REVISTA FACTO
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Out-Dez 2014 • ANO VIII • ISSN 2623-1177
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//Saiu na imprensa

SEM INOVAÇÃO NÃO HÁ DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL SUSTENTÁVEL

A confirmação dos prognósticos de déficit da balança comercial brasileira soou como um sinal de alarme nos gabinetes do Planalto e deverá provocar mudanças na condução da política econômica. Segundo o economista e professor Antonio Corrêa de Lacerda, “a perda de dinamismo do nosso crescimento econômico suscita o debate sobre a necessidade premente do aumento dos investimentos e da ampliação do valor agregado local”. Ele recorda que o crescimento do PIB foi de apenas 1,5% ao ano, na média de 2011 a 2014, menos da metade do observado no período 2003-2010, que manteve a média anual de 4%.

A confirmação dos prognósticos de déficit da balança comercial brasileira soou como um sinal de alarme nos gabinetes do Planalto e deverá provocar mudanças na condução da política econômica. Segundo o economista e professor Antonio Corrêa de Lacerda, “a perda de dinamismo do nosso crescimento econômico suscita o debate sobre a necessidade premente do aumento dos investimentos e da ampliação do valor agregado local”. Ele recorda que o crescimento do PIB foi de apenas 1,5% ao ano, na média de 2011 a 2014, menos da metade do observado no período 2003-2010, que manteve a média anual de 4%.

“Recuperar a capacidade de investir é pré-requisito para um crescimento mais robusto e continuado”, afirma Lacerda. “O salto no consumo, muitas vezes derivado de políticas de incentivo governamental, como desoneração tributária, redução de juros, ampliação do crédito, entre outras, não foi aproveitado para a expansão industrial. Não que a indústria brasileira não dispusesse de capacidade produtiva. Pelo contrário, ao longo do período citado a ociosidade média industrial girou em torno de 20%, de acordo com os dados registrados pelo Nível de Utilização da Capacidade Industrial (NUCI) da CNI”.

Essa fragilidade tem levado alguns analistas econômicos a menosprezar, em comentários na imprensa, a importância da indústria no desenvolvimento econômico nacional. Nada mais equivocado. O diretor de Competitividade da Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), engenheiro Mario Bernardini, ressalta que “nos últimos 200 anos não há exemplo de sucesso de país desenvolvido que não tenha sido baseado na indústria. Além disso, nenhum país de grande extensão territorial ou, principalmente, com grande população, vive de serviços”.

Política industrial é importante mas precisa estar inserida num ambiente favorável ao desenvolvimento produtivo, argumenta Bernardini. “É necessário estabilidade econômica, ou seja, regras claras com inflação sob controle; juros civilizados, e não os juros de agiota praticados no Brasil, e uma política cambial que não subsidie a importação. Há 20 anos, desde o Plano Real, a moeda brasileira está apreciada, o que é muito bom para fazer compras em Miami mas é um desastre para a indústria”.

O mito de que o setor terciário poderia, por si só, gerar desenvolvimento sustentável cai por terra diante dos exemplos citados pelo diretor da Abimaq. “A indústria responde por 50% da demanda de serviços de transporte, 40% do consumo dos serviços de geração e distribuição de energia elétrica, e mais de 30% dos serviços financeiros. Ou seja, essa estória de que estamos numa economia pós-industrial é coisa de quem ouviu o galo cantar e não sabe onde. A indústria é o setor mais fortemente demandante de serviços, de engenharia, de software, comida, transporte de pessoal, educação especializada etc”.  

A ideia de que o Brasil protege excessivamente seu mercado interno, difundida por uma parte da mídia, segundo Bernardini também carece de fundamento. “O Brasil tem um fluxo de comércio sobre o PIB de 15%, enquanto a média dos países é de 25 a 30% e alguns atingem 50 a 60%. Como se pode afirmar, frente a um parâmetro objetivo como este, que o Brasil é fechado? Países continentais relativamente autossuficientes, como os Estados Unidos, têm fluxo de comércio menor que o do Brasil, e nem por isso são considerados fechados. Outro ponto: as exportações e importações brasileiras somam cerca de US$ 500 bilhões. Dividindo-se este valor pelo PIB calculado em dólar temos R$ 4 trilhões. Se o dólar estiver a R$ 1 o fluxo será de 10%; se estiver a R$ 2 será de 15%, e se estiver a R$ 3 teremos 30%. Então, com o câmbio a R$ 3, ninguém diria que o Brasil é um país fechado”.

