REVISTA FACTO
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Out-Dez 2015 • ANO IX • ISSN 2623-1177
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//Matéria Política

CAMINHOS PARA SUPERAR A CRISE

A recessão que atinge uma parcela expressiva da economia mundial instalou-se finalmente no Brasil, agravada por um severo desequilíbrio fiscal e por um impasse político que ameaça paralisar o País. Crise econômica e crise política se entrelaçam, criando um círculo vicioso de instabilidade. Como desarmá-lo? Para compreender as raízes dessa dupla crise e vislumbrar caminhos para a recuperação, FACTO ouviu diversos economistas que são também professores, portanto comprometidos com o exercício do pensamento crítico. Salvo algumas divergências pontuais, todos os entrevistados, incluindo também empresários, estão de acordo quanto à estratégia capaz de tirar o País da crise: realizar reformas estruturais para atacar as causas do desequilíbrio fiscal, administrar juros, câmbio e política tributária de forma a favorecer a retomada do desenvolvimento industrial. A adoção dessa estratégia depende, no entanto, de um pacto político entre os poderes Executivo e Legislativo.

Segundo o professor Antonio Delfim Netto, numa perspectiva de curto prazo, a situação atual da economia brasileira é “muito delicada, porque, em 2014, o governo descuidou da parte fiscal. E não foi um descuido equivocado, foi um descuido bem intencionado para se ganhar a eleição, de forma que não ocorreu nenhum acidente e não há nenhuma deficiência no DNA da economia brasileira”. Ele faz questão de frisar que “Dilma é absolutamente honesta em suas propostas. Ela tem um objetivo louvável, que é procurar o tempo todo reduções tarifárias. Porém, com essas virtudes ela produziu uma grande dificuldade, que é a negação do sistema de preços, ou seja, da organização da economia através do mercado, e isso terminou de maneira trágica”.

Se fizermos uma retrospectiva de 2013, explica Delfim, “estávamos no meio de uma recessão produzida no começo de 2012, com a intervenção no setor elétrico, seguida de uma redução voluntarista dos juros e do lançamento do programa de concessões em infraestrutura”. Em dezembro de 2013, a dívida ainda mantinha a constância dos últimos dez anos – 5,3% do PIB – com inflação em 6% naquele ano, embora o crescimento estivesse baixo. Nos últimos 12 meses é que se produziu o desastre: “o déficit nominal subiu para 6% em relação ao PIB, com crescimento zero. Já se via a aproximação da recessão, e pela Lei de Responsabilidade Fiscal era obrigatório corrigir as despesas, mas fingiu-se que nada estava ocorrendo e os gastos públicos continuaram altos, terminando-se o ano muito mal. O pecado capital é que, com essa intervenção, o governo fez emergir aquilo que estava escondido, que é o desequilíbrio fiscal estrutural. Este não adianta tentar corrigir com medidas de curto prazo”.

Mas até que ponto a nossa crise decorre da crise mundial? Na avaliação do professor Alberto Borges Matias (Finanças, USP), foi um efeito secundário da crise internacional que impactou mais fortemente o Brasil. “A crise de 2008 decorreu de um equívoco na política econômica norte-americana, a partir de fortes flutuações da Fed Fund Rate. O Brasil não foi atingido diretamente por perdas nos investimentos, mas sim pela retração do financiamento internacional”.

O economista e consultor Mauro Arruda entende que a crise econômica internacional, embora seja uma das causas da crise brasileira, não é o principal fator. “Ressaltaria que a crise de 2008, ao ter atingido o desempenho da maioria dos países desenvolvidos até agora, influiu numa crise inesperada da China. Não que esse país tenha perdido dinamismo, já que os números desmentem, mas a diminuição da demanda da China por commodities realmente afetou o Brasil. Eu diria que a crise que se desenhou no Brasil foi caracterizada muito mais por uma exacerbação política, a partir de 2012, tendo em vista as eleições de 2014, que aos poucos foi desestabilizando o País. A isto eu acrescentaria os erros na política fiscal em 2014, justamente no ano das eleições presidenciais. A explosão das denúncias relacionadas com a Operação Lava Jato foi como lenha na fogueira. Na realidade, instalou-se uma instabilidade que, após os primeiros meses de 2014, já permitia prever uma caminhada do País para a recessão”.

Para o professor David Kupfer (Indústria e Competitividade, UFRJ), a crise brasileira se explica mais pelo excesso de otimismo que caracterizou nossa reação do que propriamente pela crise mundial. “No final do quarto trimestre de 2008 e em 2009, o Brasil foi um dos países que tombaram em função da crise mundial. O que diferenciou nosso País foi a saída em ‘V’ da crise, ou seja, uma aparente recuperação com grande velocidade. Isso trouxe uma sensação de que havíamos ultrapassado todos os desafios. Em 2010, entendeu-se que tínhamos superado totalmente a crise, e este foi o principal erro de política econômica – um erro de previsão, mas que também é um erro típico do jogo do contente, movido pelo desejo de estar fora da crise. A partir de um diagnóstico equivocado, desenhou-se uma política econômica como se tivéssemos a capacidade de promover medidas anticíclicas intermináveis, o que gerou todos os desajustes atuais. Tivemos um aprofundamento da crise brasileira a partir de 2014, e agora em 2015 uma recessão de proporções quase inéditas – é raro na história brasileira o PIB cair 3,5% ou mais, como se espera que vai acontecer este ano. O quadro atual tem a ver com a forma como saímos da primeira pancada da crise econômica mundial em 2010”.

