A indústria de transformação brasileira vem, há alguns anos, demonstrando uma inquietante fragilidade no seu processo de desenvolvimento. As importações de bens industriais vêm num crescendo contínuo enquanto que nossas exportações patinam. O fenômeno é mais agudo para os itens de maior conteúdo tecnológico, no qual os produtos importados vêm substituindo a produção local, até mesmo em subsetores em que éramos competitivos até alguns anos atrás. O fenômeno tem sido caracterizado por alguns analistas econômicos como um sinal evidente de um processo de desindustrialização, causado, em grande parte, por desequilíbrios em variáveis macroeconômicas importantes, como juros e câmbio. Outros analistas veem na carência de dinamismo em inovação e ganhos de produtividade os fatores mais relevantes.
Sejam quais forem as razões para essa perda de dinamismo industrial, o fato é que ela vem gerando um enorme déficit na balança comercial do setor indústria. Em 2013, o déficit comercial da indústria de transformação atingiu o valor anual recorde de US$ 59,7 bilhões. O setor de alta intensidade tecnológica gerou um déficit de US$ 32 bilhões e o de média-alta intensidade um resultado negativo de nada menos do que US$ 61,4 bilhões. Apenas o setor de baixa intensidade tecnológica foi capaz de gerar um superávit de US$ 40,8 bilhões, pois até mesmo o de média-baixa intensidade foi responsável por um déficit de US$ 7,1 bilhões.
O complexo industrial da química fina, que se situa nas faixas de alta e média-alta intensidade tecnológica, é um bom exemplo da enorme dependência do Brasil nas importações de produtos industrializados. As importações totais de produtos de química fina somaram, em 2013, cerca de US$ 17 bilhões, dos quais US$ 3,7 bilhões em medicamentos acabados, US$ 3 bilhões em defensivos agrícolas e US$ 7 bilhões em princípios ativos e intermediários de síntese.
Diante desse quadro geral, causa certa surpresa o desempenho da indústria local de medicamentos, que vem crescendo aceleradamente nos últimos anos. Segundo dados da consultoria internacional IMS Health, o mercado brasileiro de medicamentos deve, em 2015, atingir o valor de R$ 110 bilhões, alcançando a posição de sexto maior mercado do mundo.
O fator determinante para o bom desempenho do setor de medicamentos é, sem dúvida, a existência de uma política governamental de atenção à saúde, calcada nos pressupostos constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS), portanto uma política de Estado e não de governo, e que vem sendo mantida e aperfeiçoada ao longo das últimas décadas por todas as administrações, embora com nuances e prioridades por vezes distintas.
Uma das preocupações maiores dessa política tem sido a de ampliar o acesso da população aos medicamentos. Este objetivo vem sendo paulatinamente alcançado em função da atuação do SUS, e de seu enorme poder de compra e capacidade de distribuição de medicamentos. A adoção da política de medicamentos genéricos, em 1999, através da Lei 9.787, foi um marco importante para a indústria nacional. A produção de uma vasta gama de medicamentos a preços pelo menos 35% mais baixos que os produtos de marca provocou uma economia significativa nas compras governamentais, permitindo a alavancagem de programas como o da Farmácia Popular, de grande sucesso. O êxito alcançado na área farmacêutica, entretanto, ainda não alcançou a área farmoquímica. Já há várias indústrias nacionais investindo no setor com bastante sucesso, mas estamos ainda longe de uma posição confortável na produção local de fármacos.
Recentemente, a partir da preocupação não somente com a questão do acesso, mas também e principalmente com a da garantia de fornecimento através da fabricação local, foi montada uma Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) do Complexo Industrial da Saúde, aí compreendido o desenvolvimento tec- nológico e a fabricação local de medicamentos e seus insumos ativos, extratos vegetais para fins terapêuticos, hemoderivados, imunobiológicos, kits diagnóstico, equipamentos e materiais médico-hospitares. Para acompanhar essa política governamental, foi criado o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis), que conta com a participação do setor privado atuante nesse segmento industrial no País. Ao abrigo dessa nova política, passam a ter caráter prioritário a capacitação e a inovação tecnológica, bem como a produção de fármacos, inclusive biofármacos.
A ideia central da PDP está baseada no mecanismo das parcerias público-privadas (PPPs) e se orienta para a capacitação tecnológica da indústria brasileira, seja através de transferência de tecnologia, seja através da geração própria de inovações. O sucesso alcançado com as primeiras PPPs, orientadas para a capacitação tecnológica e produção local de antirretrovirais necessários aos programas de combate à AIDS, pavimentaram o caminho para o estabelecimento da PDP com objetivos mais ambiciosos.