O setor químico é estratégico para a alavancagem da indústria. “Não há no mundo país desenvolvido sem uma indústria química forte”, afirma Pedro Wongtschowski, membro do Conselho de Administração da Ultrapar. “A estagnação da produção química brasileira tem causas conhecidas: o alto custo de capital, da energia e das matérias-primas, a oneração do investimento e da exportação e as dificuldades logísticas são os principais fatores”.

A indústria farmacêutica instalada no País tem recebido tratamento prioritário por parte do governo, em virtude de sua relevância para a saúde pública. Em novembro último, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 2.531/2014, com o objetivo de dotar as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) de um marco regulatório que privilegie a transparência e a eficiência na gestão, por meio de regras claras e melhor definição das responsabilidades dos parceiros. O programa de PDP na área da saúde é um dos mais bem-sucedidos da política industrial brasileira nos últimos dez anos, e por isso pode se tornar um modelo para outros setores da indústria.

Porém, diante da persistência de um ambiente adverso herdado da política neoliberal dos anos 1990, caracterizado principalmente pela falta de isonomia tributária e regulatória em prejuízo da produção local, muitos dos seus potenciais benefícios têm sido neutralizados. Nesta reportagem, executivos e especialistas das esferas pública e privada discutem os entraves à competitividade, as causas da escassa geração de inovações tecnológicas nesse setor industrial e possíveis saídas para superar a defasagem. 

PDP: AVANÇOS MODESTOS NUM AMBIENTE ADVERSO

Desde o início da última década, o Brasil evoluiu da escolha simplista entre ter ou não ter uma política industrial para a discussão de quais mecanismos podem compor uma política economicamente sustentável no longo prazo. O sentimento geral entre os entrevistados é o de que os inegáveis avanços da política vigente, consubstanciados nas PDPs do setor farmacêutico, ainda pesam menos na balança do que os entraves macroeconômicos e burocráticos, além das notórias distorções de ordem regulatória e fiscal.

“A PERDA DE DINAMISMO DO NOSSO CRESCIMENTO ECONÔMICO SUSCITA O DEBATE SOBRE A NECESSIDADE PREMENTE DO AUMENTO DOS INVESTIMENTOS E DA AMPLIAÇÃO DO VALOR AGREGADO LOCAL”

ANTONIO CORRÊA DE LACERDA

Como afirma Marcio Falci, assessor da Presidência Científica da Biolab, “até o momento a política industrial brasileira não teve êxito: a produção diminui, a participação da indústria no PIB cai, perdemos valor agregado no âmbito mundial e nas exportações de manufaturados. A competitividade industrial é declinante, uma vez que os principais desafios não foram enfrentados, tais como os elevados custos sistêmicos: tributação elevada e complexa, portanto muito onerosa; infraestrutura carente em tudo que envolve o sistema logístico de distribuição; moeda valorizada por longo tempo; custos crescentes de salários e outros custos que levaram a um retrocesso de produtividade. De 1995 a 2002 a produtividade da indústria cresceu a uma média anual de 3,2%, e de 2002 a 2009 decresceu em média 1,7% ao ano. Hoje esse quadro deve ser pior”.

Por outro lado, no contexto geral da indústria, os setores farmacêutico e farmoquímico destacaram-se positivamente, apesar dos déficits ainda crescentes nas respectivas balanças comerciais. “Não podemos deixar de reconhecer os avanços no nosso setor em razão das PDPs”, pondera Falci. A concessão de crédito, tanto via BNDES quanto via Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), melhorou muito em relação ao passado, tanto em quantidade e qualidade quanto no incentivo à inovação. O setor, também em decorrência das compras governamentais, tem apresentado um crescimento importante. “A criação das PDPs tem proporcionado uma melhor interação entre o governo e nossa indústria, visando racionalizar o poder de compra do Estado, reduzir os custos de aquisição do SUS e viabilizar a fabricação nacional de produtos inovadores essenciais à saúde pública. Infelizmente, essas melhorias não foram ainda sentidas em relação à área regulatória e na diminuição da burocracia em geral”.

