O sistema de propriedade intelectual e seu executor nacional, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), são o “patinho feio” do governo: poucos se preocupam com o assunto, seja por desconhecerem as suas profundas repercussões econômicas e sociais, seja por rejeição às suas subjetividades e tecnicalidades jurídicas. E, no entanto, a adoção de um sistema legal adequado às necessidades do estágio de desenvolvimento do País e uma atuação eficiente e eficaz do INPI têm reflexos importantes, seja na promoção do desenvolvimento, seja na economia do País e do Estado. O Brasil foi sempre um pioneiro na adoção do sistema, cujos princípios foram introduzidos por D.João VI ao chegar ao Brasil e transformá-lo de colônia em Reino Unido. Desde então, o País sempre teve uma legislação protetora das invenções e aderiu de imediato quando a primeira convenção internacional, a Convenção da União de Paris (CUP), foi estabelecida em 1883.
Sob a égide da CUP, a legislação nacional tinha a liberdade de adotar o sistema de proteção que melhor conviesse ao seu estágio de desenvolvimento, pois a Convenção adotava suficientes flexibilidades para isso. Durante boa parte do século XX, o Brasil não reconhecia patentes de produtos químicos, mas tão somente sobre processos, a exemplo do que fazia a maior parte dos países já desenvolvidos da Europa. Foi na metade da década de 80, no âmbito da Rodada Uruguay do GATT, que o panorama começa a sofrer uma transformação radical, as negociações comerciais sobre tarifas evoluem e no seu bojo negocia-se a formação de uma Organização Mundial de Comercio que passaria a tratar, também, de propriedade intelectual. Destas negociações emerge o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS, de seu título em inglês), que obriga os países membros a ampliarem o escopo da proteção, inclusive sobre produtos químicos e farmacêuticos, e remove ou restringe uma série de flexibilidades existentes sob a CUP.
Até então, apesar do pouco destaque político e social, o INPI era um órgão respeitado por seu trabalho e seus técnicos eram reconhecidos pela qualidade de seu desempenho. Isto começa a mudar quando, em 1996, o Brasil muda a sua legislação para atender aos requisitos dos TRIPS através da aprovação da Lei 9.279/1996. A nova lei não só atende aos requisitos de TRIPS, o que aumentou enormemente os pedidos de patente que chegaram ao INPI em áreas sobre as quais os técnicos não tinham experiência de análise, como medicamentos, por exemplo. Ainda pior, introduz mecanismos não exigidos por TRIPS, como o reconhecimento de patentes já existentes em outros países, o chamado “pipeline”, e a adoção de período mínimo de dez anos de vigência das patentes após sua emissão pelo INPI (parágrafo único do artigo 40 da Lei 9.279). Parece óbvio que, durante o longo tempo de negociação dos TRIPS, o governo brasileiro deveria ter tomado as providências para a reforma do INPI, preparando o Instituto para a sobrecarga de trabalho que viria… e veio.
Durante mais de oito anos nada se fez para corrigir as inadequações da lei ou para reforçar as estruturas do INPI, a não ser a intervenção do Ministério da Saúde (MS), preocupado com as repercussões sobre o sistema de saúde decorrentes do patenteamento maciço de medicamentos e da conseqüente elevação dos seus preços. A Lei 9.279 é modificada para incluir a Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como interveniente no processo de exame dos pedidos de patente de medicamentos, mudança que, apesar de contribuir na melhoria do processo da análise técnica dos pedidos, introduziria um complicador adicional no sistema e que ainda hoje é causa de acirrados debates sobre sua eficiência e legitimidade.
As preocupações do Ministério da Saúde com a eficiência do sistema de patentes brasileiro eram bem fundamentadas, pois entre as atribuições daquele ministério está a garantia da acessibilidade da população em geral a medicamentos, de acordo com os dispositivos constitucionais que estabeleceram os conceitos de universalidade, integralidade e equidade como fundamentos do sistema público de saúde. Em fevereiro de 1999, através da Lei 9.787, o Brasil, finalmente, adotaria um sistema de produção de medicamentos genéricos, isto é, medicamentos que, finda a validade de suas patentes, poderiam ser produzidos por diversos laboratórios com um processo simplificado de aprovação pelas autoridades sanitárias. Estes remédios, para gozar da classificação de genéricos, deveriam ser colocados no mercado com preços pelo menos 35% inferiores ao remédio original. A existência dos genéricos resultou numa melhoria sensível na acessibilidade da população a medicamentos e, de quebra, um alívio significativo no orçamento do MS. Uma atuação eficiente do INPI tornou-se peça importante na política nacional de saúde, daí a preocupação do Ministério.
