Apesar de sua modesta participação de 3% na produção mundial de medicamentos, o Brasil tem relevância crescente tanto para a indústria convencional quanto para a biofarmacêutica, por ser o 6º maior mercado consumidor. E os produtos de origem biotecnológica já respondem pela maior parcela das despesas do Sistema Único de Saúde (SUS) com medicamentos. Mas o desafio de conjugar o atendimento dessa demanda com as diretrizes de autonomia tecnológica estabelecidas pelo programa Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) ainda está longe de ser vencido.
O avanço da tecnologia farmacêutica no domínio da biologia molecular abriu espaço, nas duas últimas décadas, para uma nova biotecnologia capaz de produzir medicamentos que ultrapassam as limitações da síntese orgânica, criando possibilidades inéditas de desenvolvimento para a indústria. Encontram-se hoje em diferentes etapas de desenvolvimento no mundo mais de 900 medicamentos biológicos, entre os quais se destacam anticorpos monoclonais e vacinas.
Apesar de sua modesta participação de 3% na produção mundial de medicamentos, o Brasil tem relevância crescente tanto para a indústria convencional quanto para a biofarmacêutica, por ser o 6º maior mercado consumidor. E os produtos de origem biotecnológica já respondem pela maior parcela das despesas do Sistema Único de Saúde (SUS) com medicamentos. Mas o desafio de conjugar o atendimento dessa demanda com as diretrizes de autonomia tecnológica estabelecidas pelo programa Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) ainda está longe de ser vencido.
Segundo o ex-coordenador da área de Biotecnologia da Finep e atual consultor da Abifina Gilberto Soares, o Brasil não se preparou adequadamente para ser um player neste novo mercado, especialmente em questões relativas à regulação sanitária e de patentes. Porém, “marginalmente, ainda podemos ter chances no desenvolvimento de alguns produtos inovadores, principalmente aqueles cujos IFAs são constituídos de peptídeos, isolados de determinados materiais e posteriormente sintetizados, para uso no tratamento de um grande número de doenças”.
Entre as indústrias brasileiras que buscam se posicionar no mercado de medicamentos biológicos, as opiniões sobre nossas oportunidades nessa área se dividem, mas de forma geral as expectativas são positivas. Para Alcebíades Athayde, presidente da Libbs, há hoje uma conjunção de fatores muito favorável ao empreendedorismo em biotecnologia. “No modelo de desenvolvimento de novos produtos que observávamos até bem recentemente, e que teve seu auge na época dos blockbusters das pequenas moléculas para o tratamento de doenças mais comuns, o acesso à inovação era muito restrito. A descoberta do fármaco era feita dentro das grandes corporações, autossuficientes para conduzir todo o processo de desenvolvimento dos produtos ligados a essas moléculas, quer seja do ponto de vista científico, regulatório e comercial em praticamente todos os mercados mundiais”.
Segundo Athayde, houve uma resistência inicial das grandes corporações farmacêuticas em abraçar a causa da biotecnologia, o que estimulou pequenos empreendimentos. “Pesquisadores acadêmicos decidiram procurar outros caminhos para desenvolverem seus ‘bebês’, como eles se referem às suas criações. E o que observamos foi o surgimento de numerosas startups, muitas delas tendo como única propriedade a patente de um produto à espera de investidores. Estes não tardaram a surgir, e com eles uma variada gama de prestadores de serviços que, devidamente coordenados, dão conta de todo o ciclo de desenvolvimento de um novo fármaco”.
A percepção desse cenário pelo diretor-científico da Orygen, Andrew Simpson, é menos otimista, mas ainda assim ele acredita que avanços recentes na tecnologia para a produção de biofarmacêuticos favorecem países emergentes como o Brasil. Entre esses avanços, ele destaca o desenho das plantas produtivas, “que estão se tornando mais simples e mais padronizadas com a introdução de layouts modulares, o que resulta em diminuição de custos. Além disso, a possibilidade do uso de sistemas descartáveis tem reduzido o cronograma, o custo e a complexidade das instalações, embora ainda haja questões técnicas e de escala que limitam a adequação do uso de equipamentos descartáveis”.
