REVISTA FACTO
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Abr-Jun 2014 • ANO VIII • ISSN 2623-1177
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//Artigo

INSUMOS ATIVOS E INTERMEDIÁRIOS QUÍMICOS: O ELO FRÁGIL DAS CADEIAS PRODUTIVAS DA QUÍMICA FINA

O governo brasileiro instituiu e vem implantando um conjunto de políticas públicas voltado para a conquista de maior autonomia na cadeia produtiva do setor farmacêutico. Cerca de cinco anos decorridos do início do programa Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), entretanto, observa-se que a cadeia produtiva continua vulnerável no seu elo mais estratégico: a produção local de princípios ativos. Há um descompasso entre a produção de medicamentos para o sistema público de saúde no âmbito das PDPs e a nacionalização dos respectivos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs).

O governo brasileiro instituiu e vem implantando um conjunto de políticas públicas voltado para a conquista de maior autonomia na cadeia produtiva do setor farmacêutico. Cerca de cinco anos decorridos do início do programa Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), entretanto, observa-se que a cadeia produtiva continua vulnerável no seu elo mais estratégico: a produção local de princípios ativos. Há um descompasso entre a produção de medicamentos para o sistema público de saúde no âmbito das PDPs e a nacionalização dos respectivos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs).

A revitalização da indústria farmoquímica após o desmantelamento provocado pelas políticas neoliberais dos anos 1990 é, inevitavelmente, um processo lento, na medida em que requer instalações e tecnologias novas. Porém, se o poder público se empenhar mais na eliminação dos persistentes gargalos burocráticos e regulatórios, e aprofundar sua Política de Desenvolvimento Produtivo do Complexo Industrial da Saúde, esse processo poderá ganhar velocidade, o setor farmoquímico agregará valor aos medicamentos produzidos no País e passará a contribuir, como se espera, para a redução do progressivo déficit da balança comercial brasileira, que tem na área química um lamentável destaque.

“PELA FALTA DE INFRAESTRUTURA NO PAÍS QUE POSSIBILITE SERMOS COMPETITIVOS, SÓ NOS RESTA TRABALHAR COM MOLÉCULAS EXCLUSIVAS, SOB PROTEÇÃO PATENTÁRIA”
DANTE ALARIO

A perda de valor agregado na cadeia produtiva se manifesta de maneira ainda mais acentuada no setor de defensivos agrícolas. Segundo o presidente da Ourofino Agrociência, Jurandir Paccini, o Brasil está em franco retrocesso nessa área. “A síntese foi reduzida drasticamente nos últimos dez anos, a ponto de responder hoje por uma ínfima parcela da produção de defensivos comercializada no País. O mesmo problema começa a afetar também os produtos formulados”.

No ano passado, o volume de importação de defensivos formulados aumentou 44%, chegando a 250 milhões de litros, o que representa um faturamento médio de US$ 2,5 a 3 bilhões, impactando negativamente a balança comercial brasileira. O déficit da balança no setor de defensivos, que há cinco anos era próximo de zero, hoje supera US$ 5 bilhões, sendo que os produtos formulados respondem por metade desse valor. “Esta tendência precisa ser revertida, e rapidamente”, adverte Paccini. “De acordo com um estudo feito pelo BNDES, o setor de defensivos é um dos que mais contribuem para o déficit da balança comercial da área química brasileira. Por outro lado, segundo o mesmo estudo, este é o setor de maior viabilidade para uma intervenção corretiva. Algumas ações, principalmente no campo tributário, podem alterar esta situação, pelo menos no que diz respeito aos produtos formulados. A área de síntese é mais complexa e requer um pouco mais de discussão, de estudo”.

Nesta reportagem, empresários e especialistas apontam os gargalos que obstruem o desenvolvimento dos setores fármaco–farmacêutico e agroquímico e discutem estratégias para fortalecer as respectivas cadeias produtivas.