INFLAÇÃO E JUROS: UMA LIGAÇÃO DUVIDOSA

Num cenário que conjuga recessão com uma inflação não provocada por aquecimento da demanda, a manutenção da taxa básica de juros da economia em níveis elevados é uma atitude que gera controvérsias.

Segundo Delfim Netto, a taxa de juros perdeu uma parte de sua eficiência como instrumento de controle inflacionário. “No mundo inteiro, economistas começaram a desconfiar que a relação entre as variações de emprego e de inflação são um pouco mais complicadas do que pareciam. O próprio Banco Central, que tem um corpo de profissionais muito competentes e um modelo muito bom para gerar equilíbrio, está fazendo mudanças, porque há uma dúvida acerca das relações entre inflação e nível de atividade. A ligação não é tão nítida. Por outro lado, no caso da taxa de juros brasileira é preciso pensar com muito cuidado, mesmo considerando que a Selic provavelmente não controla a inflação. A ideia do Banco Central de não alterá-la, enquanto se faz um grande esforço fiscal, é uma atitude correta. O Brasil sempre teve uma taxa de juros muito alta, mas não se deve corrigir isso agora, para não misturar os problemas. Agora é prioritário corrigir a expectativa do desastre fiscal que está atribuído aos dispositivos da corrupção”.

David Kupfer considera uma novidade em relação a ciclos inflacionários anteriores no Brasil o fato de os juros terem perdido a capacidade de combater a inflação, “não somente pela inadequação do instrumento às reais origens da inflação como também pela diminuição do efeito colateral sobre a taxa de câmbio que a elevação dos juros costumava exercer e que, no novo quadro estrutural da economia, tende a não exercer mais”.

Os demais entrevistados são enfáticos na crítica à manutenção da Selic elevada. “Primeiro porque a inflação de 2015 é tópica, decorrente da correção de preços administrados e da desvalorização do Real”, esclarece o professor da PUC-SP, Antonio Corrêa de Lacerda. “Portanto não é uma inflação de demanda, que justificaria uma elevação de juros, mas sim uma inflação de custos. Todas as projeções, inclusive as do mercado financeiro, indicam uma inflação entre 6 e7% para 2016. Isso aponta para um juro real da ordem de 7% aa, em contraste com juros reais abaixo de zero em muitos países”.

Nessa mesma linha, o professor da FGV Luiz Carlos Bresser- -Pereira salienta que a alta da inflação “neste último ano em nenhum momento foi consequência de excesso de demanda. Infelizmente, não temos uma demanda sustentada desde 2010. O aumento da inflação foi causado principalmente pela desvalorização cambial forte e pelo aumento de preços que foram administrados equivocadamente nos anos recentes. Nestas condições, a manutenção da Selic no nível atual simplesmente não faz sentido”.

“SEM PLANEJAMENTO NÃO É POSSÍVEL GERIR UM PAÍS. ABANDONAMOS TUDO. A COMEÇAR PELO NOSSO ORÇAMENTO, QUE É UMA PORCARIA E NÃO TEM NADA A VER COM A REALIDADE BRASILEIRA”
DELFIM NETTO

Num olhar retrospectivo, David Kupfer afirma que a inflação brasileira tem causas múltiplas e, “se fôssemos escolher o fator principal predominante ao longo do tempo, não seria a demanda. Não é só uma questão de que no atual período o impulso vem menos da demanda e mais do relaxamento na administração de preços. Em vários momentos foi assim. Mas, de todo jeito, a receita à qual o Brasil se habituou envolve o aumento de juros, que, no passado, atuava sobre a inflação principalmente pelo canal de transmissão da taxa de câmbio”.

Para Alberto Matias, a elevação da taxa básica de juros da economia brasileira não se justifica pela razoabilidade econômica, “constituindo-se somente numa forma de transferência de recursos do Tesouro Nacional para o sistema financeiro e seus investidores, e dificultando a viabilização de projetos de investimento, essência do desenvolvimento nacional”. Em 2015, o custo da rolagem da dívida pública – ou o “assalto pacífico dos capitalistas rentistas aos cofres públicos”, nas palavras de Bresser-Pereira – deve ultrapassar 8% do PIB, consumindo mais de R$ 500 bilhões. Isto representa muito mais que as despesas com saúde, educação e Bolsa Família somadas. “O maior gasto do governo federal é o financeiro, em razão da elevada taxa de juros básica praticada no País”, sublinha Matias. “É a maior taxa de juros do mundo. Pagamos em valor mais do que os Estados Unidos. E pagamos com emissão de nova dívida e com aumento da tributação. É absurdo. Assim, se o País quer voltar a crescer, reduzindo a tributação e a inflação, é absolutamente necessário reduzir a taxa básica de juros”.

Efeito fiscal desastroso, investimentos inviabilizados. Mauro Arruda estima que, se a taxa básica de juros fosse reduzida em dois pontos percentuais, daria para cobrir grande parte do buraco fiscal sem nenhum impacto na inflação atual. Por que, então, não baixar a Selic para níveis civilizados? – eis a pergunta que não quer calar. Corrêa de Lacerda responde que, de fato, é preciso baixar os juros, mas para que esse processo seja bem-sucedido e sustentável “é preciso mudar algumas diretrizes econômicas – por exemplo, revendo o regime de metas de inflação, desindexando a economia, mudando a estrutura dos títulos da dívida pública -, como também transformar aspectos culturais. Tornamo-nos uma sociedade de rentistas. Mesmo aqueles que não são rentistas pensam e agem como tal, o que cria uma resistência à redução dos juros”.