Outro importante avanço, segundo Simpson, diz respeito ao aprimoramento dos processos de produção, “que permitiu, nas duas últimas décadas, a multiplicação por 20 do número de produtos obtidos a partir de células de mamíferos. Todos esses avanços, somados ao aumento da demanda global de medicamentos biológicos, abrem caminhos para a fabricação de biotecnológicos nos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil”.
Apoio governamental: P&D ainda é problema
A reativação e expansão da indústria fármaco-farmacêutica nacional com base na política de preferência nas compras governamentais é uma realidade, e sua contribuição para a segurança do sistema público de saúde é inquestionável. Por outro lado, o aumento da produção local tem servido mais a objetivos econômicos imediatos – redução de despesas do SUS com a aquisição de medicamentos – do que ao objetivo estratégico de promover a autonomia tecnológica do País no longo prazo. E o segmento biofarmacêutico também segue este padrão. Como diz Ogari Pacheco, presidente do Cristália, “a inovação é um viés ainda pouco explorado dentro do setor saúde no País e merece uma maior atenção e destaque”.
Para Gilberto Soares, os mecanismos governamentais de apoio ao desenvolvimento tecnológico não atendem algumas necessidades da pesquisa em biotecnologia. “Os projetos nessa área demandam complexa e cara infraestrutura. Ao passo que as necessidades financeiras para execução desses projetos vêm crescendo exponencialmente, os recursos orçamentários correspondentes – fundos setoriais da Biotecnologia (CT-Biotec) e da Saúde (CT-Saúde) – não acompanham o ritmo. Há necessidade de uma rigorosa avaliação do uso desses escassos recursos, tendo em vista que os resultados alcançados e a eventual apropriação dos mesmos para uso nos setores produtivos, no caso as empresas farmacêuticas nacionais, estão muito longe do esperado”.
Soares sugere repensar o modelo de financiamento público, em particular no que diz respeito às operações de crédito para as empresas interessadas em continuar atuando em atividades de pesquisa e desenvolvimento de biológicos. “O setor tem características muito particulares, principalmente no que diz respeito aos riscos inerentes às atividades de pesquisa e desenvolvimento de produtos inovadores, e a lógica dos modelos tradicionalmente usados pelos agentes governamentais, em meu entendimento, já não pode ser considerada adequada”.
Ainda no âmbito do financiamento de longo prazo, é essencial sublinhar o relevante papel do ProFarma/BNDES, lembra Reinaldo Guimarães, 2º vice-presidente da ABIFINA. “Ele tem estado presente em todos os principais movimentos ascendentes do mercado fármaco-farmacêutico brasileiro e neste momento vem sendo a alavanca financeira mais importante no financiamento das plantas ora em implantação para produtos de rota biotecnológica”.
Segundo o chefe do Departamento de Produtos para a Saúde do BNDES, Pedro Palmeira, “o desafio atual do Brasil na biotecnologia para saúde é ser um seguidor rápido. Nesse sentido, as políticas públicas têm atuado de forma coordenada para acelerar a convergência tecnológica por meio de três variáveis principais: poder de compra, regulação e financiamento. No caso do BNDES, em 2013 nós renovamos o Profarma e incluímos a biotecnologia para saúde como foco prioritário dessa ação. Em pouco menos de dois anos, a instituição contratou oito projetos na área, no valor de R$ 1,2 bilhão”.
O diretor do Instituto Butantan, Jorge Kalil, ratifica esse diagnóstico. “Há bom apoio à pesquisa biotecnológica, mas os valores dos projetos não têm o vulto necessário para o desenvolvimento de produtos. Além disso, os financiamentos têm curso muito lento até o efetivo desembolso, o que é problemático em se tratando de uma área de inovação muito competitiva internacionalmente”. Na opinião de Clarice Pires, presidente da Hygeia Biotecnologia, é preciso levar em conta, na análise desse problema, as crônicas dificuldades de articulação entre a indústria e as instituições acadêmicas de pesquisa. “Tipicamente a pesquisa e desenvolvimento no Brasil estão concentrados nas universidades públicas e institutos tecnológicos. As políticas de ciência e tecnologia abordam estas instituições de forma bastante desarticulada, de tal forma que o conhecimento científico gerado é guiado, sobretudo, pela oferta de conhecimento dos pesquisadores e professores destas instituições, e na maioria das vezes não tem seu foco nas necessidades da sociedade brasileira”.