ESTRATÉGIAS PARA A FARMOQUÍMICA: DAS COMMODITIESÀ INOVAÇÃO

Uma vez reativada a produção de fármacos no País, há que se pensar sobre as estratégias possíveis para sustentar e ampliar essa produção no futuro. Os caminhos mais evidentes são os seguintes: 1º) produção em grande escala de moléculas de baixo valor agregado, ou seja, commoditiesfarmoquímicas; 2º) desenvolvimento e produção dirigidos a novas entidades químicas, ou seja, inovações radicais; 3º) desenvolvimento e produção de variações de moléculas de maior valor agregado, isto é, inovações incrementais (ou “novas entidades moleculares”, segundo o jargão da FDA norte-americana); e 4º) desenvolvimento e produção de moléculas livres de proteção patentária que constituam prioridades estabelecidas pelo setor público de saúde, em sintonia com a política de preferência à indústria nacional consubstanciada nas PDPs.

As opiniões dos entrevistados divergem em alguns aspectos na avaliação dessas estratégias. Para Dante Alario, presidente técnico-científico da Biolab, a primeira estratégia deve ficar a cargo do governo, “que ainda acredita que estatizar o setor farmacêutico é a solução para tudo”. A segunda e a terceira estratégia são as praticadas pela Biolab, pois “entendemos que, pela falta de infraestrutura no País que possibilite sermos competitivos, só nos resta trabalhar com moléculas exclusivas, sob proteção patentária”. Ele se refere especialmente à falta de produção de intermediários de síntese no Brasil. “Comprando quase tudo lá fora, nunca seremos competitivos – daí a necessidade de buscar o rumo dos produtos patenteados”.

Alario considera que a inovação, seja radical ou incremental, é o melhor caminho para a indústria farmoquímica local, e reivindica que as moléculas geradas por esse processo tenham tratamento diferenciado por parte dos órgãos financiadores, da Anvisa, da CMED e do MS, sob forma de compras preferenciais. “A indústria retribuiria o incentivo através de contratação de mão de obra qualificada – mestres, doutores e especialistas -, geração de impostos, exportações, internacionalização etc”.

A quarta estratégia, segundo o presidente da Biolab, foi a implementada pela antiga CEME e não deu bom resultado, “pois as necessidades dos governos muitas vezes não são compatíveis com o mercado. Mesmo que se garanta um mercado através de compras governamentais, quando estas acabam os produtos tendem a acabar junto, pois não há mercado para eles fora do sistema público. É o atual caso dos produtos biotecnológicos, em que é preciso fazer pesquisa em paralelo para não se ficar dependente unicamente dos biossimilares, que serão trocados por novos produtos”.

“A INSERÇÃO COMPETITIVA DA INDÚSTRIA FARMOQUÍMICA BRASILEIRA REQUER A IDENTIFICAÇÃO E/OU A CRIAÇÃO DE OPORTUNIDADES EM NICHOS DE MERCADO DE MOLÉCULAS DE MAIOR VALOR AGREGADO, NOS QUAIS SEJA POSSÍVEL EXPLORAR VANTAGENS QUE A INDÚSTRIA BRASILEIRA POSSA OFERECER, BUSCANDO O EQUILÍBRIO ENTRE PREÇO E QUALIDADE”
PEDRO PALMEIRA

O presidente da Cristália, Ogari Pacheco, entende, ao contrário, que esta última estratégia é das mais viáveis. “Parece-me ser o caminho menos difícil, pois os alvos estão claramente delineados, conhecidos e são de fácil comparabilidade. Por outro lado já existem consumidores ávidos por estes princípios ativos, o que torna mais certa a colocação da produção. Com o advento da lei da preferência à produção nacional, temos uma vantagem não negligenciável”.

Na avaliação de Pacheco, a produção em larga escala de moléculas de baixo valor agregado seria uma política errada, “pois teríamos que competir com produtores de alta eficiência, detentores de grandes plantas, já amortizadas, praticando preços de commodities. Seria uma decisão desastrosa!”. Quanto à segunda estratégia, “em princípio, para quem dispuser de tempo e dinheiro suficientes, parece-me uma alternativa válida. No entanto, entendo ser um caminho árduo, longo e difícil”. Menos árdua seria, em sua opinião, a terceira estratégia, considerando-se o fator atenuante de que “se parte de entidades já conhecidas e, portanto, teoricamente, o desenvolvimento seria mais fácil. Ainda assim é um trabalho e tanto”. Um caminho que deve merecer mais atenção, segundo ele, é o de se buscar produção para nichos, “em que normalmente há baixa oferta de princípios ativos e margens mais convenientes”.