Arruda enfatiza que a mera redução da Selic não resolve e que há mudanças estruturais a fazer. “Existem erros que se acumulam há anos e precisam ser corrigidos também. Um deles é a política tributária que, no Brasil, aumenta a desigualdade. Além disso, as políticas fiscal e monetária estão sendo administradas como se fossem independentes. É como se uma nada tivesse a ver com a outra. A fiscal é conduzida pelo Ministério da Fazenda e a monetária pelo Banco Central. Tem gente que defende uma subida ainda maior da taxa Selic. Alguns acham que ela deve chegar a 14% o mais rapidamente possível. Depois, pedirão para subir para 16%. Por que não? E se a taxa de juros nos EUA subir, o que deve ocorrer em dezembro, o argumento será de que, se a Selic não subir, haverá uma fuga enorme de recursos do País. É patético”.

O consultor Mauro Arruda chama atenção para o alto grau de interferência do mercado financeiro nas decisões de política monetária. “O Banco Central tem um sistema de consulta ao mercado que deveria ser revisto. A Focus é a opinião do mercado financeiro que, em paralelo, pressiona, pela mídia, com artigos de economistas a ele ligados, para que as suas previsões se realizem. E se realizam. E quando o Banco Central toma uma posição mais independente – não subir a Selic – é duramente criticado. Não por acaso, temos a maior taxa básica de juros do mundo. E a sapiência é tanta que basta qualquer subida na inflação, não importa se é de demanda ou não, que ‘especialistas’, saem, até na frente dos economistas, dizendo que a Selic precisa subir. De tanto verem isso se repetir, jogam com a certeza de que, se errarem, não perderão credibilidade. Afinal, a Focus também erra, e muito”.

Por outro lado, Arruda faz questão de lembrar que “a enorme queda na taxa de investimentos não tem a ver, apenas, com o nível da Selic, embora seja inegável a sua interferência. A crise política cria uma enorme incerteza para qualquer investidor. Por conta disso, o que se vê é uma taxa de investimento muito abaixo da taxa mínima de reposição de capital.

“EU DIRIA QUE A CRISE QUE SE DESENHOU NO BRASIL FOI CARACTERIZADA MUITO MAIS POR UMA EXACERBAÇÃO POLÍTICA, A PARTIR DE 2012, TENDO EM VISTA AS ELEIÇÕES DE 2014, QUE AOS POUCOS FOI DESESTABILIZANDO O PAÍS. A ISTO EU ACRESCENTARIA OS ERROS NA POLÍTICA FISCAL EM 2014, JUSTAMENTE NO ANO DAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS. A EXPLOSÃO DAS DENÚNCIAS RELACIONADAS COM A OPERAÇÃO LAVA A JATO FOI COMO LENHA NA FOGUEIRA”
MAURO ARRUDA

E também não se pode negar que, além da indexação e dos preços administrados, pesa na inflação a alta dos preços dos serviços, que, embora inferior à taxa de inflação, dado o seu peso no IPCA influencia esse índice. Mas, com a recessão e suas consequências – o desemprego e a queda na renda – haverá um tombo enorme nos preços dos serviços ainda no início de 2016. Isto deverá ocorrer com os preços em geral, considerando que os administrados, represados por uma visão econômica e política errada, foram, praticamente, corrigidos este ano”.

David Kupfer chama atenção para o fato de a gestão fiscal brasileira ser extremamente vulnerável ao ciclo econômico. “Nos momentos de retração, a solução sempre envolve alguma forma de ampliação da carga tributária, porque as despesas são de fato muito inelásticas no Brasil e as receitas são cíclicas. Quando a economia entra na fase baixa do ciclo, as despesas se tornam excessivas. No passado, mal ou bem, a solução implementada sempre envolveu rodadas sucessivas de criação de novos impostos, de ampliação da carga tributária. Hoje há um entendimento de que essa carga atingiu um limite. O setor empresarial não aceita mais ampliação de carga tributária porque, à medida que ela cresce, as distorções também crescem e cobram um preço muito alto da atividade produtiva. Esta solução, portanto, na atual conjuntura é politicamente mais difícil de ser negociada. No meu ponto de vista, o compasso de espera em que estamos vivendo, e que vem consumindo o ano de 2015, é exatamente o tempo para que a sociedade se convença de que a única opção será a elevação de tributo, provavelmente por meio da CPMF. Há uma clara rejeição à CPMF, mas, à medida que o tempo passa, ela vai se tornando quase que uma solução inevitável”.

Na ótica da indústria, o reequilíbrio estrutural das contas públicas é o fator crucial para a superação da crise. Na visão do empresário Peter Andersen, presidente do grupo Centroflora, uma eventual redução da Selic seria insuficiente para reverter a recessão econômica. “Considerando a necessidade que o Brasil tem de atrair capital externo para financiar o déficit das suas contas, a taxa de juros real, já descontada a inflação, tem sido o nosso principal instrumento de atração. Recente estudo feito pelo portal Moneyou e Infinity Asset Management indica que o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking de taxa de juros real praticada em 40 países, com 7,43%. Nos EUA, a taxa é negativa em 2,4%. Desnecessário dizer que o custo financeiro gerado por esta prática é abissal”.