O presidente da Recepta Biopharma, José Fernando Perez, entende que os percalços enfrentados para o desenvolvimento da biotecnologia nacional têm caráter sistêmico. “É preciso reconhecer que o ambiente para P&D no Brasil ainda é bastante hostil. As barreiras são inúmeras e enormes. Alguns exemplos são as dificuldades com as importações, a alta carga tributária, marco regulatório que requer atualização urgente, de forma a garantir maior agilidade nos processos e eliminar incertezas que dificultam a inovação. A relação academia-indústria, por sua vez, é prejudicada por insegurança jurídica quanto aos direitos de propriedade intelectual decorrentes de projetos em colaboração”.
Por outro lado, em contraponto aos comentários de Soares e Kalil, Perez entende que, em termos de recursos financeiros, o apoio governamental à pesquisa tem sido satisfatório. “Nota-se um empenho no sentido de buscar-se maior coerência e integração nas ações das agências, com programas que reconhecem a especificidade da área. As empresas dispõem de uma grande variedade de programas: subvenção econômica com recursos não reembolsáveis, empréstimos com juros subsidiados e, até mesmo, participação acionária de agentes públicos de fomento em projetos inovadores. O BNDES e a Finep têm se distinguido nessa atuação”.
Quanto ao apoio direto à produção local, é consenso entre empresários e executivos que a política governamental de preferência para o medicamento “made in Brazil” nas compras do SUS é um grande estímulo à indústria. Segundo Andrew Simpson, “os objetivos da política brasileira para o apoio ao desenvolvimento e à produção industrial na biotecnologia voltada à saúde humana se centram principalmente na substituição de importações e na redução do custo dos produtos de saúde para a população. O rápido aumento do consumo interno sem dúvida contribuiu para o desenvolvimento do setor biofarmacêutico”.
A edição da Portaria MS nº 1284 abriu as portas do sistema público de saúde à indústria doméstica de biomedicamentos. Ogari Pacheco destaca que essa forma de apoio é indispensável à sustentabilidade da biofarmacêutica nacional, “pois as pesquisas têm um custo muito alto e o governo é o maior consumidor dos produtos biotecnológicos. O que estimula as empresas a empregarem grandes valores é o pedido de compra do governo”. Nessa mesma linha de raciocínio, Clarice Pires afirma que, ao mobilizar o poder de compra do SUS, o governo federal “reduz os riscos inerentes ao desenvolvimento de produtos biotecnológicos, estimulando a indústria nacional a desenvolver e comercializar estes produtos em território nacional”.
O apoio governamental tem funcionado, na opinião da presidente da Hygeia, como um fator determinante para o desenvolvimento da indústria de biossimilares no Brasil. “Foi através do uso do poder de compra do SUS que se estabeleceram as parcerias para o desenvolvimento e produção de biofármacos nacionalmente. Acreditamos, entretanto, que há a necessidade imperativa da manutenção dos eixos originais desta política, garantindo o desenvolvimento local, a transferência da tecnologia e, sobretudo, a assimilação e produção destes medicamentos pelos laboratórios farmacêuticos oficiais”.
José Fernando Perez compartilha essa preocupação com o problema da verticalização da biotecnologia farmacêutica no País. “O uso do poder de compra do governo é muito importante, mas não pode ser considerado como um indutor de inovação. Ele funciona como indutor de economias e como um mecanismo que, ao mesmo tempo, assegura retorno às empresas e permite ao governo se apropriar de tecnologias estratégicas. A inovação poderá ser uma consequência, na medida em que as empresas estiverem dispostas a assumir os riscos e confiarem nos resultados do seu investimento”.