A estratégia de nichos é apontada como uma das mais promissoras por Pedro Palmeira, chefe do Departamento de Produtos para Saúde do BNDES, e, no seu entender, tem pautado inclusive as prioridades do setor público. “A inserção competitiva da indústria farmoquímica brasileira requer a identificação e/ ou a criação de oportunidades em nichos de mercado de moléculas de maior valor agregado, nos quais seja possível explorar vantagens que a indústria brasileira possa oferecer, buscando o equilíbrio entre preço e qualidade”. Entre as oportunidades existentes, segundo ele, podem ser exploradas as vantagens relacionadas à proximidade entre o produtor do IFA e a empresa farmacêutica brasileira, IFAs de medicamentos com oferta controlada tais como produtos constantes da Portaria nº 344/98, IFAs considerados de alta potência, com janela terapêutica estreita ou IFAs de classes terapêuticas destinadas ao tratamento de doenças que atingem o sistema nervoso central ou cardiovascular.

Do ponto de vista do mercado público as iniciativas têm caminhado nesse sentido, afirma Palmeira. “Medidas do Ministério da Saúde como a Portaria nº 3031/08 (que incentiva a compra de IFAs produzidos no País pelos laboratórios públicos), além das PDPs, têm se mostrado importantes para impulsionar a produção nacional, embora possuam alcance limitado ao portfólio de produtos estratégicos do SUS”. Uma estratégia mais ampla de diferenciação em nichos passa, no seu entender, pelo fortalecimento da reputação da indústria farmoquímica brasileira com base na qualidade do produto e nas Boas Práticas de Fabricação (BPF) reconhecidas em âmbito nacional e internacional.

Assim como o presidente da Cristália, o executivo do BNDES não acredita na viabilidade econômica da primeira estratégia. “O parque industrial farmoquímico brasileiro atualmente é pequeno se comparado à indústria global de IFAs. Uma estratégia com o objetivo de melhorar a inserção dos produtos brasileiros deve levar em consideração as condições de competitividade da indústria frente à concorrência internacional. Existem segmentos de IFAs nos quais a indústria brasileira parece não ser competitiva, e as moléculas de baixo valor agregado exemplificam bem esse caso. A dinâmica recente do mercado internacional de IFAs, caracterizada pela concentração da produção em países asiáticos, como China e Índia, tornou a elevada escala de produção um importante fator de competitividade da indústria, contribuindo, em boa medida, para um processo de commoditização do mercado”.

O presidente da Globe Química, Jean Peter, manifesta certa decepção com a maneira como tem sido gerida a quarta estratégia para o setor farmoquímico. E suas razões são baseadas na experiência concreta da empresa, que, em parceria com o Instituto Vital Brazil (IVB), desenvolveu o IFA Imatinibe, molécula do ativo principal de um oncológico, mas até hoje não teve seu produto registrado na Anvisa para efeito de substituição de importações. O laboratório farmacêutico privado, engajado na PDP, continua fornecendo ao governo o medicamento fabricado com IFA importado.

“Garantia de mercado é algo muito relativo”, pondera Jean Peter. “Eu preferiria que nós tivéssemos algumas vantagens competitivas em termos de custo. Produzir no Brasil é caro, muito caro. Esta é uma desvantagem muito grande que a indústria farmoquímica enfrenta. E depois, para iniciar um processo que demandará a construção de uma unidade e viabilizar esse investimento, os cinco anos garantidos pelas PDPs são muito pouco tempo. No caso do Imatinibe, por exemplo, nós iniciamos no final de 2011 o investimento. Estamos em 2014 e ainda não vendemos comercialmente nem um quilograma. Estamos nos preparando, já produzimos mais de 150 kg, com padrão internacional de qualidade. E estamos preparados para, tão logo ocorra a inclusão de fornecedor pela Anvisa, passar a fornecer imediatamente para que o Brasil pare de importar o produto”.

