo, responsável pela ordenação e administração do sistema de PI, do qual a lei é apenas uma parte, falhou sucessiva e lamentavelmente ao não dedicar a devida atenção ao sistema como um todo. Como o País não reconhecia patentes sobre produtos químicos e farmacêuticos, o corpo técnico do INPI não tinha experiência no exame dos pedidos dessas áreas, e deveria ter sido treinado adequadamente em seus detalhes técnicos. Não o foi. Como havia uma expectativa mundial na indústria de que o Brasil iria conceder patentes para químicos e farmacêuticos, era de se prever que, sancionada a lei, um grande fluxo de pedidos começasse a chegar ao INPI, que deveria ser reforçado numericamente e atualizado administrativamente para atender à demanda crescente. Não o foi. Os diversos “jabutis”, e até inconstitucionalidades, inseridos a toque de caixa no texto final da lei resultaram numa intensa judicialização dos atos praticados pelo INPI. A Justiça tardou a se equipar para julgar as demandas e reduzir a insegurança jurídica que ainda hoje resulta da interpretação de vários dispositivos da lei.

Leis e regulamentos sobre direitos de propriedade intelectual não podem ser estáticos porque a ciência e a tecnologia, que são o objeto de sua aplicação, não o são, assim como também não o é a condição da sociedade dentro da qual os direitos devem ser regulados e concedidos. Ainda há muito que fazer para que tenhamos no Brasil um sistema de concessão de direitos de PI mais justo e adequado ao nosso grau de desenvolvimento e às nossas necessidades econômicas e sociais.

Tudo pesado, o que se está comemorando afinal?

Marcos Oliveira
Marcos Oliveira
Membro do Conselho Consultivo da ABIFINA.
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