Na avaliação do presidente da Recepta Biopharma, embora a PDP seja um passo importante, “é necessário também que sejam enfrentados os gargalos de toda a rota para produção de biológicos. Isto envolve o domínio de todas as etapas de produção, como por exemplo a geração de linhagens celulares, a produção e armazenagem de master cell banks e o desenvolvimento do processo de produção específico para cada droga biológica. Se essas etapas não forem incorporadas à cadeia de competências, o País continuará dependente do exterior para qualquer novo desenvolvimento”.
Quanto ao ambiente regulatório, novamente as opiniões se dividem. Para Jorge Kalil, o grande entrave ao desenvolvimento da indústria nacional de biomedicamentos é o marco regulatório e a atuação das agências. “Como não há tradição de inovação em saúde no País, os processos são morosos e as agências ficam receosas ao se depararem com o novo, para o qual elas não têm parâmetros de julgamento comparáveis às congêneres internacionais”.
Odnir Finotti, ao contrário, considera que a regulação brasileira para os produtos biológicos “está alinhada com o que há de mais robusto e moderno no mundo. Tudo isso faz do Brasil um player com grande potencial nesse segmento”. Alcebíades Athayde, igualmente otimista nesse aspecto, observa que “hoje estamos nos preparando para fabricar biossimilares de anticorpos monoclonais e para isso já contamos com um marco regulatório alinhado com os mais exigentes do mundo”.
“Nosso marco regulatório é referência entre os BRICS”, acrescenta o presidente da Libbs. “Temos visto enorme boa vontade de todos os agentes do governo no que tange à biotecnologia. A evolução do marco regulatório, os financiamentos do BNDES e Finep, bem como as PDPs, mostram claramente que o governo percebeu que sem apoio maciço imediato o Brasil não conseguirá fincar pé nesta oportunidade”. Por outro lado, Athayde pondera que ainda há ajustes a serem feitos. “Nossa preocupação é que, pelas normas brasileiras, basta um fabricante nacional de máquinas declarar que pode produzir um determinado equipamento para que a importação seja sobretaxada e cessem os financiamentos do BNDES. Isto significa que qualquer fabricante de biorreatores para a indústria cervejeira poderá dificultar a importação de um biorreator para biofármacos. É o tipo de norma que não ajuda nem mesmo o fabricante nacional de biorreatores, porque o mercado da indústria cervejeira é a sua razão de ser. Para ele, a indústria farmacêutica é mais um problema do que uma solução, já que os equipamentos têm dimensões diferentes, especificações muito mais rígidas, necessidade de assistência técnica mais sofisticada e volume de produção muitíssimo menor. Nesse sentido, acho que as plantas pioneiras de indústria nascente não poderiam se submeter às mesmas regras de importação de equipamentos que vigoram para a indústria em geral”.
Estratégias de mercado: nichos, biossimilares e inovação
Diante de uma vasta gama de possibilidades e considerando as condições competitivas do Brasil no cenário internacional, qual seria a estratégia de mercado mais adequada à indústria brasileira de biomedicamentos? Buscar inovações radicais ou seguir a trilha dos biossimilares? Concentrar-se em nichos específicos nos quais é possível desenvolver alguma inovação? Diversificar a produção aproveitando a política de preferência para os biomedicamentos fabricados localmente?
Na opinião do presidente da Libbs, o Brasil deve manter aberto esse leque de opções. “A biotecnologia é uma plataforma tecnológica muito ampla e ainda em desenvolvimento. Por outro lado o Brasil é uma economia complexa e diversificada; há empresas de todos os tamanhos em praticamente todos os setores produtivos. Criadas as condições para o florescimento dessa tecnologia, acredito que só teremos a ganhar abrindo ao máximo as possibilidades”.
Essa percepção é compartilhada por José Fernando Perez e Odnir Finotti. Para o presidente da Recepta Biopharma, entre produtos novos e biossimilares a indústria local deve escolher, “sem dúvida, ambos. Os biossimilares são importantes para o equilíbrio da balança comercial e para reduzir custos do SUS no curto prazo. Além disso, sua produção promove uma capacitação necessária da indústria. Mas o País precisa também de produtos que tragam inovação se quiser se posicionar no mercado internacional”.