A Globe Química tem apostado firme na quarta estratégia, mas ainda não conseguiu colher os frutos. “Nós já desenvolvemos e temos em laboratório toda a formulação do Capecitabina e do Hidroxiuréia, ainda não em produção industrial mas já em condições de iniciar a produção dos lotes pilotos para colocar em estabilidade. Esses produtos são oncológicos que ainda não têm parceria definida. Eles faziam parte da consulta pública do Laboratório Químico-Farmacêutico da Aeronáutica (LAQFA), feita há um ano e meio e que foi impugnada. Ao que nos consta, agora o LAQFA está relançando o projeto para ser o laboratório público produtor desses medicamentos oncológicos”.

ISONOMIA REGULATÓRIA: META AINDA DISTANTE

Indagado sobre eventuais gargalos e dificuldades no desenvolvimento das PDPs voltadas para farmoquímicos, o presidente da Cristália repete, sempre que surge uma oportunidade: “melhor, só se for verdade – ou seja, se tiver vindo para ficar”.

Mas essa visão otimista não é um consenso. Ao contrário, para a maioria dos entrevistados o Brasil ainda está distante da isonomia regulatória indispensável à inserção competitiva dos farmoquímicos produzidos localmente. A lista de fármacos com registro obrigatório na Anvisa ainda é muito restrita, o que favorece importações, e o processo de registro, mesmo em se tratando de produtos prioritários para o sistema público de saúde e desenvolvidos no sistema das PDPs, portanto destinados a substituir IFAs importados, continua emperrado pela burocracia.

A natureza do processo é lenta, e também é lenta a fase de inclusão de fornecedores, constata o presidente da Globe. No caso do Imatinibe, “demos entrada no pedido de inclusão de fornecedor – nós não, o IVB – no final de março/abril e ainda estamos aguardando uma manifestação da Anvisa. Tudo foi feito em conformidade com os padrões técnicos. Concluímos todo o processo de desenvolvimento, incluindo análise de estabilidade e de impurezas do IFA. Produzimos o medicamento dentro dos conformes. Agora é uma questão de burocracia”.

A inclusão do fornecedor nacional junto à Anvisa não é responsabilidade da empresa farmoquímica, e sim da empresa farmacêutica compradora do IFA. “Para incluir um produtor nacional é uma demora tremenda. Nós deveríamos ter um processo super rápido, desde que atendesse aos padrões de qualidade do IFA e do medicamento, mas não é o que ocorre na prática. Tem inclusão de fornecedor que leva até dois anos. Evidentemente, pode ser que alguns não atendam aos padrões necessários. Mas se tudo está dentro dos conformes, não é razoável demorar tanto tempo. O Brasil perde com isso. Perde divisas, deixa de produzir, e as empresas deixam de ter recursos para investir em novos projetos. É um processo em que supostamente temos um fast track, mas esbarramos no traço cultural brasileiro do ‘é amanhã, amanhã, amanhã…”, lamenta Jean Peter.

Comparando com o número de PDPs aprovadas, o presidente da Globe considera que o volume de fármacos efetivamente produzidos no Brasil é muito pequeno ainda. “Evidentemente existem aspectos técnicos que precisam ser analisados em detalhes, mas, na minha ótica, poderíamos ter avançado mais rapidamente. Há que se reconhecer que a indústria brasileira de IFAs não cresceu na proporção dos projetos aprovados”.

A morosidade do processo de registro de fornecedores, na opinião de Jean Peter, tem implicações na própria viabilidade econômica das PDPs. “Construímos a unidade fabril em tempo recorde, desenvolvemos em laboratório lotes pilotos para as análises de estabilidade e posteriormente lotes pilotos do produto farmacêutico com a nossa matéria-prima. Esse processo, lento e intensivo em investimento, foi concluído em março deste ano, e até hoje o rendimento desta unidade é zero”. De acordo com o presidente da Globe, os cinco anos estabelecidos nas PDPs não atendem às necessidades do produtor do IFA, porque entre a construção da unidade e a conclusão de todos os testes decorrem no mínimo dois a três anos e, dependendo do caso, até quatro anos.