É somente em 2004, com o ministro Luiz Fernando Furlan à frente do Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior (MDIC), que se inicia uma tentativa de recuperação da capacidade funcional do Instituto e de modernização de sua infraestrutura. Com a saída do ministro, o movimento perde força dentro do governo. O que se assiste nos anos que se seguem é a um intenso protagonismo da direção do INPI no sentido de sugerir uma transformação para melhor na atuação do Instituto, a qualificação como Autoridade de Busca Internacional (ISA, na sigla em inglês), a criação de uma Academia de Propriedade Intelectual, uma reestruturação interna das áreas de análise de pedidos de patente, uma intensa participação em cursos, seminários, palestras e congressos, enfim, uma presença midiática que sugeria a tão esperada, e necessária, melhoria funcional. Ao longo deste período várias entidades setoriais e de classe persistiram na sua crítica à atuação do INPI, enfatizando especialmente os prejuízos para a política nacional de saúde. As críticas, no entanto, não conseguiram vencer a inércia governamental e o forte lobby de associações que representam o interesse das grandes empresas internacionais da indústria farmacêutica. Propostas para a rearticulação governamental em torno do assunto, como a da reativação do Grupo Interministerial de Política Industrial (GIPI), caíram em ouvidos moucos.
Em janeiro de 2014, uma nova direção assume o INPI com a tarefa explícita de promover a reorganização interna do Instituto e recuperar a sua eficiência funcional. O trabalho inicial de diagnóstico mostrou uma situação caótica, altamente lesiva aos interesses nacionais, com reflexos econômicos negativos, sobretudo na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Os dados do desempenho do Instituto e as propostas para sua recuperação foram enfeixados em um relatório protocolizado no Ministério do Planejamento em 17 de julho de 2014, em processo que tomou o número 03000.003302/2014-31. Em resumo, todos os indicadores usuais de avaliação de uma autoridade nacional de patentes mostraram-se ruins e com tendência a piorarem. O número de pedidos de patente depositados aumentou contínua e consideravelmente ao longo do período analisado, ao mesmo tempo em que diminuía a força de trabalho disponível. A carga de trabalho de um examinador de patentes no INPI, mostra o relatório, é mais do que o dobro da do examinador de patentes do escritório americano, USPTO, e quatro vezes maior do que a do escritório europeu, EPO.
O problema principal está relacionado à demora do INPI na análise e concessão de patentes por força do disposto no parágrafo primeiro do artigo 40. O prazo ordinário de concessão do privilégio é de 20 anos contados da data do depósito do pedido, segundo o “caput” do artigo 40, mas, se o INPI demorar mais de dez anos na análise, passa a ser aplicado o disposto no parágrafo único daquele artigo, que estatui o prazo mínimo de dez anos de vigência a partir da data de concessão. Em resumo, se o INPI demorar 11 anos para conceder a patente, o prazo de vigência do privilégio terá sido de 21 anos, e não mais de 20. Isto porque, e é algo importantíssimo recordar, o depositante está protegido nos direitos concedidos pela patente a partir da data do depósito do pedido.
A demora no exame das patentes tem outro aspecto preocupante, relacionado à taxa de não aceitação dos pedidos. Segundo informações do INPI, mais de 60% dos pedidos de patente relativos à área farmacêutica são rejeitados pelo Instituto. Como esta decisão leva mais de dez anos para ser tomada e como o depósito de um pedido já cria uma proteção virtual (ninguém investirá nesta tecnologia, nem mesmo para pesquisa, pois, se ao final do exame a patente for concedida, quem usou a tecnologia será indevidamente punido), o INPI está protegendo, por um período de dez anos ou mais, uma não-invenção! Além disso, esta enxurrada de pedidos de baixa qualidade, verdadeiro lixo tecnológico, sobrecarrega o trabalho dos examinadores, pois, lixo ou não, cada um deles é examinado cuidadosamente. Este é um problema enfrentado por todos os escritórios de patente do mundo e alguns deles trataram de elevar as taxas cobradas a fim de diminuir a sua quantidade.
O problema da demora no exame e concessão de patentes, e também de marcas e desenhos industriais, é uma constante preocupação em todos os escritórios de patentes do mundo, que estão, permanentemente, avaliando suas estruturas e seus métodos de trabalho para impedir largos tempos de exame. Nos grandes escritórios internacionais como o USPTO americano, o JPO japonês e o EPO europeu, o sinal de alerta toca quando o tempo médio de concessão excede os quatro ou cinco anos. Segundo dados estatísticos publicados pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) em 2013, o tempo médio de concessão no escritório europeu era de cerca de cinco anos, no escritório japonês de sete anos e no escritório americano de apenas três anos. Embora estes dados não sejam totalmente comparáveis em função de diferenças nos procedimentos entre os escritórios, eles são úteis para evidenciar que a situação atual do INPI fugiu inteiramente ao controle: para 15 áreas técnicas o tempo médio de análise excede dez anos, sendo que, para pelo menos três delas, este tempo é superior a 13 anos. Os dados abaixo foram retirados do relatório do INPI:
Note-se que os dados do gráfico acima referem-se a tempo médio de concessão em cada um dos setores técnicos relacionados, o que revela que existem patentes cujo tempo de tramitação foi ainda superior.
O panorama nas marcas é também desalentador: há pedidos de marcas depositados há mais de oito anos e que ainda não foram decididos e 62,5% dos pedidos de marcas demoram três anos para serem aprovados ou negados. Ressalte-se aqui que o Brasil está aderindo ao Protocolo de Madri, tratado internacional que regula aspectos relativos à concessão de marcas e que inclui entre algumas de suas exigências a fixação do prazo máximo de exame em 18 meses. Estaremos repetindo o erro dos anos 90, de aderir a um tratado internacional sem estarmos aparelhados para atender às suas exigências.