A Hemobrás é um dos laboratórios públicos que avançaram no cumprimento de sua missão com o apoio de parceiros privados. Seu presidente, Romulo Maciel Filho afirma que, de forma geral, “a PDP tem proporcionado maior disponibilidade de medicamentos de primeira geração aos pacientes de hemofilia A, com redução de custos para o Ministério da Saúde, além de incorporação pelo País de tecnologia de ponta nessa área”.

“NOS ÚLTIMOS 200 ANOS NÃO HÁ EXEMPLO DE SUCESSO DE PAÍS DESENVOLVIDO QUE NÃO TENHA SIDO BASEADO NA INDÚSTRIA” – MARIO BERNARDINI

Na avaliação do diretor da Abimaq, a margem de preferência de até 25% que permite ao Estado oferecer melhores condições de preço aos produtores nacionais ainda é muito restrita em relação às necessidades da indústria. “A margem de preferência só se aplica em compras públicas e ainda assim pelo governo federal. Por enquanto, não é mandatória. É uma sugestão, que não foi regulamentada ao ponto de se tornar obrigatória. O efeito é muito pequeno, portanto. Espero que esse mecanismo seja estendido às compras públicas dos governos estaduais, das prefeituras e das autarquias. Por exemplo, o sistema Sesi-Senai não é obrigado a ter conteúdo nacional, nem margem de preferência”. Não é demais lembrar, complementa Bernardini, que os produtos asiáticos são mais baratos que os do resto do mundo “numa escala que vai de 30 a 50%. Quando consideramos somente produtos de consumo, os 25% da margem de preferência podem não ser suficientes”.

O diretor do Instituto Butantan, Jorge Kalil, entende que objetivos puramente econômicos não devem prevalecer sobre os objetivos sociais na concepção de uma política industrial para a área da saúde. “A política que deu origem às PDPs é de suma importância, desde que direcionada aos problemas de saúde pública mais do que a problemas econômicos. O fato é que a biotecnologia aplicada à área da saúde tem despertado grande interesse, não apenas de cientistas, mas da indústria, de investidores privados e também dos gestores públicos dos países emergentes, estes últimos preocupados com o impacto negativo dos produtos importados na balança comercial. Mas quais são as garantias de que uma política de PDP não seja temporária? Ou seja, que após a internalização de todas as tecnologias nós passemos de meros copiadores a inovadores? A resposta é simples: a política será realmente importante para o complexo industrial quando for além de seu viés econômico, ou seja, promotora de real inovação para o País. Isto só acontecerá quando passar a ser uma política de Estado, e não de governos”.

O chefe do Departamento de Produtos para Saúde do BNDES, Pedro Palmeira, compartilha a tese da relevância da inovação tecnológica como base da política industrial e a convicção de que somente um status de “política de Estado” teria o poder de consolidar esse viés. Ele chama atenção para a complexidade da tarefa de articular metas econômicas de curto prazo com objetivos de longo prazo. “Numa perspectiva ampla, acredito que a política industrial deva estar no centro da estratégia de desenvolvimento do País. Isto significa que a política macroeconômica deve criar um ambiente propício ao investimento, em especial aquele de maior risco. Infelizmente, o Brasil tem apresentado uma dificuldade enorme de conciliação dessas duas agendas”.

Na visão de Palmeira, o principal objetivo da nossa política industrial deve ser o de “alterar a estrutura do tecido industrial brasileiro em direção a atividades de maior valor agregado, tecnologia e inovação. Para isso, é necessário fazer escolhas e priorizar segmentos e oportunidades tecnológicas nas quais há possibilidade de inserção competitiva do País. É importante ressaltar também que resultados robustos de política industrial exigem tempo e resiliência, o que significa que a política industrial não deve ser subjugada por objetivos de curto prazo. Para contornar essa dificuldade do nosso sistema político, a política industrial deve ter uma instância de coordenação executiva forte e independente, que oriente os diferentes órgãos públicos na busca dos objetivos comuns de longo prazo”.