“GARANTIA DE MERCADO É ALGO MUITO RELATIVO. EU PREFERIRIA QUE NÓS TIVÉSSEMOS ALGUMAS VANTAGENS COMPETITIVAS EM TERMOS DE CUSTO. PRODUZIR NO BRASIL É CARO, MUITO CARO. ESTA É UMA DESVANTAGEM MUITO GRANDE QUE A INDÚSTRIA FARMOQUÍMICA ENFRENTA”
JEAN PETER

“É um processo que requer visão de longo prazo. São pontos que nós vamos ter que examinar de novo, pois qualquer empresário vai considerá-los antes de investir. Para amortizar um investimento dessa natureza é preciso um período de pelo menos cinco anos de vendas. Se o empresário investe, faz um projeto de dois a quatro anos, e depois tem só um ano de vendas para recuperar o investimento, não será viável. Esta é uma questão que precisa ser repensada. Outra questão que deverá ser analisada é a econômico-financeira, porque tem inflação vindo aí, desvalorizações. De uma forma ou de outra, a gente queira ou não, nenhum produto é totalmente verticalizado. Sempre há uma parcela de custo em dólar, e esta é uma variável que precisamos considerar”, argumenta Jean Peter.

Zich Moysés Júnior, consultor sênior do setor farmoquímico–farmacêutico, concorda que a persistente desvantagem competitiva da indústria farmoquímica nacional se deve em grande parte à morosidade da análise para substituição de um fármaco importado pelo fármaco produzido no Brasil. “O principal gargalo é a área de regulação sanitária. As exigências de BPF para empresas sediadas no Brasil são extremamente importantes, mas devem obrigatoriamente atingir todas as empresas que exportam fármacos ou medicamentos para o Brasil. Há também a questão de exigências ambientais, trabalhistas e fiscais, aqui bem mais restritivas do que na maioria dos países que nos fornecem. Além disso, alguns países subsidiam, mesmo contra a OMC, a venda de produtos para outros países, algumas vezes via OMS. De forma a evitar qualquer possibilidade de desabastecimento, esse controle pode e deve começar pelos fármacos já produzidos no Brasil”.

“ESPERAMOS QUE HAJA INCENTIVO DO GOVERNO PARA FORTALECER AS INDÚSTRIAS EXISTENTES E PROPICIAR A CRIAÇÃO DE NOVAS EMPRESAS, AUMENTANDO A PROCURA POR MÃO DE OBRA ESPECIALIZADA. OU SEJA, QUE A RODA VOLTE A GIRAR, CRIANDO UM PROCESSO DE GERAÇÃO DE MÃO DE OBRA ESPECIALIZADA PARA OS SETORES QUÍMICO, FARMOQUÍMICO E FARMACÊUTICO NO NOSSO PAÍS”
JOSÉ LOUREIRO

O presidente da Nortec Química, Nicolau Lages, igualmente entende que a ausência de um canal de priorização de análise de registro para medicamentos fabricados com IFA nacional, bem como para inclusão de fabricante de IFA nacional em registros já existentes, é um grande obstáculo ao desenvolvimento da farmoquímica nacional. E acrescenta ao rol de dificuldades o fato de que muitos IFAs produzidos localmente não integram a lista obrigatória de registro (IN nº 15), “o que faz com que fiquem expostos à concorrência desleal dos produtores asiáticos”. A este rol se somam, ainda, outros entraves burocráticos, tais como lentidão nas atividades de inspeção de cargas importadas sujeitas ao controle da Anvisa em portos e aeroportos, “o que pode gerar pagamento de elevadas taxas de armazenagem dessas cargas”, e lentidão também na liberação de exportações de IFAs controlados pela RDC nº 344.

A área pública não ignora os gargalos regulatórios. Para Pedro Palmeira, “a ampliação da lista de IFAs da RDC nº 57/09, que regula o registro de insumos farmacêuticos no País, e o fortalecimento das ações de fiscalização da Anvisa sobre fornecedores de IFAs estrangeiros, constituem importantes passos no sentido da consolidação de um sistema regulatório rigoroso no que diz respeito à conformidade dos IFAs consumidos no Brasil”. Ele comenta que, nos Estados Unidos, estão em curso ações mais severas de fiscalização da FDA sobre fornecedores asiáticos de IFAs, o que poderá abrir oportunidades para a indústria brasileira na ocupação de parte desses espaços de mercado.

