O Brasil é signatário de diversos Acordos Internacionais em matéria de Propriedade Intelectual. Entre eles, o Trips (do inglês “Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights”), ratificado pelo Decreto no 1.355 em 30 de dezembro de 1994, que pode ser considerado um dos mais controversos no cenário recente.
Isso porque esse Acordo, em troca de benefícios comerciais, obrigou a legislação nacional em propriedade industrial a ser elevada a um patamar internacional, pactuando normas mais igualitárias mundialmente.
Como grande avanço, o Brasil reforçou a proteção em setores tecnológicos não previstos na legislação anterior, como fármacos, agroquímicos e alimentos, bem como aumentou o prazo de vigência de patentes de invenção de 15 anos para pelo menos 20 anos, em conformidade com a grande maioria dos países signatários do Trips.
O impacto desse Acordo sobre o cenário jurídico e econômico atual foi tão expressivo que vale lembrar que setores mencionados acima restaram sem a devida proteção patentária no Brasil por 51 anos período entre o antigo Código da Propriedade Industrial de 1945 e a atual Lei da Propriedade Industrial no 9.279, de 1996.
Entretanto, com o Trips, o Brasil não só ratificou o compromisso de ampliar a proteção por patente para todas as áreas tecnológicas, como teve de introduzir exceções na legislação pátria em contrapartida aos prazos instituídos pelo Acordo para adequação nos países membros.
Buscando cumprimento às regras do Trips, a Lei da Propriedade Industrial no 9.279 (LPI), de 14 de maio de 1996, em seu art. 229, dividiu o tratamento dado aos casos de patentes em trâmite administrativo por grupos, de acordo com o ano de depósito.
Assim, em adição aos grupos que incluem os pedidos de patente de invenção ordinários ou aqueles bem conhecidos como “pipelines” (arts. 230, 230, § 5o e 231, 231, § 4o, da LPI), a LPI estabeleceu outro grupo de exceção, o “black box”, que vem sendo pouco tratado pelos meios especializados nos últimos anos.
Nesse terceiro grupo estão incluídos casos de patente relativos a produtos farmacêuticos e químicos para a agricultura, depositados no Brasil pelo período compreendido entre a entrada em vigor do Trips (1o de janeiro de 1995) e a entrada em vigor da LPI (14 de maio de 1997).
Não há dados estatísticos oficiais em relação aos casos enquadrados na previsão do parágrafo único do art. 229, “black box”, assim como o acesso a esta informação é limitada em bases de dados de acesso público ou comercial. Entretanto, a partir de estudo realizado recentemente com base nos pedidos de patente depositados entre 1o de janeiro de 1995 e 14 de maio de 1997, estima-se que, de um volume de mais de 37 mil pedidos de patente depositados neste período, pelo menos 25% reivindiquem produtos farmacêuticos ou agroquímicos.
Os pedidos de patente de invenção “black box” receberam tratamento absolutamente distinto dos “pipelines”, em termos de abrangência, trâmite e critérios para concessão, nos termos do art. 229 da LPI, em sua versão modificada pela Lei no 10.196 de 14 de fevereiro de 2001 (instituída originalmente pela MP no 2.104 de 31 de dezembro de 1999 e MP no 2.105 de 26 de janeiro de 2001):
“Parágrafo único. Aos pedidos relativos a produtos farmacêuticos e produtos químicos para a agricultura, que tenham sido depositados entre 1o de janeiro de 1995 e 14 de maio de 1997, aplicam-se os critérios de patenteabilidade desta Lei, na data efetiva do depósito do pedido no Brasil ou da prioridade, se houver, assegurando-se a proteção a partir da data da concessão da patente, pelo prazo remanescente a contar do dia do depósito no Brasil, limitado ao prazo previsto no caput do art. 40”.
Importante notar que esse dispositivo não estabelece que patentes devam ser concedidas de pronto, mas tão somente que os pedidos de patente enquadrados como “black box”, que versem sobre produtos farmacêuticos ou químicos para agricultura, devam ser submetidos ao exame de mérito.
Somente se cumpridos cumulativamente os requisitos de patenteabilidade previstos na LPI, é que as respectivas patentes deveriam ser concedidas. Portanto, diferentemente do “pipeline”, as patentes “black box” atualmente em vigor passaram por exame de mérito e por todas as demais etapas administrativas que outros pedidos de patente ordinários depositados a partir da nova lei (LPI).
O aspecto mais importante, e inédito no meio especializado (s.m.j.), diz respeito à identificação e apontamento de existência de um número expressivo de patentes “black box” em vigor concedidas administrativamente com prazo de vigência superior ao limite legal.