Parcerias público-privadas não são uma novidade e muito menos uma “jabuticaba”. Elas se tornaram muito populares no mundo inteiro, a partir dos anos 80. O Reino Unido, em 1992, criou um programa específico, o Private Financing Initiative, para incentivar de forma sistemática a criação de PPPs voltadas para infraestrutura, a mais ambiciosa das quais foi a formada para a modernização do metrô de Londres. Seguindo o modelo inglês, o Canadá estabeleceu o Canadian Council for Public-Private Partnerships e a Austrália criou o programa Partnerships Victoriapara coordenar várias PPPs, em ambos os casos voltadas para infraestrutura. Japão, Índia e Rússia foram outros países que adotaram PPPs. Na União Europeia, entre 1990 e 2009, estima-se que cerca de 1.400 PPPs foram criadas nos diferentes países do bloco. As formas de organização e as áreas de atuação das PPPs variam largamente entre os vários países que as adotam.
Os Estados Unidos têm uma larga tradição de cooperação entre os setores público e privado, e não somente para infraestrutura. Os EUA usam o poder de compra do Estado para estabelecer programas de pesquisa em parceria com o setor privado, nas áreas de energia e de saúde, por exemplo.
O programa norte-americano denominado NIH Public-Private Partnershipsvem, há muitos anos, desenvolvendo relevantes atividades, em especial envolvendo arranjos produtivos entre indústrias farmacêuticas e de biotecnologia com instituições acadêmicas e de pesquisa, com o objetivo de promover a pesquisa científica, tecnológica e a transferência de tecnologia em áreas estratégicas para a saúde pública.
A ideia fundamental quando se trata de organizar uma PPP não é voltada apenas para produção, mas também para o desenvolvimento e a inovação tecnológica, contando com a participação do governo, visando à redução do risco. A diminuição do risco pode ser alcançada por diferentes meios, pelo aporte de recursos do Estado a fundo perdido, por financiamento subsidiado, por garantia mínima de compra, por preferência no mercado e assim por diante. Outro fator importante é a seleção do parceiro privado levando-se em conta, muito especialmente, a sua capacitação para enfrentar o desafio tecnológico a ser superado pela PPP e não apenas fatores econômicos. Devido a esse relevante fato, foi sábio o Congresso Nacional ao aprovar a introdução da alínea XXXII no artigo 24º da Lei de Licitações, quando trata da dispensa de licitações, aplicando a referida dispensa na contratação em que houver transferência de tecnologia de produtos estratégicos para o SUS, conforme elencados em ato da direção nacional do SUS, inclusive por ocasião da aquisição destes produtos durante as etapas de absorção tecnológica. A faculdade conferida ao ente público nacional por esse dispositivo impede o exercício de ações internacionais simplesmente interessadas em exportar para o Brasil.
As PPPs para a produção de medicamentos, inovadores ou não, têm se tornado comuns pelo mundo afora, inclusive em programas patrocinados ou coordenados por entidades multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Muitas destas PPPs estão direcionadas para doenças negligenciadas prevalentes em países de baixa renda e que por isto não atraem investimentos das empresas privadas isoladamente.
O elevado volume das importações de fármacos mostra que o Brasil precisa prosseguir e ampliar o seu programa de produção local de princípios ativos e intermediários de síntese, e as PPPs têm um papel extremamente relevante a desempenhar neste processo. E mais: elas não devem se limitar ao setor farmacêutico. Há um enorme vazio a ser preenchido na produção local de insumos químicos para a agricultura. Em 2013, importamos nada menos de US$ 3 bilhões em defensivos agrícolas acabados. A agricultura brasileira tem se expandido bastante e em bases tecnológicas muito avançadas, mas apenas da porteira da fazenda para dentro. Nossa fragilidade derivada da dependência de insumos importados – defensivos, fertilizantes, sementes – é rigorosamente inaceitável para um setor que é um dos pilares da economia nacional.
Infelizmente não há uma política de Estado voltada para a agricultura, nem mesmo uma coordenação unificada, como na saúde. Mas não é impossível formatar uma política de desenvolvimento que faça uso da pujança do setor produtivo agrícola e da excelente capacitação tecnológica da Embrapa para desenvolver a produção local dos insumos químicos que hoje maciçamente importamos. Mecanismos como o das PPPs poderiam ser adequadamente usados para isto.