A Anvisa, por sua vez, declara estar atenta ao problema e empenhada em solucioná-lo. Segundo Antônio Mallet, responsável pela Gerência-Geral de Medicamentos (GGMED) da agência, “pode-se adiantar que a estratégia prevê um escalonamento de modo a delimitar prazos para a solicitação do registro sanitário e prazos limites para a importação de produtos cujo registro sanitário ainda não teve aprovação pela Anvisa. A expectativa é que em 2018 todos os IFAs já tenham registro para comercialização no País”.

No setor agroquímico, as dificuldades para a implantação de uma indústria local de princípios ativos são incomparavelmente maiores do que no setor farmacêutico, a começar pelo fato de que ele não conta com uma política de preferência para o insumo nacional. Ao contrário, as políticas públicas nessa área sinalizam na prática para uma preferência às importações, e não apenas de ingredientes ativos como também, cada vez mais, de produtos formulados.

Segundo Jurandir Paccini, da Ourofino, o primeiro obstáculo é “uma política tributária completamente irracional, em que o imposto de importação do produto formulado muitas vezes é zero e o imposto de importação dos ingredientes ativos desse mesmo produto chega a 12%. Portanto, economicamente é mais viável importar o produto já pronto do que fabricar. Então, a primeira ação seria evidentemente ajustar essas tarifas de importação para inverter o incentivo”.

São várias as medidas que precisam ser tomadas, na opinião de Paccini, e com urgência. “O caso da formulação é mais crítico, porque o País tem todas as condições de manter essa produção. Existem plantas industriais e a cadeia química não é complexa, consistindo basicamente no fornecimento de solventes, adjuvantes e embalagens. Ou seja, temos aqui todos os componentes necessários”.

Tal como os medicamentos produzidos no País, os agroquímicos sofrem ainda com a falta de isonomia regulatória, conforme relata o presidente da Ourofino. “Os produtos importados prontos não são fiscalizados pelos órgãos regulatórios da mesma maneira que os produzidos localmente. Não é errado a Anvisa, Ibama e Mapa realizarem essas fiscalizações, obviamente que não. É o papel de direito que esses órgãos tem, mas há uma discrepância enorme de tratamento entre o produto importado e o de fabricação local”.

A falta de isonomia se faz sentir também quando a indústria nacional necessita fazer alterações pós-registro, como inclusão de embalagens, fabricantes, formulador, culturas e componentes das formulações. Se por algum motivo a indústria entende ser conveniente um ajuste na sua fórmula, inclusão de novo fabricante para aumentar a competitividade no mercado, incluir uma nova embalagem de mais fácil manuseio e outras alterações que não necessitam de análise técnica, isso implica dispêndio de tempo e trabalho para conseguir o aceite da alteração junto aos órgãos regulatórios, ao passo que o produto importado submetido às mesmas mudanças entra no País sem que seja exigida a rastreabilidade de produção”.

PERDA DE COMPETÊNCIA TÉCNICA

Pedro Palmeira identifica outro tipo de gargalo que, em sua opinião, é dos mais relevantes. Trata-se da internalização de novas competências técnicas “que possam tornar a indústria de IFAs mais preparada para o desenvolvimento e produção de entidades moleculares de maior valor agregado, sejam novas moléculas ou variações de moléculas existentes. A farmoquímica brasileira domina os processos químicos considerados clássicos, mas apresenta fragilidades em tecnologias mais sofisticadas, como por exemplo, nos processos enantiosseletivos ou naqueles que envolvam faixas de temperaturas de trabalho mais extremas”.

A garantia de qualidade na produção e o desenvolvimento de novas competências técnicas, segundo o executivo do BNDES, devem ser conjugados com maior investimento em inovação por parte das empresas farmacêuticas brasileiras, “que devem criar uma demanda importante de IFAs de maior desafio tecnológico e, consequentemente, de maior valor agregado. Esta é uma boa oportunidade para elevar a indústria farmoquímica brasileira a um novo patamar, de forma sustentável e competitiva”.