A escolha dos nichos, no que diz respeito aos biossimilares, é essencialmente ditada pela expiração das patentes dos produtos originadores e pela evolução de novas tecnologias, explica o presidente da Bionovis. “Recentemente alguns biofármacos de alta complexidade perderam proteção intelectual em certos países, como o Brasil, e são, portanto, os alvos naturais para o desenvolvimento de biossimilares. A maioria destes medicamentos é utilizada para o tratamento de doenças reumatológicas e oncológicas, essencialmente”.
Finotti acredita que o ponto de equilíbrio será atingido quando estiver instalada no Brasil uma plataforma tecnológica que inclua infraestrutura fabril de ponta, domínio do conhecimento e recursos humanos qualificados. “Essas conquistas virão a partir dos biossimilares, cujo desenvolvimento, fabricação e comercialização representarão o alicerce para que os produtos inovadores sejam desenvolvidos. O conhecimento adquirido durante o desenvolvimento de produtos biossimilares, ou mesmo na transferência de tecnologia de ponta para o Brasil, será fundamental para, em médio prazo, permitir que empresas nacionais tenham condição de desenvolver produtos realmente inovadores”.
A ideia de que o biossimilar é o primeiro passo para abrir caminho à inovação é praticamente unânime entre os entrevistados. Segundo Andrew Simpson, “espera-se que o desenvolvimento de produtos inovadores para o mercado global por empresas biofarmacêuticas emergentes no Brasil leve algum tempo. Por isso, a oportunidade de se iniciar a indústria biofarmacêutica no País com a produção de biossimilares é bastante promissora e tem o potencial de capacitar a expertise técnica da indústria, permitindo-lhe explorar áreas mais sofisticadas em um segundo momento”.
A principal força por trás do desenvolvimento de biossimilares, como observa o diretor da Orygen, é a possibilidade de se oferecer um produto altamente similar, seguro e eficaz, por um custo reduzido que encoraje a sua comercialização em substituição aos produtos originais, assim permitindo maior acesso ao medicamento pela população de menor renda. “O grande número de patentes expiradas e que irão expirar na próxima década, e o fato de a Anvisa estar delineando as vias de aprovação para biológicos e biossimilares, vão encorajar o desenvolvimento de biossimilares no Brasil”.
Simpson pondera que “até hoje, praticamente nenhum medicamento novo tem sido gerado fora das fronteiras dos países desenvolvidos. Atualmente o setor farmacêutico representa um dos polos das economias avançadas e uma das áreas nas quais países emergentes têm muita dificuldade de competir. Assim, acredito no estabelecimento de empresas biofarmacêuticas no País que, em primeira instância, produziriam medicamentos biossimilares e, em seguida, poderiam competir na área de medicamentos inovadores”.
O mesmo pragmatismo preside a avaliação de Gilberto Soares quanto às perspectivas da biofarmacêutica nacional. “Há que se buscar sempre produtos inovadores, mas a realidade de nossa atual capacitação tecnológica mostra que a saída imediata se encontra nos biossimilares”. Por outro lado, ele entende que as prioridades do SUS podem de alguma forma orientar uma política de nichos para empresas inovadoras, a exemplo da recente sinalização para medicamentos biológicos destinados ao tratamento de câncer e doenças autoimunes. “Os gastos públicos e privados com medicamentos para essas doenças estão se tornando perigosamente altos, em decorrência da importação da quase totalidade desses produtos”.
Perez reforça este argumento confirmando que “sem dúvida, o segmento de câncer é um dos mais promissores. Pode-se citar a imunoterapia, que foi considerada pela revista Science o ‘scientific breakthrough of the year 2013’. A publicação FiercePharma afirma que 50% dos tratamentos de câncer incluirão alguma forma de imunoterapia dentro de dez anos. A incidência de câncer cresce com o aumento da longevidade da população e o seu tratamento começa a impactar de forma significativa o sistema público de saúde e a balança comercial do País”.
