O governo federal tem demonstrado uma firme disposição de apoiar a revitalização da indústria farmoquímica/farmacêutica nacional, no intuito de aumentar a segurança e reduzir os custos do sistema público de saúde. Entretanto, o boom verificado nos últimos anos nesse segmento não resultou em fortalecimento da base da cadeia produtiva de medicamentos – ao contrário, as importações de insumos estratégicos não param de crescer, e hoje respondem por mais de 90% das necessidades do País.
Diante desse quadro, a ABIFINA elaborou um Projeto de Desenvolvimento Industrial da Química Fina, para ser proposto à Presidência da República e contendo um elenco de medidas objetivas visando verticalizar as cadeias produtivas e diversificar os processos industriais utilizados no País em todo esse complexo industrial. Este seria o caminho mais indicado para estimular a produção de base da química fina e criar sinergia entre diversos segmentos estratégicos, incluindo o agroquímico.
O Projeto foi organizado a partir de seis eixos principais, alguns dos quais, embora já estejam contemplados em políticas públicas, precisam ser reforçados e ampliados: incentivos fiscais para investimentos privados do complexo industrial da química fina; financiamentos governamentais com reduzidas taxas de juros e subvenção econômica para a inovação tecnológica; uso do poder de compra do Estado para alavancar a produção local; formação de novas Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) visando à inovação tecnológica e à agregação de valor em contratos plurianuais de fornecimento ao setor público; marco regulatório sanitário e de propriedade intelectual afinados com políticas públicas dedicadas ao desenvolvimento econômico e social do País; e defesa quanto à desnacionalização de ativos fabris.
Na presente reportagem, empresários e executivos de diversos segmentos da química fina avaliam os efeitos das políticas governamentais em andamento e opinam sobre as medidas que poderiam corrigir seus efeitos colaterais negativos.
É PRECISO AVANÇAR MAIS
Segundo José Loureiro, presidente da CYG Biotech Química, a química fina brasileira está vivendo uma situação preocupante. “Os produtos que fabrica não têm competitividade frente aos similares asiáticos, nem no mercado interno nem no externo. O déficit na balança comercial do setor farmacêutico, que vem aumentando a cada ano, foi de aproximadamente US$ 6,7 bilhões em 2012. Destes, US$ 1,8 bilhão se referem aos IFAs. O Brasil importa cerca de 90% dos insumos farmacêuticos de que necessita. Numa eventual crise mundial de abastecimento nós não teríamos capacidade de suprir minimamente as necessidades do mercado nacional”.
Nicolau Lages, diretor da Nortec Química, observa que, considerando a gravidade do problema, a dosagem de incentivos concedidos pelo governo está abaixo da necessária. Ele sugere que o Ministério da Saúde participe mais, “como diligenciador dos cronogramas de execução das PDPs; e que seja ampliado o programa de subvenções econômicas, principalmente para pesquisas a serem desenvolvidas por empresas em conjunto com centros de pesquisas de universidades e ICTs independentes, uma vez que isto favorecerá o desenvolvimento dessas instituições e permitirá que as empresas possam assumir os riscos quando não houver garantia de mercado”.
Ronald Rubinstein, diretor da ITF Chemical, entende que a PDP é uma forma inteligente de incentivar a produção local. “Temos exemplos de países que, no passado recente, buscando momentaneamente menores custos de produção, optaram por fechar fábricas no seu território e reabri-las onde era aparentemente mais ‘barato’. Este ‘barato’ se tornou caro devido à perda de empregos locais, transferência de tecnologia e mesmo à criação da dependência no fornecimento de produtos, que anteriormente não existia”.
Por outro lado, Rubinstein entende que não se deve perder de vista as condições macroeconômicas. “Enquanto não houver melhores condições estruturais na nossa economia e na política industrial em geral, a garantia de compra pelo Estado – assegurando volume e preço – ajuda muito o produtor local. Entretanto, a saída não é o protecionismo, mas sim a criação de condições locais de investimento e produção compatíveis com o mercado internacional”.
Dante Alario, presidente da Biolab Sanus, na mesma linha do diretor da ITF, prefere uma abordagem global do problema. Ele argumenta que “não podemos ficar reféns da ideia de realizar nossas atividades econômicas e de mercado lastreados unicamente no nosso mercado. As empresas devem entender que o Brasil representa apenas 2 a 3% do mercado mundial e, portanto, nossa visão deve focar também nesse objetivo maior. O ganho de escala de produção é relevante para diferentes setores industriais e a química fina não foge dessa lógica”.