Andersen lembra que a máquina pública brasileira mantém 24 mil cargos comissionados, enquanto nos EUA esse número não passa de oito mil; e cita estimativas do Ministério do Planejamento que apontam déficits da Previdência de R$ 89 bilhões para 2015 e R$ 125 bilhões para 2016, além de um ranking recentemente divulgado pelo Banco Mundial sobre ambiente de negócios em 186 países, que situa o Brasil em 116º lugar. “No pagamento de tributos, o relatório posiciona o País na lanterna (178ª posição), estimando em 2.600 horas o tempo médio gasto anualmente por um empresário brasileiro para preparar e pagar seus impostos”.

Para o empresário, o Brasil precisa rever o tamanho e o papel do Estado como agente econômico. “Em suma, precisamos de um modelo de governança corporativa nos moldes já praticados pelas grandes corporações. A atração de capital externo precisa acontecer prioritariamente por meio de investimentos diretos”. O empresário Jean Peter, presidente da Globe Química, também considera preocupante o governo responder por algo em torno de 44% do PIB. “É muito para uma nação, é um custo muito elevado, e não será através do aumento de impostos que iremos superar as dificuldades atuais, muito pelo contrário. Se aumentarem os impostos, teremos mais retração e mais inflação. A Selic é um problema? Sim, mas não é baixando essa taxa que se resolve. É preciso reduzir significativamente gastos do governo, investimentos de curto prazo por algum tempo, e rever programas irreais”.

RESERVA CAMBIAL: UMA CONQUISTA A PRESERVAR

Mesmo enfrentando uma das piores crises econômicas dos últimos tempos o governo brasileiro conserva um trunfo conquistado nos tempos de bonança: US$ 370 bilhões em reservas cambiais. Com as contas externas em posição mais confortável face ao câmbio atual, cabe questionar a conveniência de mobilizar parte dessas reservas para auxiliar na redução do déficit público. Porém, de acordo com a maioria dos economistas entrevistados, o risco inerente a essa medida superaria os benefícios.

“Trata-se, sem dúvida, de uma discussão relevante”, admite Corrêa de Lacerda. “É tentador se desfazer das reservas diante de escassez de recursos. No entanto, consertar o telhado em meio a uma tempestade pode não ser boa ideia. Não estou totalmente convencido de que o nível atual de reservas é excessivo. Além disso, vender reservas também poderia trazer o efeito colateral da valorização do Real, o que prejudicará nossa competitividade. Possuir reservas é um péssimo negócio, financeiramente falando, porque no curto prazo o seu custo é aparentemente menor do que o benefício. No entanto, por que a maioria dos países relevantes elevou seu volume de reservas nos últimos 15 anos? Porque é a única possibilidade para os não detentores de moedas conversíveis, em um sistema dominado pelo Dólar norte-americano. Os EUA gozam de um ‘privilégio exorbitante’, nas palavras do professor Barry Eichengreen: só eles podem emitir uma moeda e uma dívida que todos desejam”.

David Kupfer define as reservas como uma espécie de seguro macroeconômico. “São custosas e, à medida que a taxa de juros sobe, tornam-se ainda mais custosas, mas elas cumprem papel muito importante. Nossa situação atual seria bem pior se não existisse esse colchão de reservas – se estivéssemos, por exemplo, como estávamos em 1999, quando houve uma crise cambial no País e as reservas eram diminutas. Não acho que as reservas sejam intocáveis, mas elas devem ser preservadas e não convém mobilizá-las sem que haja uma justificativa muito premente”.

Para Mauro Arruda, igualmente, a história recente mostra que a escassez de reservas é perigosa. “Quem viveu as crises brasileiras dos últimos 50 anos, inclusive as dos anos 1990, pós Plano Real, sabe que as crises gêmeas foram muitas vezes as principais causas da crise, mas, sem dúvida, a principal foram as baixas disponibilidades de reservas. E essas crises, via de regra, resultaram em intervenções de organismos internacionais, como o FMI, com imposições que humilham o País, como vimos no passado e como estamos vendo, por exemplo, na Grécia. O País passou pela crise internacional de 2008, e está passando pela atual, sem qualquer ataque especulativo, justamente porque teve e continua tendo reservas cambiais robustas, e até 2013 adotava uma política fiscal razoável. Era o que diziam as agências de risco, que os fundamentos estavam sólidos – e o pior é que disseram isto até o final de 2014. Agora temos um déficit público crescente, somado ao déficit em conta corrente. Com déficits gêmeos – fiscal e de conta corrente – uma diminuição das reservas poderia ensejar uma ação especulativa contra o Real. É duvidoso, mas pode acontecer. Na dúvida, é melhor esperar um momento mais propício. Além disso, aos déficits gêmeos deve-se acrescentar uma crise política como não se vê igual há mais de 50 anos. Não importa quanto estão custando as reservas, porque é o preço que devemos pagar para não nos tornarmos ainda mais vulneráveis”.

Por outro lado, na crise atual a desvalorização do Real está servindo para diminuir rapidamente o déficit em conta corrente e isto poderá, na opinião de Arruda, criar condições favoráveis para uma eventual utilização de parte das reservas. “Não me surpreenderia se, até o final do próximo ano, chegarmos a zerar totalmente o déficit, ou até mesmo obter algum superávit. Se a diminuição do déficit em conta corrente se acelerar em 2016, como é de se esperar, é uma sinalização forte de que, em meados do ano, será possível direcionar uma parte das reservas cambiais, digamos US$ 37 bilhões, cerca de 10% do total das reservas, para reforçar a política fiscal. Mais do que isso, para reverter as expectativas”.