A estratégia de nichos é a grande aposta da Hygeia, que vislumbra um futuro promissor nas áreas de saúde animal e humana com foco no desenvolvimento de vacinas e produtos biológicos, como enzimas e anticorpos monoclonais. “Como empresa de pesquisa e desenvolvimento na área de biotecnologia, entendemos que é imperativo o investimento sério em produtos e tecnologias inovadoras”, afirma Clarice Pires. “Acreditamos que o desenvolvimento de produtos biossimilares deve servir apenas para alavancar recursos a serem destinados ao desenvolvimento de produtos inovadores”.
Por outro lado, a presidente da Hygeia reconhece que “no Brasil há sempre a necessidade de mesclarmos modelos que garantem faturamento e diminuem o risco com modelos inovadores que garantem grandes lucros e saltos qualitativos relevantes”
Sintetizando as expectativas do mercado, Pedro Palmeira entende que, no longo prazo, a indústria deve caminhar e ser empurrada para o desenvolvimento de novas entidades moleculares. “Para isso, deverá aproveitar as competências desenvolvidas ao longo de toda a sua trajetória, como a formulação de genéricos e a discussão de propriedade intelectual, o desenho e a condução de ensaios clínicos para desenvolver biossimilares e inovações incrementais. Cada passo tem sua contribuição e converge para o mesmo objetivo”.
Desenvolvimento tecnológico: não há caminho fácil
Nos países líderes de mercado, o segmento da biotecnologia tem sido um dos exemplos mais significativos de articulação entre bancada, spin-offs e pequenas e grandes empresas em prol do desenvolvimento tecnológico e de mercado. Na visão do presidente da Libbs, esse fenômeno da inovação em rede “tirou da bigpharma o monopólio do desenvolvimento de novos fármacos, abrindo a um grande número de empresas a possibilidade de participar do processo”.
Athayde é um entusiasta dessa forma de organização. “Em breve o biossimilar brasileiro feito por empresas nacionais será uma realidade e nossa tarefa como empresários é olhar para o futuro não tão distante e nos prepararmos, criando condições para que o Brasil aproveite a janela de oportunidades da inovação em rede”. Nesse sentido, ele destaca a importância de iniciativas como a Rede Diáspora Brasil, que põe as empresas brasileiras em contato com pesquisadores brasileiros que estão fazendo pesquisa relevante fora do Brasil.
Os demais entrevistados são mais cautelosos na análise desse cenário. Simpson observa que, no Brasil, a grande maioria das empresas de biotecnologia em saúde se estabeleceu há pouco tempo, sendo expressiva e crescente a participação de pequenas e médias empresas de base tecnológica. Porém, a maioria delas “não tem se aventurado ainda em atividades inovadoras, visto que os recursos internos de P&D e infraestrutura muitas vezes são limitados”. Embora veja utilidade, até certo ponto, na estratégia de parcerias com pesquisadores de universidades e institutos de pesquisa, “uma série de fatores diminui sua eficácia. Entre eles, podemos citar a histórica falta de uma cultura empreendedora nas universidades brasileiras e a tradicional barreira entre os setores público e privado”.
Voltamos ao problema da falta de articulação entre indústria e academia, na medida em que as redes de inovação engajariam necessariamente atores dessas duas áreas. Para Pedro Palmeira, a articulação entre empresas e universidades é desejável, “mas ela não acontecerá sem que as empresas, lócus central da inovação, adquiram competências e ampliem seus investimentos em atividades de P&D. No Brasil, acreditamos que esse processo seja puxado pelas grandes empresas e traga consigo as pequenas empresas de base tecnológica, que passam a acessar o conhecimento e as oportunidades disponíveis nas universidades brasileiras”.
Gilberto Soares entende que as parcerias oferecem boas chances de sucesso na pesquisa e desenvolvimento de medicamentos biológicos inovadores, “principalmente quando os entes que se associam têm uma completa compreensão de seus papéis e responsabilidades no projeto que irão executar de forma cooperativa”. No entanto, mesmo acreditando que este seria o melhor caminho a seguir, ele admite que, “lamentavelmente o Brasil não tem tradição de bons exemplos de parcerias para o desenvolvimento de medicamentos”.
Luiz Fernando Perez, da mesma forma, acredita que o Brasil não conseguirá seguir esta trajetória na área de saúde. “As empresas brasileiras ainda não investem em P&D de biofármacos. A indução pelo governo parece ser o caminho mais viável no momento”.