Tomando-se a inovação tecnológica como norte e o setor saúde como exemplo, fica fácil compreender por que os diversos instrumentos de política industrial precisam ser utilizados de forma articulada. Segundo Palmeira, “o sucesso de uma política industrial voltada para as indústrias relacionadas à saúde passa, necessariamente, pela formulação e implementação de instrumentos eficazes em três principais variáveis de política pública: o financiamento, a regulação e a utilização do poder de compra público. A variável do financiamento deve ser entendida aqui não na ótica do ‘balcão’, mas como aquele financiamento que induz, orienta e estrutura comportamentos empresariais alinhados com uma visão de trajetória industrial comprometida com o interesse maior de toda a sociedade. Na mesma linha de raciocínio, a regulação sanitária, que não pode se afastar nunca de seu papel primordial de garantir a segurança dos produtos de saúde registrados e comercializados no País, não deve executá-lo de forma desconectada de uma política de desenvolvimento industrial”.

Uma integração entre essas variáveis por meio das PDPs pode, na opinião de Palmeira, permitir que diferentes objetivos possam ser atingidos. “Entre eles, destaco a redução de custos de aquisição para o SUS por meio da produção local de insumos estratégicos e a ampliação do conteúdo tecnológico da produção local, induzida pela contrapartida de transferência de tecnologia para a empresa brasileira e o laboratório público”.

Embora a visão do executivo do BNDES corresponda às diretrizes básicas do programa de PDPs, parece que não tem havido consenso ou firmeza por parte dos atores públicos no momento de pôr em prática essas diretrizes. Ogari Pacheco, presidente da ABIFINA e do laboratório Cristália, confessase confuso diante da atuação do governo. “Em determinados momentos foi dito que estava mantido o eixo central da política, mas noutras ocasiões se disse que não, que a produção de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) não seria mais imprescindível. Espero que a política mantenha os pontos cardeais que a inspiraram – internalização do conhecimento e produção local de IFAs de forma verticalizada”.

INOVAÇÃO: PROCESSO CONTÍNUO E DE LONGO PRAZO

Em todos os setores industriais a inovação tecnológica tem o poder de introduzir diferenciais de competitividade. Na indústria química, entretanto, ela é um fator crucial, segundo Pedro Wongtschowski. “O desenvolvimento de novos processos, a contínua redução no consumo unitário de matérias-primas e utilidades e o acompanhamento de mudanças constantes por parte dos consumidores fazem parte da rotina dessa indústria. No caso da química fina, a redução de impurezas e de potenciais contaminantes é um requisito fundamental, que decorre da dinâmica da inovação associada ao conhecimento preciso dos mecanismos de reação”.

A substituição da síntese química convencional por processos biotecnológicos na química fina traz ainda uma dificuldade adicional às políticas públicas de apoio à inovação. Para Jorge Kalil, “qualquer política de incorporação biotecnológica à área da saúde pública desvinculada de uma política educacional que a acompanhe, ou mesmo que a anteceda – pois a formação de pessoas é algo demorado – simplesmente não funcionará no longo prazo. Quem realiza as políticas desenhadas são as pessoas, que, particularmente neste caso, devem ser extremamente capacitadas”.

Na visão do diretor do Butantan, vários fatores explicam por que o Brasil não traduz de maneira mais eficiente sua produção científica e tecnológica em inovação. “Acredito que um deles é o arcabouço montado para a realização de pesquisa de alta densidade tecnológica no País. Por exemplo, segundo o Ministério da Saúde temos 27 laboratórios públicos oficiais para pesquisa e produção de insumos farmoquímicos e biológicos, mas não chegam a meia dúzia aqueles que conseguem realizar pesquisa de ponta, e um número ainda menor chega a converter resultados de pesquisa em produtos para o benefício da sociedade”.

Para converter C&T em inovação, esclarece Kalil, as instituições brasileiras precisariam ser “desamarradas”. Um bom começo, em sua opinião, seria a convergência de um esforço nacional para inovação – “em outras palavras, um trabalho multidisciplinar e conjunto entre universidades, institutos de pesquisa e empresas, envolvendo consultorias, uso compartilhado dos laboratórios e projetos em parceria. O mais importante é cada ator manter seu foco nesse processo de convergência, num contexto muitas vezes desfavorável”.