Bresser-Pereira não apenas reforça as advertências dos demais entrevistados quanto ao risco de lançar mão das reservas como lança uma proposta tendo em vista a reindustrialização do País e a retomada sustentável do desenvolvimento econômico. “Só poderemos reduzir nossas reservas quando pudermos assegurar que a atual taxa de câmbio será mantida em termos reais nos próximos anos, embora exista no Brasil uma tendência à sobrevalorização cíclica e crônica da taxa de câmbio. E só poderemos assegurar essa taxa, que corresponde ao que denomino ‘equilíbrio industrial’, quando tivermos um imposto variável sobre as exportações de commodities”.

“O AUMENTO DA INFLAÇÃO FOI CAUSADO PRINCIPALMENTE PELA DESVALORIZAÇÃO CAMBIAL FORTE E PELO AUMENTO DE PREÇOS QUE FORAM ADMINISTRADOS EQUIVOCADAMENTE NOS ANOS RECENTES. NESTAS CONDIÇÕES, A MANUTENÇÃO DA SELIC NO NÍVEL ATUAL SIMPLESMENTE NÃO FAZ SENTIDO”
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

“NOS MOMENTOS DE RETRAÇÃO, A SOLUÇÃO SEMPRE ENVOLVE ALGUMA FORMA DE AMPLIAÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA, PORQUE AS DESPESAS SÃO DE FATO MUITO INELÁSTICAS NO BRASIL E AS RECEITAS SÃO CÍCLICAS. QUANDO A ECONOMIA ENTRA NA FASE BAIXA DO CICLO, AS DESPESAS SE TORNAM EXCESSIVAS”
DAVID KUPFER

Alberto Matias e Peter Andersen mostram-se menos avessos à hipótese da utilização das reservas cambiais. Andersen considera esta alternativa com cautela. “Creio que parte das reservas poderia, sim, ser aplicada na redução do déficit público, mas é importante lembrar que o País tem compromissos decorrentes da dívida externa no montante de US$ 130 bilhões com vencimento para os próximos 12 meses, além de um déficit em conta corrente de US$ 90 bilhões. Em suma, precisaremos de US$ 220 bilhões para financiar as obrigações assumidas. Caso haja uma crise no fluxo de capital estrangeiro, as reservas podem ser utilizadas para honrar tais compromissos”.

Matias, por sua vez, decididamente enxerga vantagens na mobilização das reservas. “O déficit público é em Real, e para cobri-lo precisamos arrecadar, via tributação, emissão de dívidas ou até mesmo emissão de moeda, o que não é recomendável. Temos reservas cambiais que estão sendo utilizadas para a cobertura de elevados déficits do Banco Central em operações de swap cambial. Estas reservas poderiam ser utilizadas para financiar a importação de componentes para a modernização da infraestrutura brasileira, ou mesmo para financiar exportações a taxas inferiores às praticadas pelo mercado. A redução do déficit público precisa ser realizada pela redução dos gastos financeiros do governo federal”.

O PESO DO CÂMBIO NA RETOMADA DO CRESCIMENTO

Nos dois últimos anos, o Real se depreciou aceleradamente frente ao Dólar, impulsionando, em tese, a competitividade dos produtos brasileiros no comércio internacional. No entanto, o desempenho das vendas externas foi pífio, em grande parte por conta da queda mundial do preço das commodities, que aumentaram substancialmente sua participação na pauta brasileira de exportações desde o sucateamento da indústria perpetrado nos anos 1990. Nesse período, os analistas de plantão da grande mídia, sem interesse em aprofundar a discussão, apressaram-se em pôr a culpa na “inércia” da indústria nacional e, a pretexto de concentrar o foco no combate ao inimigo maior – o “fantasma da inflação” -, passaram a pressionar o governo pelo aumento dos juros.

Segundo Delfim Netto, “a produção industrial no Brasil foi destruída deliberada e cuidadosamente, com uma competência muito conhecida, não há dúvida disso. O crescimento do Brasil murchou porque o crescimento da produção industrial murchou. O governo, cada vez que usa o câmbio como instrumento de controle de inflação, comete um crime de lesa-pátria, e esse crime é continuado desde 1986, quando abandonamos a ênfase na exportação, as tarifas efetivas e adequadas. Essa política afastou o Brasil do mundo. Mede-se a desindustrialização não pelo PIB, mas sim pela perda de competitividade externa, e isto acontece quando a participação dos manufaturados na exportação diminui. As exportações industriais do Brasil em relação ao mundo caíram 15% ao ano desde 1986, justamente quando se passou a usar o câmbio como instrumento para estabilizar a inflação. Isso tem causado uma diminuição de 1,2% ao ano na nossa competitividade externa”.

Existem apenas dois vetores para o crescimento, explica Delfim: o investimento e a exportação. “É preciso restaurar essa ligação externa. Se fizermos uma retrospectiva, desde o começo do Plano Real estamos com um déficit nas exportações. Foram roubadas do empresário as condições isonômicas de competição, com uma carga tributária indecente e defeituosa. Valorizou-se o câmbio e aumentou-se a carga tributária durante 30 anos”.