O presidente da Biolab postula que tanto o sistema regulatório quanto a propriedade intelectual deveriam ser pautados por diretrizes da política industrial e de inovação tecnológica do governo, “mirando a internacionalização de nossa indústria.
Se tal balizamento político não acontecer, continuará havendo dissociação entre o desejo do governo e o que é executado pelos seus órgãos. Este é o quadro que hoje temos”.
Lélio Maçaira valoriza os avanços obtidos na área regulatória, embora reconheça que os prazos de análise da Anvisa são demasiadamente longos, que há dificuldades de diálogo rápido com os técnicos da agência para esclarecimento de dúvidas, principalmente em se tratando de inovações tecnológicas, e que a lista de IFAs para registro obrigatório é muito modesta. “A Anvisa deve ser apoiada e incentivada a continuar atuando como barreira técnica contra a entrada de concorrentes sem qualidade, a exemplo das inspeções internacionais de fabricantes de IFAs, iniciadas em 2011. É positiva, também, a criação do Comitê Técnico Regulatório para acompanhamento das PDPs, que deverá ser estimulado a agilizar os registros de produtos gerados por essas parcerias”.
Se a dependência de insumos importados figura na política industrial para a área da saúde como um problema ainda a ser equacionado, no setor agroquímico ela nem chega a ser enxergada pelo governo como um problema, conforme relata o presidente da Ourofino Agrociência, Jurandir Paccini. “O Brasil é considerado o celeiro agrícola do mundo. A cada ano ocupa uma posição de maior relevância na produção de commodities agrícolas e de carnes. É o maior exportador de diversas commodities e está entre os três ou quatro principais exportadores de quase todas as demais. No entanto, mesmo tendo um papel de tamanha relevância no agronegócio, hoje o mercado brasileiro de defensivos, fundamental para a produção agrícola, é composto quase que 100% de produtos importados. Chegamos a ter no passado uma parcela dos defensivos agrícolas – algo em torno de 30 a 40% – sintetizada no País, e hoje não temos praticamente mais nada. Regredimos, e do ponto de vista financeiro e estratégico temos uma posição delicada. A balança comercial no setor de defensivos agrícolas é extremamente desfavorável.”
Paccini assinala que, hoje, não apenas inexistem incentivos à nacionalização da produção de defensivos como, muitas vezes, ocorre até o inverso. “Por incrível que pareça, o imposto de importação para produtos acabados chega a ser, em alguns casos, menor que o cobrado sobre o produto técnico. Devido à política do governo de não conceder nenhum incentivo, acabou-se toda a produção de síntese no Brasil e agora estamos perigosamente próximos de liquidar também com a produção de agroquímicos formulados no País.”
Como ação de curto prazo para reverter esse quadro, o presidente da Ourofino recomenda que se conceda proteção à indústria de formulação de defensivos instalada no Brasil, “habilitando-a a competir com a indústria chinesa, que goza de vários incentivos governamentais. Como este setor é fortemente regulamentado, deve-se também priorizar a indústria nacional no que diz respeito à obtenção de registros de produtos. E numa visão de longo prazo, há que se promover uma integração da Petrobras com as indústrias brasileiras de defensivos tendo em vista a geração de intermediários para síntese.”
VERTICALIZAÇÃO: ANTÍDOTO CONTRA DEPENDÊNCIA
Alcançar um grau de verticalização da indústria de química fina que proporcione relativa segurança no abastecimento de matérias-primas, especialmente na área da saúde, é uma preocupação generalizada entre os empresários e executivos do setor. Não há consenso sobre os meios a serem empregados para se atingir tal fim, mas todos estão de acordo quanto aos riscos de uma excessiva dependência de insumos importados para a sustentabilidade da cadeia produtiva.
Na visão de Ogari Pacheco, presidente do Cristália, a melhor proteção que se pode oferecer à indústria farmo-química é a garantia de mercado. “Como fazer isto? Antes de reduzir imposto, antes de criar ou aumentar qualquer tipo de benefício, deveríamos estudar mecanismos que assegurem um mercado para a indústria nacional. Não estou inventando absolutamente nada, isso é uma prática usual, que os países mais desenvolvidos utilizam desde sempre”.