A demora na concessão de patentes gera um custo para o País, na medida em que a duração estendida do privilégio evita a concorrência ao impedir a entrada de genéricos no mercado, prevalecendo por mais tempo a existência de preços de monopólio. É difícil quantificar o custo global desta perda, mas há um setor em que as particularidades da legislação brasileira tornam esta quantificação mais fácil, o setor de saúde.
Por força de dispositivo constitucional, a saúde no Brasil “é direito de todos e dever do Estado”, o que gerou a adoção de um Sistema Único de Saúde (SUS) acessível a todos os cidadãos. Entre as atribuições do SUS está a de prover a acessibilidade a produtos destinados a prevenção, diagnóstico e tratamento de enfermidades e agravos, o que representa um encargo considerável aos cofres da nação.
Para atender às suas finalidades na área de acesso a medicamentos por parte da população, o SUS estabeleceu uma Política Nacional de Assistência Farmacêutica, da qual participam as três esferas – federal, estadual e municipal. Esta política dividiu o atendimento em três grandes categorias de produtos, com responsabilidades pactuadas entre as três esferas de governo;
• Componentes básicos da assistência farmacêutica;
• Componentes estratégicos da assistência farmacêutica; e,
• Componentes especializados da assistência farmacêutica.
Só em componentes especializados o governo despendeu cerca de R$ 3,6 bilhões ao ano, em 2012 e 2013. Esta categoria de produtos inclui cerca de 120 itens, mais de 300 apresentações e destina-se a medicamentos apropriados ao combate da esclerose múltipla, diabetes, hepatites virais, doença de Alzheimer, entre outras.
Os gastos do Ministério da Saúde no período de 2003 a 2011 são mostrados no quadro a seguir, no qual fica vidente sua escala ascendente, que deve ter prosseguido até os dias de hoje. A fonte dos dados é o próprio Ministério da Saúde e a elaboração dos mesmos deve-se à Dra Irene Porto Prazeres. Segundo informe do Departamento de Assistência Farmacêutica do MS, em 2014 os gastos do Ministério alcançaram R$ 12,42 bilhões*.
O já referido relatório do INPI estima o impacto econômico para os cofres públicos de uma extensão de dois anos no prazo de vigência das patentes de três medicamentos para o combate a AIDS, a saber: Raltegravir, Etravirina e Fosamprenavir. No ano de 2012 o Ministério da Saúde gastou na aquisição destes três medicamentos a quantia de R$ 256,19 milhões. Caso houvesse disponibilidade de genéricos gastaria, no mínimo, 35% a menos, ou seja, uma economia de R$ 89,5 milhões. Com a extensão da proteção das patentes por dois anos, a economia seria de R$ 179 milhões, quase o dobro do valor atribuído ao chamado Mensalão.
Há muitos outros medicamentos em situação semelhante e que impactam negativamente os custos dos programas do Ministério da Saúde. Tome-se, por exemplo, o Acetato de Glatiramer (Copaxone) e o Adalimumab (Humira), com os quais o MS gasta anualmente mais de R$ 300 milhões e para os quais a existência de genéricos significaria uma economia, em dois anos, de pelo menos R$ 210 milhões.
A amplitude dos prejuízos para o Brasil em geral, e para o Governo em particular, com a ineficiência do INPI na análise dos pedidos de patente depositados está a merecer uma quantificação mais minuciosa. Entretanto os exemplos acima dão uma ideia da dimensão do problema, especialmente se observarmos os dados da tabela a seguir, que relacionam outros medicamentos que já têm extensões de prazo por força do parágrafo único do artigo 40 da Lei 9.279.
A relação acima não é exaustiva e existem mais de 40 pedidos de patente referentes a medicamentos em análise que, se concedidos, implicarão numa extensão de prazo de vigência das mesmas para muito além dos 20 anos.
A ABIFINA protocolizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) arguindo a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei 9.279, que se encontra em tramitação e na qual se deposita uma grande esperança de sucesso. Isto, de forma alguma, justifica uma inércia em relação ao desempenho do INPI, que pode e deve ser objeto de medidas administrativas urgentes visando à ampliação do seu quadro funcional de examinadores e de melhoria de suas condições de trabalho, inclusive de reavaliação da classificação funcional dos examinadores para permitir uma remuneração adequada à importância de seu trabalho. Examinadores de patentes são funcionários de nível superior, muitos com títulos de mestrado e doutorado e que, no entanto, percebem uma remuneração de pouco mais que 50% da de um analista de comércio exterior.
O impacto nas contas públicas resultante da extensão dos prazos de vigência das patentes foi aqui meramente esboçado. É provável que um levantamento mais minucioso mostre que os prejuízos causados às contas públicas seja da mesma ordem de grandeza das estimadas propinas do caso Petrolão. Num momento em que o quadro geral da economia brasileira recomenda uma maior atenção com os gastos públicos, é inadmissível que a correção de rumos no INPI não seja adotada com a prioridade que merece.