A ação do tempo sobre uma política cambial adversa foi, realmente, devastadora para a indústria. David Kupfer assinala que o Real sobrevalorizado provocou crescente hiato de competividade na indústria brasileira, “reduzindo o ritmo de investimento e rompendo o principal circuito que impulsiona o progresso técnico da indústria, que é a construção do novo equipamento de produção, a nova fábrica. A sobrevalorização duradoura gerou uma defasagem de inovação, que é uma consequência de segunda ordem e explica a estagnação da produtividade da indústria. Na hora em que se recupera o valor do Dólar, devolve-se a competitividade cambial, mas num contexto de defasagem tecnológica, ou seja, de falta de competitividade estrutural. Para que o Dólar desvalorizado faça efeito, temos que esperar um circuito de acumulação, a realização de investimentos, a modernização do parque industrial, a mudança estrutural na pauta de produção, enfim, há todo um processo a percorrer. Vai demorar. O entrave mais significativo hoje é a defasagem tecnológica, que foi provocada pela perda de competitividade cambial”.

Tempo é um fator que diferencia radicalmente a produção e o “rentismo”. Corrêa de Lacerda lembra que “as decisões na área produtiva tem um timing mais lento do que no setor financeiro, no qual geralmente bastar apertar uma tecla para mudar a posição de aplicações”. Mesmo considerando que o Real mais próximo de R$ 4 por US$ 1 é mais realista do que o nível de um ou dois anos atrás, e vislumbrando a desvalorização do Real como oportunidade para fortalecer a produção doméstica e as exportações, ele faz questão de ressaltar: “é preciso ficar claro para os investidores que esse estímulo vale somente para a produção que concorre com os importados”. Além disso, o professor reitera que o câmbio, “ainda que seja uma condição necessária, é insuficiente quando se tem um quadro como o atual: baixa expectativa de demanda, juros estratosféricos e políticas industriais instáveis. O ambiente não favorece a produção, e sim as aplicações financeiras”.

O diagnóstico de Mauro Arruda segue a mesma linha, mas inclui o impasse político como um fator decisivo. “O câmbio é essencial para a retomada da indústria, mas sua eficácia é menor num momento de crise econômico-política. A queda da taxa de investimento fala por si só. Não resta dúvida que, superada a crise econômico-política e acertada a política fiscal, o Real, no valor de agora, será fundamental para puxar o crescimento. Já há movimentos interessantes acontecendo na economia e que ganharão corpo com a solução das referidas crises. Com a nova taxa de câmbio, os preços relativos sofreram mudanças incríveis. Tomando, por exemplo, a relação câmbio/salário, dá para ver uma demanda crescente por serviços de empresas instaladas no Brasil, por exemplo na área de software e afins, que não exige investimentos tão elevados quanto exigirá na indústria”.

Alberto Matias salienta que o Real sobrevalorizado, ao derrubar a participação da indústria no PIB e na geração de empregos, beneficiou somente os grandes países que exportam para o Brasil. “A atual taxa de câmbio, ao redor de R$ 3,80 por Dólar, localiza-se na média dos últimos 25 anos, constituindo-se no padrão de normalidade. Isto contribui para viabilizar a reconstrução do parque industrial brasileiro, o que levará alguns anos para se realizar. Restam-nos outros entraves, como a elevada taxa de juros, a alta carga tributária, a deficiência de infraestrutura, a burocracia e a falta de apoio público ao desenvolvimento nacional”.

Esses outros entraves solapam continuamente os esforços de soerguimento da indústria. Peter Andersen observa que o Brasil está muito mal posicionado no ranking mundial de ambiente de negócios. “O excesso de burocracia, a elevada carga tributária, o déficit de infraestrutura, a constante intervenção do Estado na atividade econômica e, principalmente, a educação de má qualidade, emperram o desenvolvimento da economia brasileira. O modelo de gestão do nosso País precisa ser revisto, com ênfase na redução do papel do Estado na economia”.
 
Bresser-Pereira, por sua vez, faz uma instigante análise do ciclo que determinou a recente depreciação do Real e apresenta uma alternativa ousada para reverter o processo de desagregação de valor das exportações brasileiras. “É um equívoco pensar que a taxa de câmbio real se manterá no nível atual, que é o nível correto, de equilíbrio industrial. A principal causa da desvalorização foi a queda radical dos preços das commodities exportadas pelo Brasil. Ao caírem os preços, os exportadores de commodities passaram a precisar de uma taxa de câmbio mais alta (mais depreciada) para que a produção continuasse viável. Ora, como são as commodities que determinam a taxa de câmbio em um país como o Brasil, esta se depreciou. Confirmou- se, assim, a teoria novo-desenvolvimentista que afirma que nos países em desenvolvimento existe uma tendência à sobreapreciação cíclica e crônica – no longo prazo – da taxa de câmbio. Essa tendência, que desde os anos 1990 não é neutralizada por uma política cambial adequada, consiste na causa principal da desindustrialização e das baixas taxas de crescimento desde então. É necessário criar um imposto sobre a exportação de commodities que terá, no presente momento, alíquota zero, pelo menos no caso da soja e do minério de ferro, cujos preços caíram brutalmente. O imposto deverá ter uma tabela de faixas de preços internacionais para cada commodity e a respectiva alíquota”.