“Evidentemente algumas regras e condições de qualidade precisam ser observadas”, ressalva Pacheco. “Nós não deveríamos proteger qualquer produto só porque é nacional, mas o nacional deve ter prioridade para abastecer o nosso mercado. No meu entendimento as demais medidas, como a Lei do Bem, Lei das Preferências etc, são muito bem-vindas e apropriadas, mas não são suficientes por si só e nem tão fortes como o estímulo do mercado”.
O presidente do Cristália frisa que, com o advento da Lei dos Genéricos, o Brasil experimenta há 12 anos um boom no desenvolvimento da indústria farmacêutica. “Capacitamo-nos a produzir medicamentos de qualidade e mais baratos que os medicamentos de referência. Diversas indústrias brasileiras foram alavancadas e cresceram a ponto de competirem internamente com as multinacionais. Mas toda essa produção foi feita à custa da importação de princípios ativos. Se de um lado a indústria farmacêutica se desenvolveu, de outro lado é preciso reconhecer que foi um desenvolvimento limitado, na medida em que dependemos inteiramente da importação de princípios ativos”.
Pacheco acredita que as PDPs com viés de verticalização podem imprimir a mesma força de alavancagem ao segmento farmoquímico. “No ritmo em que essas parcerias vêm se desenvolvendo, acredito que chegaremos a um patamar equivalente à independência alcançada pela indústria de genéricos no mesmo lapso de tempo. Se projetarmos para daqui a 12 anos, acredito que ocorra algo comparável no campo dos princípios ativos e, consequentemente, as indústrias farmacêutica e farmoquímica nacionais terão musculatura tecnológica e econômica muito maior”.
Menos otimistas neste aspecto estão José Loureiro e Lelio Maçaira. O presidente da CYG afirma que não existe uma política definida em direção à preferência para o insumo farmacêutico nacional, e o presidente do Laborvida lembra que os mecanismos existentes se restringem ao mercado governamental.“A Política de Genéricos abriu o mercado para a indústria farmacêutica nacional, mas a verticalização da cadeia produtiva é muito reduzida no segmento dos genéricos. Por outro lado, as indústrias farmacêuticas verticalizadas no Brasil não são grandes produtoras de genéricos e fabricam IFAs estratégicos de alto valor agregado para consumo cativo em suas linhas de medicamentos não genéricos”, esclarece Maçaira.
“Não temos fontes de matérias-primas em quantidade minimamente suficiente para a produção de intermediários de síntese destinados a IFAs no Brasil, e dificilmente reverteremos esta condição em curto prazo”, acrescenta o presidente do Laborvida. “Por isso, defendo a escolha de ‘nichos’ de IFAs estratégicos nos quais devemos investir para ter autonomia de produção no Brasil, por questões de garantia das políticas públicas de saúde, segurança sanitária e independência tecnológica”.
Hoje, segundo Maçaira, a situação é a seguinte: como o governo brasileiro tem dado preferência ao produto final fabricado no País, indianos e chineses nos vendem os intermediários químicos em estágio bem próximo ao dos IFAs, e – aí está o problema – a preços de IFAs. “Temos que montar uma estratégia de mercado para chegar aos fornecedores de insumos básicos. É difícil e custoso estabelecer laços comerciais desse tipo, pois muitos desses fornecedores não falam inglês, mas precisamos fazer um esforço para viabilizar a produção autônoma, e a custos competitivos, de IFAs estratégicos para a saúde pública do Brasil”.
Além disso, Maçaira defende uma política generalizada de preferências para o IFA nacional, que vá além das compras governamentais e PDPs. Ele propõe que a Anvisa passe a atuar de forma mais enérgica como agente de política industrial, ampliando a lista de registro de fármacos e privilegiando IFAs nacionais estratégicos nos processos de registro e pós-registro de medicamentos. “Quanto mais verticalizada a produção, maior deve ser o grau de preferência”.
O presidente do Cristália também defende um sistema de preferências mais abrangente. “O marco regulatório impacta fortemente e é cerceador. Se a Anvisa privilegiar o registro do produto elaborado com matéria-prima nacional em detrimento do mesmo produto feito com matéria-prima importada, e impuser um lapso de tempo, um período de graça em que a empresa que assim tenha procedido possa explorar esse medicamento no mercado, o governo estará oferecendo um estímulo a custo zero para o erário, através do mercado privado. Isto ajudaria a alavancar a indústria de base do setor farmacêutico”.
Ogari Pacheco está convencido de que a preferência para o IFA nacional na fila de registro não irá encarecer o produto final. “Na composição do custo físico do medicamento, a matéria-prima geralmente representa um percentual relativamente pequeno, e se o produto feito localmente custar, como prevê a Lei das Preferências, 20 a 25% mais, o impacto sobre o produto final será em torno de 2%, o que é praticamente insignificante”.