No entanto, antes é preciso motivar esses diferentes atores para o trabalho conjunto. Para Antonio Corrêa de Lacerda, “existe ainda uma espécie de preconceito mútuo entre o setor privado e a área acadêmica, na medida em que ambos tendem a considerar o outro um ‘ser do outro mundo’. As empresas muitas vezes têm a visão de que a academia faz pesquisa deslocada do seu dia a dia. Na academia prevalece a visão de que não se deve misturar as coisas. Na verdade, trata-se evidentemente de iniciativas complementares, sendo a pesquisa básica o DNA da universidade e a inovação e aplicabilidade o DNA das empresas. Daí a oportunidade e premência de se criarem institutos mistos, que aproximem as duas vertentes com o apoio das políticas públicas. Da mesma forma, a legislação precisa flexibilizar os incentivos, pois muitas vezes o pesquisador está impedido de exercer atividades remuneradas fora da academia, o que evidentemente limita a sua ação”.

“espero que a política industrial para a saúde mantenha os pontos cardeais que a inspiraram – internalização do conhecimento e produção local de ifas de forma verticalizada” – OGARI PACHECO

O economista e professor Ronaldo Fiani concorda que o marco legal para o trabalho de pesquisadores do setor público na iniciativa privada pode melhorar, embora já tenha havido avanços. O problema maior, segundo ele, é de outra natureza. “Hoje a maior parte dos setores de tecnologia de ponta gera inovações fora do Brasil. Empresas estrangeiras fazem o seu P&D de fronteira nos países onde têm suas sedes, e não em países onde têm filiais. Filiais fazem P&D somente para adaptar seus produtos e tecnologias às características locais e para absorver conhecimento local que possa ser útil. Não há marco legal para pesquisadores universitários em empresas que resolva este problema. A questão é fortalecer a empresa nacional em setores de tecnologia de ponta, e aí sim fazer a ligação com pesquisadores acadêmicos”.

No momento de se passar da teoria à prática, a questão do desenvolvimento tecnológico conectado à produção industrial gera, inevitavelmente, algumas tensões. Uma delas é a fixação do preço a ser pago pelos produtos desenvolvidos por parceiros privados nas PDPs. Na opinião de Ogari Pacheco, este é um ponto sensível que não está devidamente esclarecido. “Entendo que, de um lado, o preço tem que ser suficientemente baixo para proporcionar um aumento do acesso da população ao medicamento. Porém, é preciso lembrar que não se trata apenas da entrega de um comprimido, de um xarope, de uma ampola. Há conteúdo tecnológico transferido para um ente público, o que significa que o produto é diferenciado. Seria injusto comparar o preço de um produto de PDP com um genérico, não só porque este é feito com insumos importados de países que querem dominar o mercado exportando a preços muito baixos, mas também porque o medicamento genérico não envolve nenhuma transferência de tecnologia”.

“A SOCIEDADE GANHA COM A PRODUÇÃO LOCAL, NA MEDIDA EM QUE PODE TER MAIOR CONTROLE SOBRE A ORIGEM DO PRODUTO E FÁCIL ACESSO AO FABRICANTE, QUANDO NECESSÁRIO” – GABRIEL GOMES

Segundo Pedro Palmeira, a questão é complexa. “Se por um lado o Estado tem o dever de ampliar o acesso da população a produtos de saúde, e neste assunto o preço é uma variávelchave, por outro lado é o preço de aquisição que viabiliza a estruturação de projetos de PDPs. O equilíbrio econômico- financeiro desses projetos garantirá a internalização de tecnologias de processos e produtos estratégicos para o SUS, contribuindo, em última análise, para a redução de sua vulnerabilidade. Uma possível forma de equacionar a questão seria precificar o custo da transferência de tecnologia, que permaneceria constante, segregando-o do preço de produção e comercialização, que poderia oscilar levando em conta variáveis de mercado”.

PDP garante ao laboratório privado vencedor da concorrência acesso exclusivo ao mercado público brasileiro, é natural que, em contrapartida, o preço se baseie em referências internacionais. “A reclamação que se ouve por parte dos empresários é que o preço do produto praticado internacionalmente não reflete o adicional ‘ensino e tecnologia’. O governo rebate dizendo que a garantia exclusiva de um dos maiores mercados do mundo por até dez anos, segundo a nova resolução anunciada em 12 de novembro último, cobre os custos desses fatores. Quem tem razão? Em minha opinião, ambos. A composição de preços de um produto objeto de uma PDP deveria levar em consideração outros dois fatores: o cálculo do grau de absorção nacional da tecnologia ao longo dos anos, isto é, a redução do preço do produto paralelamente à sua produção no País, seja por um laboratório público ou por uma empresa privada nacional; e o cálculo do ‘fator ou grau de manutenção da inovação do produto’ ao longo dos anos”.