“ESTAMOS VIVENDO UM NOVO MOMENTO A PARTIR DA IMPLEMENTAÇÃO DE AÇÕES INTERNACIONAIS CONTRA A LAVAGEM DE DINHEIRO, O QUE IRÁ FOMENTAR O INCREMENTO DO PADRÃO ÉTICO NAS ATIVIDADES PÚBLICAS E PRIVADAS BRASILEIRAS. MAS TEREMOS ALGUNS ANOS DE SOFRIMENTO. E A ATIVIDADE POLÍTICA ESTARÁ INSERIDA NESTE PROCESSO”
ALBERTO MATIAS

CRISE POLÍTICA E DESARRANJO INSTITUCIONAL

Há quem defenda abertamente uma ruptura institucional – leia-se, o impeachment da presidente da República – como uma solução mágica para a crise atual, que, como frisa Mauro Arruda, é indissociavelmente política e econômica. Na opinião unânime dos entrevistados, isto seria desastroso para o País.

“O impeachment só é constitucional quando há um desvio de conduta, e não acredito nisso”, afirma Delfim Netto. “Não existe, é uma ilusão. Eu conheci Dilma, me afastei do governo em 2012, quando fez a maluquice de transformar a dívida pública em superávit primário. Sua intervenção é muito grande e produziu essa dificuldade, mas ninguém encontrará nela um desvio de conduta. O que está sendo tentado é um ‘tapetão’, querem transformar novamente o Brasil em uma pastelaria. A vantagem da democracia é a circulação do mandato em exercício. Vamos ter que aprender a votar”.

A falha da presidente Dilma, segundo Delfim, foi “não ter disposição para conversar e ver onde errou, para mudar. Sabese que ela é uma pessoa voluntariosa, mas o resultado administrativo é muito ruim, e aproveita mal as convergências. Em minha opinião, Dilma deveria estar nas ruas enfrentando o ‘panelaço’ e mandando ao Congresso as reformas constitucionais que estabelecerão a confiança da sociedade brasileira e as condições de crescimento. É natural que haja oposição, mas não é possível administrar o País sem a liderança do Executivo. Dilma precisa assumir seu protagonismo. No regime em que vivemos, de presidencialismo de coalizão, ela precisa transmitir a confiança para voltarmos a ter desenvolvimento, porque só com desenvolvimento será possível crescer. Conversa mole não resolve”.

Corrêa de Lacerda também rechaça categoricamente a ruptura: “não se sustenta uma tentativa de impeachment sem elementos constitucionais que a suportem. Para alternância de poder existem as eleições. Há que se respeitar o calendário e as decisões das urnas”. Ele acredita que “somente a firmeza das instituições e a aposta na democracia poderão nos oferecer a estabilidade política necessária à criação de um ambiente econômico mais promissor para quem trabalha e produz. Temos perdido muito tempo com um interminável ‘terceiro turno’ de uma eleição que acabou há um ano. Interesses pessoais e partidários têm transformado a virtude de finalmente enfrentarmos a corrupção em defeito e álibi para posturas golpistas. Foram cometidos erros, mas desestabilizar a democracia não vai resolver”.

Na opinião de Mauro Arruda, a discussão está deslocada e uma ruptura institucional nunca será necessária para superar a crise econômica. “É preciso fazer uma reforma institucional, o que não é pouco. O Estado brasileiro tornou-se anacrônico, é a sobra de várias sobras, do que foi criado ao longo de anos, sendo que uma das piores sobras foi a da ditadura militar. Na democratização, no afã de fazermos uma Constituição às pressas, não reconstruímos nossas instituições como deveríamos. É inegável que precisamos reformar nossas instituições, com subreformas que a elas se atrelam, sendo a reforma política apenas uma entre tantas outras”. Em caráter imediato, o que falta, segundo ele, é o Executivo e o Congresso se entenderem para que a política fiscal produza em 2016 um superávit, que deveria ser canalizado para reduzir a relação dívida/PIB.

Alberto Matias assinala que, embora a condução da política econômica brasileira venha se pautando pela busca do poder não compartilhado, de forma a se obter ganhos financeiros para a manutenção desse mesmo poder, “estamos vivendo um novo momento a partir da implementação de ações internacionais contra a lavagem de dinheiro, o que irá fomentar o incremento do padrão ético nas atividades públicas e privadas brasileiras. Mas teremos alguns anos de sofrimento. E a atividade política estará inserida neste processo”.

Para David Kupfer, o que vai possibilitar a superação da crise é “a capacidade dos nossos agentes políticos de repactuarem algum acordo com esse objetivo – um pacto amplo entre diversos segmentos envolvidos nessa disputa de poder, que permita construir um horizonte de reestabilização não só da economia, mas também do cenário político”. A seu ver, a estrutura partidária não ajuda. “Já tivemos historicamente um sistema partidário pouco nítido do ponto de vista de suas propostas e plataformas, mas, neste momento, ele é absolutamente opaco. Isto se deve a um processo de esvaziamento no Congresso Nacional, que acabou ocupado por expressões políticas muito locais, uma espécie de fragmentação dos interesses, que tornam nosso sistema político partidário muito imediatista e oportunista – no sentido da busca de oportunidades de se reproduzir, de se expandir e assim sucessivamente”.

Por outro lado, Kupfer também detecta na crise política um sentido mais profundo – um duelo de modelos radicalmente antagônicos. “Embora seja correto afirmar que uma parte importante do nosso sistema político-partidário está preocupada mais com seus próprios interesses do que em negociar medidas para a retomada do crescimento do País, a crise evidencia e expressa também conflitos políticos entre capital e trabalho e intercapital. Por trás de todo esse confronto político-partidário existem de fato modelos diferentes de organização econômica ou socioeconômica do País disputando hegemonia”.