O especialista farmoquímico do Instituto Farmanguinhos/ Fiocruz Mario Pagotto também sugere um mecanismo desse tipo como forma de estimular a indústria farmoquímica local. “Para se fazer o registro de um medicamento é preciso ter três fornecedores de matéria-prima credenciados. Se um deles for obrigatoriamente uma empresa nacional, valerá como incentivo”.
Empresas como Biolab e CYG, por outro lado, preferem apostar em instrumentos de promoção da isonomia ao invés de sistemas de preferência para o insumo nacional. “Na nossa visão, em uma empresa que se dedica ao desenvolvimento de novos produtos a partir de pesquisa própria ou em parcerias dos mais variados tipos, o conceito clássico de verticalização não seria aplicável, uma vez que o mundo caminha atualmente para uma produção global integrada”, explica Dante Alario. “Isto não quer dizer que abdicamos da química fina, mas que necessitamos adequá-la ao momento em que hoje vivemos”.
“Entendemos que o complexo da química fina é importante para o desenvolvimento de uma indústria farmacêutica inovadora”, reitera Alario. “Se no presente devemos estruturá-la para o salto da inovação, precisamos discutir a proteção fiscal e a desoneração tributária, bem como uma forte desburocratização dos processos envolvidos na pesquisa e na produção defármacos. A importação de reagentes, intermediários, insumos, equipamentos etc, aliada a um inteligente ambiente legal, são medidas fundamentais para reduzir desigualdades competitivas com os grupos internacionais.”
Também na opinião de Mario França, diretor da CYG, “não há como produzir IFAs ao preço dos importados sem uma isonomia no trato, por isso é preciso fazer desoneração ao nível do produto importado. O governo deveria criar incentivos fiscais para equalizar, tornar competitiva a produção através de redução de impostos – PIS, Cofins, ICMS e folha de pagamento das empresas”.
PESQUISA DESLANCHA EM LABORATÓRIOS OFICIAIS
Na área pública, o viés de verticalização que caracteriza algumas PDPs tem dado grande impulso à inovação tecnológica. “As PDPs envolvem não só a tecnologia da produção do medicamento, mas também a produção do princípio ativo, ou seja, a internalização de toda a tecnologia. Assim se fortalecem as empresas, que passam a ter mais mercado”, afirma Mario Pagotto. Farmanguinhos tem um parque instalado em Jacarepaguá com capacidade para atender grandes volumes, e graças às PDPs tem fornecido ao SUS medicamentos de alto valor agregado.
O papel indutor do Estado no desenvolvimento da indústria farmacêutica nacional, por meio de PDPs, foi assimilado com entusiasmo pelos gestores de laboratórios oficiais. “No Brasil, o setor saúde representa 8% do PIB, movimentando R$ 160 bilhões e empregando cerca de 10% da população ativa. Esta relevante posição exige que o poder de compra pública seja priorizado”, assinala Antônio Werneck, presidente do Instituto Vital Brazil (IVB).
A agilidade no desenvolvimento de medicamentos pelos laboratórios públicos só foi possível, na opinião de Werneck, através das parcerias e articulações com o setor privado, que também envolveram no jogo produtivo instituições – universidades e outras de ciência e tecnologia –, “com isso agregando mais conhecimento aos processos”. Assim como Farmanguinhos, o IVB hoje fornece ao SUS medicamentos de ponta, tais como Rivastigmina (Alzheimer) e Mesilato de Imatinibe (leucemia mieloide crônica e tumor gastrointestinal).
As instituições universitárias sabem que têm muito a ganhar com uma política industrial e tecnológica robusta na área da química fina. Na opinião de Elba Bon, professora do Instituto de Química da UFRJ, é hora de pensar na criação de um ambiente físico apropriado para o escalonamento e a transferência das tecnologias na área de biotecnologia e química fina – ou seja, um parque tecnológico, com capacidade inclusive para “congregar e orquestrar as atividades e procedimentos inerentes à propriedade intelectual e o acesso a fundos de investimento que sustentem a implantação de novas tecnologias”.
A biotecnologia tem sido uma pródiga fonte de inovações em Bio-Manguinhos, o laboratório de pesquisa e produção de vacinas da Fiocruz. Segundo o presidente do seu Conselho Político e Estratégico, Akira Homma, a tecnologia de DNA recombinante, uma importante vertente dessa linha de pesquisa, permitiu criar novas vacinas como a contra HPV, que o Ministério da Saúde decidiu recentemente introduzir no Calendário Básico de Imunizações.