A Hemobrás considera-se bem-sucedida na administração dessa questão. Romulo Maciel conta que foi estruturado “um modelo de preço capaz de cobrir todos os nossos custos administrativos, financeiros e operacionais de forma a permitir o maior acesso possível aos pacientes de hemofilia. Além de o preço inicial ser substancialmente menor que os praticados no mercado, inclusive em processos licitatórios efetuados, a Hemobrás comprometeu-se a repassar ao Ministério da Saúde todos os descontos previstos em nosso contrato com o detentor da tecnologia, garantindo de forma sustentável maior volume de medicamentos a um custo bem menor”.

Outro item indispensável para viabilizar o desenvolvimento tecnológico na área da saúde é a disponibilidade de financiamento em condições competitivas. Apesar dos indiscutíveis avanços conquistados nessa área, na avaliação do diretor do Butantan o financiamento em P&D no Brasil ainda é insuficiente. “Foram criados instrumentos e programas com este objetivo, mas o viés de tais programas é mais voltado à pesquisa do que à inovação de fato. As políticas para Ciência, Tecnologia e Inovação ficaram engessadas, atrasadas e altamente burocratizadas, travando o desenvolvimento de uma nova era, de um novo mercado, que presenciamos nesta década e que vivenciaremos nos anos vindouros”.

Pedro Palmeira enxerga a questão do financiamento à inovação como um processo evolutivo. “Para exemplificar, tomo o financiamento de longo prazo subsidiado para atividades inovadoras concedido pelo BNDES para as indústrias relacionadas à saúde. As condições e os objetivos do Profarma vêm evoluindo ao longo do tempo, no sentido de propor novos desafios à indústria alinhados com sua trajetória e sua característica intensiva em tecnologia. De maneira geral, acredito na eficácia do financiamento ‘paciente’, de longo prazo, que induza a indústria a evoluir dentro de suas possibilidades”.

TARIFAS E REGULAÇÃO: BARREIRAS INVERTIDAS

Países industrializados ou em vias de industrialização costumam lançar mão, em suas relações comerciais, de instrumentos que funcionem como obstáculos à entrada de produtos estrangeiros concorrentes, driblando, sempre que possível, as regras antiprotecionistas da Organização Mundial do Comércio (OMC). Além de mecanismos tarifários, no caso da química fina é muito comum a aplicação de restrições sanitárias, também conhecidas como “barreiras técnicas”. Lamentavelmente o Brasil não tem mostrado desenvoltura no manejo desses instrumentos, talvez pela inércia decorrente de quase duas décadas de um neoliberalismo econômico que liquidou parte da indústria nacional.

Martim Francisco de Oliveira e Silva, engenheiro do Departamento de Indústria Química do BNDES, reconhece que o sistema tarifário de comércio exterior está defasado em alguns aspectos. “A Tarifa Externa Comum foi estabelecida há alguns anos e, ao longo do tempo, algumas questões podem ter sido deixadas de lado. Matérias-primas que eram fabricadas localmente deixaram de ser, e tarifas de importação de produtos foram reduzidas por questões de segurança do abastecimento, o que pode ter criado distorções tais como o imposto de importação de um produto acabado se tornar inferior ao imposto de importação da matéria-prima utilizada para produzi-lo. Isto descaracteriza o princípio da escalada tributária, segundo o qual o imposto de importação deve ser progressivo à medida que uma cadeia de produção avança e adiciona valor dentro do País. Seria positivo fazer algumas revisões nesse sistema tarifário, ao menos para restabelecer o princípio da escalada tributária”.

Norival Bonamichi, sócio-fundador da Ourofino, concorda com a visão do engenheiro do BNDES e defende que os produtos agroquímicos mais elaborados deveriam ter maior tributo de importação do que suas matérias-primas. “Esta é uma ação de alta relevância para o setor de defensivos agrícolas, pois hoje há uma inversão de valores. Este é um claro desincentivo à indústria nacional e uma afronta à balança comercial brasileira, uma vez que o déficit do setor já supera US$ 7 bilhões, sendo um dos mais elevados de toda a indústria química brasileira”, analisa.