Para Clarice Pires, a dificuldade de se envolver indústria e academia em projetos conjuntos é “uma consequência da burocracia interna das instituições, da falta de preparo e interesse dos cientistas e pesquisadores em parcerias com o setor produtivo, enfim, da inoperância generalizada das instituições devido às dificuldades de alocação de recursos financeiros e humanos”. Mas ainda assim a articulação é possível, em sua opinião. “A Hygeia, como uma empresa startup do ramo de biotecnologia, tem a oportunidade de trabalhar em estreita colaboração com o setor acadêmico do estado do Rio de Janeiro”.
O presidente da Bionovis, da mesma forma, entende que as dificuldades de articulação entre o setor produtivo e a academia não são insuperáveis. Ele pensa na construção de “uma ponte capaz de conectar com eficiência a excelência acadêmica em biotecnologia que temos no País com a aplicação desse conhecimento pela indústria”. Para isso, há que investir em alguns grupos de excelência de forma contínua e intensa, visando o domínio do conhecimento aliado à competência para o desenvolvimento tecnológico.
Finotti considera que uma boa estratégia nessa direção seria a capacitação e profissionalização dos Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) das instituições de ensino/pesquisa brasileiras, “tornando-os aptos a identificar com eficiência grupos e linhas de pesquisa com potencial para desenvolvimento de biofármacos, orientando pesquisadores com vocação para o desenvolvimento tecnológico a, desde o início, considerarem a proteção intelectual, os aspectos regulatórios e os aspectos mercadológicos. Esses NITs também devem ser capazes de, à semelhança do que EUA e UE fazem muito bem, transformar esse conhecimento em patentes robustas e identificar parceiros para licenciamento”.
Quanto à viabilidade de se formarem no Brasil amplas redes de inovação, envolvendo pequenas e grandes organizações, a presidente da Hygeia expressa o mesmo ceticismo da maioria dos entrevistados. “Tendo em vista o alto risco na área de biotecnologia, as empresas criadas no âmbito das universidades, spin-offs e pequenas empresas focaram em projetos de inovação radical, usualmente com um único produto oriundo da pesquisa básica desenvolvida por estes profissionais dentro das instituições de pesquisa. Está claro para nós que o mercado de venture capital não é capaz de sustentar o desenvolvimento da biotecnologia no Brasil. Além do mais, faltam empresas inovadoras nas incubadoras e aceleradoras nacionais”.
Nesse cenário majoritariamente pessimista quanto à capacidade dos atores nacionais de se organizarem em redes para desenvolver conjuntamente a biotecnologia farmacêutica local, resta considerar como alternativa para queimar etapas a transferência de tecnologia em moldes convencionais. No entanto, também aí há dificuldades. “A transferência de tecnologia garante o suprimento de produtos essenciais para a sociedade brasileira, mas não transfere conhecimento ou capacitação para inovação”, adverte Clarice Pires.
“Sob o ponto de vista dos envolvidos na transferência da tecnologia, há que fazer algumas ponderações”, acrescenta a presidente da Hygeia. “Os laboratórios farmacêuticos originadores de tecnologia não têm interesse na transferência da tecnologia de produção, a não ser no que tange a aumentar ou reduzir perdas do mercado consumidor. Por outro lado, transferências de tecnologias de produtores de biossimilares esbarram sempre nos parâmetros de qualidade e comparabilidade dos produtos, bem como em aspectos regulatórios. Há que avaliar também a competência dos receptores da tecnologia sob o ponto de vista de infraestrutura, conhecimento técnico, logística e cultura organizacional”.
Gilberto Soares chama atenção, igualmente, para o problema da absorção de tecnologia pelo contratante. “Uma das claras deficiências que temos é a de recursos humanos capacitados para atuarem nessa área. Esta é a base necessária para que os contratos de transferências não se transformem em verdadeiras armadilhas de difícil desmontagem, gerando como consequência grandes prejuízos financeiros. Posso estar enganado, mas acredito que há poucos quadros disponíveis no Brasil com tal capacitação”.