A questão da competência técnica também é vista como um gargalo pelo presidente da Biolab, mas não especificamente em segmentos de ponta. Ele detecta no setor farmoquímico uma falta generalizada de mão de obra especializada “na quantidade e qualidade que o País necessita”. Essa deficiência preocupa igualmente o presidente da Cyg Biotech, José Loureiro Cardoso, para quem “já não se fazem técnicos no Brasil como se faziam no passado, principalmente aqueles ligados ao nosso setor químico, químico-farmacêutico e farmacêutico. A começar pela disponibilidade de escolas, que já foi bem grande e hoje é cada dia menor. Atualmente não existem técnicos de nível médio, bem formados, disponíveis no mercado”.

Loureiro observa ainda: “Os técnicos em nossa área perderam muito da sua qualificação. Décadas atrás, um técnico químico tinha um nível muito bom de informações teóricas e práticas. Geralmente essas pessoas empregavam-se já no primeiro ano de curso, como foi o meu caso, estudando à noite e trabalhando durante o dia. O curso técnico era de quatro anos e havia alta demanda para esse tipo de profissional”.

O presidente da Cyg Biotech recorda escolas famosas de química industrial, como Mackenzie, Rio Branco, Eduardo Prado e Oswaldo Cruz, entre outras. “Os químicos formados ou em formação nessas escolas percorriam todos os segmentos dentro da indústria: laboratórios químicos, microbiológicos, áreas de hipodermia, áreas estéreis, embalagem, armazém e distribuição, almoxarifados químicos, fermentações, extrações, purificações, pois a indústria, em sua grande maioria, desenvolvia todas essas atividades”.

Com o desmantelamento das indústrias químicas, farmoquímicas e farmacêuticas no Brasil, esse tipo de técnico que conhecia profundamente todas as operações, ou quase todas, já não existe mais, lamenta Loureiro. “Hoje ficamos surpresos ao contratar técnicos já formados ou em formação que não preenchem os requisitos mínimos para o trabalho em laboratório, quer na área de síntese, quer na área de planejamento e controle de produção, enfim, em qualquer área técnica. Hoje as empresas atuam apenas em um ou outro segmento das atividades mencionadas, o que concorre para tornar os profissionais ainda mais limitados”.

Para sanar tais deficiências, a Cyg Biotech tem mantido a prática de contratar estagiários e dar-lhes a formação que eles não têm na escola. “Ficamos satisfeitos ao saber que nossos estagiários são tratados como diferenciados pelo mercado, pois atingem um nível superior aos demais alunos em virtude da complementação de conhecimentos proporcionada pela empresa. Esperamos que haja incentivo do Governo para fortalecer as indústrias existentes e propiciar a criação de novas empresas, aumentando a procura por mão de obra especializada. Ou seja, que a roda volte a girar, criando um processo de geração de mão de obra especializada para os setores químico, farmoquímico e farmacêutico no nosso País”.

Reinventar uma indústria realmente não é uma tarefa simples. “A farmoquímica foi dizimada no Brasil na década de 1990”, afirma o presidente da Globe Química. “Esse período foi muito difícil, porque a indústria ficou totalmente exposta à competição internacional e a maioria das fábricas foi fechada. Isto resultou não somente na perda de muitas unidades em operação, em construção ou em projeto, como também na perda de muitos profissionais, que saíram do ramo. A indústria não é feita só de dinheiro e fábricas, é feita de gente também. O Brasil já teve plantas de fermentação, já produzimos antibióticos no passado. Hoje não há mais empresas nacionais nesse ramo”.

Na prática, assegura Jean Peter, ainda estamos imersos num processo de desindustrialização. “E não são professores de universidade que vão recriar a indústria. São empresários, operadores, mecânicos, gente que sabe trabalhar e pôr a mão na massa. Se olharmos o número de empresas farmoquímicas existentes no País, podemos contá-las nos dedos de uma mão. Não se cria tudo novamente do dia para a noite. É um processo complexo. Os incentivos estão aí. Inegavelmente, a PDP é um instrumento essencial e muito poderoso para criar uma indústria, mas para isso tem que ter gente que entenda do ramo. E tem pouca gente, poucas indústrias, poucos profissionais. Estou falando de pessoas, de técnicos, de gestores, de pessoas que entendem do ramo. Precisamos criar tudo de novo”.

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