Num cenário embaralhado por incertezas, parece difícil colocar a discussão sobre planejamento público e articulação institucional. Mas sem planejamento não é possível gerir um país. Segundo Delfim Netto, “abandonamos tudo. A começar pelo nosso orçamento, que é uma porcaria e não tem nada a ver com a realidade brasileira. Um mesmo item contemplado no orçamento só está lá porque esteve no ano passado, e no retrasado, e assim por diante. Não se analisa nenhum programa na perspectiva do custo-benefício”.

“NÃO SE SUSTENTA UMA TENTATIVA DE IMPEACHMENT SEM ELEMENTOS CONSTITUCIONAIS QUE A SUPORTEM. PARA ALTERNÂNCIA DE PODER EXISTEM AS ELEIÇÕES. HÁ QUE SE RESPEITAR O CALENDÁRIO E AS DECISÕES DAS URNAS”
ANTONIO CORRÊA DE LACERDA

O dever de casa é extenso e trabalhoso, na avaliação de Delfim. “Há uma lista de coisas a ser feita e é óbvio que o maior problema do Brasil é o déficit da Previdência. É preciso enfrentar, também, o problema da vinculação das emendas parlamentares ao orçamento. Tirar do deputado o poder de decidir a cada ano quais são as prioridades. A vinculação é como botar um avião no piloto automático até acabar a gasolina. Não é difícil convencer as pessoas, hoje, de que isso é um desastre. O orçamento precisa ser adequado, o Executivo coloca seu programa e o Legislativo aprova ou não”.

Planejamento, fiscalização e controle compõem uma questão civilizatória, afirma Delfim. “Quando se propõe examinar o Programa Bolsa Família não se está investindo contra ele. Pelo contrário, é preciso compreender que todo programa continuado precisa ser controlado permanentemente. Hoje o Bolsa Família está parasitado por prefeito, comerciante, ONGs e políticos. Tem ineficiências que são produzidas pelo entorno do programa, e isso tem que ser examinado, como todos os outros programas. É preciso que um país como o nosso tenha programas que ajudem os menos favorecidos a progredir na vida”.

É preciso também, prossegue Delfim, fazer aquilo que a Central Única dos Trabalhadores (CUT) propôs há cinco anos: a livre negociação entre trabalhadores e empresários sob a supervisão dos sindicatos. “No Brasil, a coisa mais nociva é a Justiça do Trabalho, porque pretende proteger o trabalhador e não o protege, e pretende dar garantias institucionais ao empresário e não o faz. No Brasil, não há nada mais aleatório do que o passivo trabalhista de uma empresa, é um retrocesso mortal. Todo o mundo está revendo essa ideia de que o trabalhador é insuficiente e o empresário é necessariamente um explorador. Em alguns casos é verdade, mas na maioria não. São essas coisas que, em minha opinião, são fundamentais e podem dar a perspectiva de uma grande melhora no cenário”.

O rol de reformas indispensáveis deve incluir, no entender de Mauro Arruda, uma política cambial consistente e direcionada para a reindustrialização do País. “Assim como o Banco Central adotou uma política para manter o Real valorizadíssimo por muitos anos, deverá, daqui para frente, mantê-lo num patamar em que possamos ser mais competitivos. Considerando que o BC brasileiro não tem compromisso com o emprego, ao contrário do BC dos EUA, por exemplo, numa reforma institucional isso deveria ser incluído. Não tenham dúvida aqueles que pregam o aumento da competitividade da indústria que o Real em patamar adequado é determinante para mudar o comportamento dos empresários, para levá-los a investir em unidades fabris modernas como forma de aumentar a eficiência produtiva de suas empresas”.

Câmbio, juros, inflação. Mas aonde se quer chegar administrando esses parâmetros macroeconômicos? David Kupfer afirma que “Executivo e Legislativo carecem de um planejamento nacional de longo prazo, isto é fora de dúvida. Mas o problema aqui é o inverso. O planejamento só é possível quando se tem uma massa crítica, quando se atinge um mínimo de coesão social em torno de determinados objetivos. Não é possível que o planejamento organize a sociedade, é a sociedade organizada que permite o planejamento. E nós já estamos sem planejamento há algum tempo, porque não há coesão de nenhuma espécie em torno da direção em que deve caminhar a sociedade brasileira. Agora, que todos estão ocupados com seus interesses mais imediatos, o grau de coesão chegou a estágios mínimos, críticos. Não há nem mais o discurso de planejamento”.

O Brasil precisa de um projeto, afirma Bresser-Pereira. “Entre 1930 e 1980, o projeto era a industrialização; entre 1980 e 2014, democracia e justiça social; agora o projeto precisa ser reindustrialização e justiça social – a primeira entendida como sofisticação produtiva que abrange os serviços tradable sofisticados”. Para Corrêa de Lacerda, a perda de rumo ocorreu há mais tempo. “Nas palavras do mestre Celso Furtado, vivemos, sob este ponto de vista, uma ‘construção interrompida’ – título do seu livro de 1992. Ou seja, há 30 anos evoluímos na democracia, mas perdemos a capacidade como nação de elaborar e viabilizar um Projeto Nacional. Nossa jovem democracia precisa ser preservada e aperfeiçoada. É preciso que as forças vivas da Nação concentrem sua energia na reconstrução e implementação de um projeto visando ao desenvolvimento. Não basta a agenda de curto prazo, muito disseminada por analistas do mercado financeiro e seus simpatizantes. Precisamos de medidas mais perenes, políticas de Estado”.

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