Outros aspectos importantes no desenvolvimento de novas vacinas são os seguintes, de acordo com o consultor científico de Bio-Manguinhos, Reinaldo de Menezes Martins: os novos adjuvantes, que permitem melhor eficácia das respostas das vacinas; o desenvolvimento de vacinas combinadas, que na formulação possuem vários antígenos vacinais, a exemplo da vacina trivalente viral (sarampo, caxumba e rubéola), da trivalente bacteriana (difteria, tétano e pertussis – DTP), da tetravalente (DTP+ Hib), da pentavalente (tetra + hepatite B) e da hexavalente (pentavalente + pólio inativada); e a substituição da injeção por outras formas da aplicação da vacina como a via oral, caso da vacina contra poliomielite, e a via nasal, caso de uma das vacinas contra influenza existentes no mercado internacional.
Atento ao cenário mundial, Akira Homma está ciente da importância do domínio estratégico da tecnologia. “Nos últimos anos as grandes multinacionais farmacêuticas voltaram sua atenção para a área de vacinas e, nesse processo, houve várias aquisições e fusões de laboratórios: Johnson adquiriu o laboratório Cruccel, Pfizer adquiriu o laboratório Wyeth, Sanofi comprou a Mérieux/Pasteur. Este movimento torna a área de vacinas mais fortemente oligopolizada em nível mundial”.
A Fiocruz já há mais de dez anos criou um programa para indução de projetos de desenvolvimento tecnológico de vacinas e reativos para diagnóstico laboratorial. Outra importante iniciativa, assinala Homma, é a implantação do Centro de Desenvolvimento Tecnológico de Saúde (CDTS), cujo edifício encontra-se em construção. Segundo Reinaldo Martins, este centro tem o propósito de desenvolver pesquisas translacionais, ou seja, transformar os resultados de pesquisas em protótipos de produtos, com demonstração de prova de conceito. As atividades subsequentes, como estudos de escalonamento e finalização em produto experimental para estudos clínicos, serão realizadas no Laboratório de Protótipos, que está em fase final de instalação no prédio do Centro Integrado de Protótipos, Biofármacos e Reativos para Diagnóstico (CIPBR).
Bio-Manguinhos produz atualmente dez tipos de vacinas para o Programa Nacional de Imunizações (110 milhões de doses), 11 reativos para diagnóstico (dez milhões de testes) e três biofármacos (11 milhões de frascos), sendo o laboratório público nacional mais importante na produção de imunobiológicos. Segundo Homma, os investimentos em atividades de desenvolvimento tecnológico vêm aumentando gradativamente. “Estamos apoiando mais de 30 projetos de vacinas bacterianas, virais, biofármacos e reativos para diagnóstico laboratorial por um grupo de mais de 150 profissionais. Além disso, objetivando aumentar a capacidade de inovação tecnológica, estamos preparando um projeto para a ampliação dos nossos laboratórios de desenvolvimento tecnológico”.
BIODIVERSIDADE: OBSTÁCULOS À EXPLORAÇÃO SUSTENTÁVEL
Um projeto consistente para o desenvolvimento da indústria de química fina instalada no País precisa incluir avanços na questão do aproveitamento econômico da biodiversidade brasileira, que é uma rica fonte de matéria-prima tanto para a produção de fitoterápicos quanto para pesquisas de ponta na área da biotecnologia.
Segundo Peter Andersen, presidente do Grupo Centroflora, o desafio é transformar a biodiversidade brasileira em um ativo indutor de desenvolvimento social e econômico. Na área da química fina, há potencial para desenvolvimento de novas moléculas, enzimas, fitoterápicos, biofármacos, controles biológicos etc.
Nesse contexto, mecanismos já instituídos na área da saúde, como PDP e preferência em compras governamentais, além de incentivos fiscais e subvenção econômica a projetos de inovação, deveriam ser estendidos ao uso industrial da biodiversidade. Seria positivo, também, na opinião de Andersen, ampliar a lista de fitoterápicos com registro simplificado; conceder isonomia regulatória, garantindo que as normas sanitárias sejam aplicadas aos produtos importados; criar manuais para orientar pesquisas no atendimento a regulamentos, e padronizar procedimentos nos órgãos reguladores.