Outro problema é a falta de isonomia regulatória entre o produto fabricado localmente e o importado. No segmento agroquímico, que, ao contrário da indústria farmacêutica, não conta com mecanismos de política industrial que lhe favoreçam, essa injustiça regulatória está corroendo a base da cadeia produtiva, com consequências imprevisíveis para o abastecimento de defensivos à produção agrícola do País. Pesam nesse quadro as fiscalizações da Anvisa, que são feitas com o devido rigor nos fabricantes nacionais de defensivos agrícolas, enquanto o mesmo padrão não se aplica aos produtos importados. “Como a produção é no exterior, fica praticamente impossível a Anvisa verificar se o produto está sendo fabricado exatamente dentro das normas no que diz respeito à origem do ingrediente ativo, adjuvantes, surfactantes e todos os demais componentes da formulação. Enquanto isso, a produção brasileira segue rigorosamente todos os padrões estabelecidos”, ressalta Bonamichi.

Solucionar as disparidades no tratamento entre o produto nacional e o estrangeiro, tanto no campo tarifário como no normativo, será o caminho para o setor agroquímico se reerguer, a exemplo da indústria de medicamentos, na qual “o Brasil era totalmente refém da produção externa e os preços eram um pesadelo para o povo brasileiro”, como lembra Bonamichi. “Hoje a história é outra e o que se vê é uma indústria nacional forte, que gera tecnologia, empregos e tributos locais e uma competição de preços que trouxe benefícios a todos. Esperamos que esta mesma política seja implementada no setor de defensivos”.

Para Gabriel Gomes, chefe do Departamento de Indústria Química do BNDES, “o Brasil é um mercado muito grande, atraente, e muitas empresas querem vender seus defensivos aqui. Deveria ser dado incentivo para a produção local, assim como existe no segmento de medicamentos, em que os produtos mais importantes para as políticas públicas têm alguma prioridade na questão do registro”.

Um bom exemplo é o da Hemobrás, que teve aprovados pela Anvisa os registros do Hemo-8r e de quatro outros produtos obtidos a partir da transferência de tecnologia de um parceiro privado. Romulo Maciel afirma que as normas foram aplicadas integralmente e de maneira isonômica. Mas esta não é a regra geral para a indústria farmacêutica local. Segundo Marcio Falci, falta isonomia na ação da Anvisa “tanto no que diz respeito ao processo relacionado à aprovação de ensaios clínicos quando o parâmetro tempo é relevante, quanto no peso da burocracia estabelecida por legisladores de escritório. É preciso que nas normatizações se possa contar com facilitadores para a indústria encurtar seus tempos de desenvolvimento e registro, sem deixar de ser exigente com a eficácia, segurança e qualidade dos produtos”.

Gabriel Gomes arrisca uma explicação simples para o problema da falta de isonomia regulatória – “é mais fácil fiscalizar uma empresa que está aqui” –, e propõe que as políticas públicas na área da saúde valorizem mais este parâmetro de qualidade. “A sociedade ganha com a produção local, na medida em que pode ter maior controle sobre a origem do produto e fácil acesso ao fabricante, quando necessário”.

Para Romulo Maciel, o modelo da PDP mostrou-se valioso como instrumento indutor de maior autonomia nacional no âmbito do Complexo Industrial da Saúde. “A partir dos direcionamentos do novo marco regulatório, a Hemobrás estudará, a partir de diretrizes, orientações e avaliações integradas com o Ministério da Saúde, a possibilidade de novas parcerias”.

Na visão de Pedro Palmeira, do BNDES, o novo marco deverá trazer maior segurança jurídica e processual para todos os envolvidos. Mas, como oportunamente adverte Jorge Kalil, é fundamental rever a atividade regulatória como um todo, o que envolve não apenas a Anvisa como também o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e a Coordenação-Geral da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). “Estas organizações muitas vezes tropeçam nos seus processos burocráticos e no nível de qualificação de seus especialistas para discutirem assuntos específicos do setor e relacionados a detalhes ainda mais específicos de uma instituição, acabando, por vezes, por priorizar o dito ‘protocolo’ em detrimento da discussão técnica especializada de alto nível. Isto acontece em toda a cadeia de P&D, tanto para a aprovação de um produto e/ou estudo clínico, quanto durante o processo de importação de um insumo, ou mesmo no licenciamento de uma patente. Estamos engessados e ‘burrocratizados’”.

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