Segundo Vânia Rudge, gerente de Botânica e Sustentabilidade do Centroflora, a legislação ambiental brasileira fixa todos os seus controles na autorização prévia e pouco na fiscalização de atividades. “Ações que beneficiam a biodiversidade precisam ser promovidas e, da parte dos órgãos ambientais, deve haver maior empenho no seu acompanhamento, ao invés de se fixarem exigências quase inatingíveis que muitas vezes inviabilizam a atividade”.
“É fundamental para que se alcance êxito no fomento à biodiversidade brasileira entender a complexidade e a transversalidade das cadeias produtivas relacionadas a ela, que incluem desde as mais modernas tecnologias até as demandas sociais mais básicas de subsistência de povos das florestas”, argumenta Vânia.“É importante, por exemplo, promover o manejo florestal não madeireiro, por meio de regras simplificadas de estímulo, pois uma forma de fomentar o uso da biodiversidade como mecanismo de combate ao desmatamento é trabalhar para que a floresta em pé seja mais valiosa do que derrubada.”
O valor da biodiversidade para a química fina é inestimável. Segundo a pesquisadora de Farmanguinhos Maria Antonieta Ferrara, “a fonte primária de todas as enzimas é o código genético das células de microorganismos, animais e plantas. Assim, muitas enzimas de uso industrial ainda são extraídas de tecidos animais e vegetais ou, majoritariamente, obtidas por fermentação microbiana”.
A partir destas fontes primárias, ferramentas poderosas como a metagenômica, proteômica e bioinformática podem ser utilizadas na construção de bancos de genes que codificam diferentes enzimas visando a sua produção em grandes quantidades através de clonagem e expressão, explica Ferrara. “Nesse contexto, a biodiversidade brasileira é uma fonte de genes riquíssima para o desenvolvimento da biocatálise industrial”.
A pesquisadora de Farmanguinhos explica que as enzimas são catalisadores de grande eficiência e elevada especificidade. “Assim, os chamados processos de bioconversão, que utilizam enzimas isoladas, microrganismos ou células de plantas para converter uma molécula precursora em produtos de alto valor agregado, apresentam vantagens técnicas, econômicas e ambientais em comparação com a síntese química tradicional”.
Entre as vantagens, Ferrara cita a produção de substâncias com químio, régio e enantiosseletividade, que permitem minimizar ou mesmo abolir a formação de subprodutos, com ganhos no rendimento do produto de interesse e diminuição dos gastos com separação e purificação. Outra vantagem é o uso de condições reacionais brandas, com consequente diminuição do consumo de energia. “Ressalta-se também o menor impacto ambiental dos efluentes gerados nos processos enzimáticos e o fato de as próprias enzimas serem biodegradáveis, não acumulando no ambiente, ao contrário do que ocorre com os catalisadores químicos, muitas vezes poluentes e de difícil degradação”.
O PESO DA MACROECONOMIA
Políticas públicas setoriais são indispensáveis para alavancar o desenvolvimento da química fina, mas um cenário macroeconômico adverso pode frustrar expectativas quanto aos seus resultados econômicos.
Nicolau Lages lembra que a diferença de preços entre produtos chineses e similares fabricados no Brasil chega a ultrapassar 70%. “Na realidade, o principal fator é ainda o cambial. A subvalorização do Yuan e a sobrevalorização do Real frente ao Dólar, que é a moeda da transação, comprometem a competitividade do produto nacional frente ao chinês”.
Na avaliação do diretor da Nortec, o conjunto de incentivos econômicos hoje oferecidos ao setor é insuficiente para compensar a desvantagem competitiva em relação à China. “Para haver isonomia efetiva, as políticas governamentais deverão promover as seguintes ações: compensar, por um período de dez anos, os fatores cambial e tributário com o Imposto de Importação para os produtos que forem fabricados no País; conceder incentivos fiscais para os investimentos privados no complexo industrial da química fina; e manter financiamentos governamentais com reduzidas taxas de juros para investimentos em novas fábricas e/ou expansões”.
Ronald Rubinstein vai ainda mais longe em suas expectativas para a política industrial. “O Brasil precisa gerar as condições para ter uma indústria competitiva e que não dependa de incentivos fiscais. Esses incentivos, isoladamente, podem aliviar em curto prazo sintomas de um mal que demanda ações transformadoras mais amplas. Precisamos de uma estrutura fiscal que não onere tanto o setor industrial, e de uma política cambial que não privilegie as importações de produtos de química fina e fármacos”.