Essa divergência advém da aplicação inadvertida, pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), do parágrafo único, do art. 40 da LPI, ou seja, 10 anos a partir da data de concessão.
Vejamos:
A LPI impôs que os pedidos de patente “black box” deveriam ser decididos até o final de 2004 (art. 229-B da LPI).
Entretanto, em sentido oposto à previsão legal, o “backlog” (ou atraso no exame) alcançou também esses pedidos. No estudo realizado foram verificados inúmeros casos, enquadrados como “black box”, em que o exame se arrastou até os dias mais recentes.
A LPI, no parágrafo único, do art. 40, buscou minimizar os efeitos nocivos do “backlog” com o estabelecimento de algum prazo adicional de vigência, ou seja, de 10 anos contados da data de concessão para as patentes de invenção.
Ocorre que o “backlog” tem gerado impactos nas concessões de patentes, mais nocivamente pela aplicação constante de previsão legal que deveria se prestar tão somente à correção de casos pontuais e excepcionais. Em patentes ordinárias, à aplicação do parágrafo único, do art. 40, ou seja, a concessão de termo de vigência de 10 anos a partir da data de expedição da patente, persistirá isenta de dúvida enquanto tal dispositivo for mantido em vigor. De maneira diversa, a LPI é contundente em relação às patentes “black box”, no sentido de impor no parágrafo único, art. 229, que o termo de vigência deve ser aquele do caput do art. 40, ou seja, de 20 anos da data de depósito, não prorrogáveis.
A doutrina confirma essa assertiva:
“Quanto ao previsto no parágrafo único desse artigo, fica estabelecido que aqueles pedidos de patente relativos a produtos farmacêuticos e agrícolas com datas efetivas de depósito entre 01/01/1995 e 14/05/1997 devem ser examinados em conformidade com a Lei atual (ou seja, seriam em princípio patenteáveis), porém seu prazo de vigência estaria limitado ao prazo regulado pelo caput do art. 40, não se aplicando a eles o prazo previsto no parágrafo único desse artigo (prazo mínimo de proteção de dez anos da data de concessão)”.
Fonte: IDS – Instituto Dannemann Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual. Comentários à Lei da Propriedade Intelectual. Editora Renovar. 2005, pág. 491.
A questão também já foi apreciada pelo Judiciário, e como consequência pelo INPI, que ratificaram o mesmo entendimento no processo no 2009.51.01.812383-2, transitado em julgado na 13a Vara Federal do Rio de Janeiro, que versava sobre pedido de patente “black box”.
Em estudo preliminar e não exaustivo realizado a partir das informações disponibilizadas pela base de dados pública do INPI, onde foram examinados pedidos de patente de invenção enquadrados temporalmente como “black box” e catalogados como fármacos (Classe Internacional A61K), identificou-se 186 patentes em vigor, com termo de vigência superior ao limite legal, com períodos adicionais variando de dias até sete anos. Ainda, oito pedidos recentemente deferidos, aguardando a concessão, cujo prazo adicional ilegal possivelmente também poderá ser atribuído.
Em estudo similar, a partir de processos catalogados como agroquímicos (A01N e particularmente C07C e D), localizou-se 112 patentes em vigor, com termo de vigência errôneo, com períodos adicionais variando de dias até seis anos. Ainda, dois pedidos recentemente deferidos, aguardando a concessão. Além de dez patentes arquivadas por falta de pagamento de anuidades, que podem vir a ser restauradas.
Portanto, constata-se pelo menos 298 patentes “black box” em vigor, de empresas nacionais e multinacionais, cujo prazo de vigência concedido parece maior do que o estabelecido em lei.
Verificam-se duas irregularidades legais nesse processo: a primeira seria não observar o limite temporal para decisão dos pedidos “black box” trazido pelo parágrafo único do art. 229 da LPI (que deveria ser até 2004 como previsão do art. 229-B) e a aplicação impensada do parágrafo único, do art. 40 da LPI, sendo que a segunda em decorrência da primeira, resulta em número expressivo de patentes em vigor em erro.
Nesse cenário, há que ainda se considerar um número de pedidos de patentes em trâmite administrativo ainda não finalizados e que, consequentemente, poderão também se beneficiar dessa “extensão” de vigência inapropriada. Além disso, há também ações judiciais em curso, baseadas em pedidos de patentes “black box”, requerendo a aplicação do parágrafo único do art. 40 da LPI. E, de maneira não menos grave, um número de patentes já extintas e que estiveram em vigor com período adicional indevido.
Esses casos, sem dúvida, impactam sobre a produção nacional e os efetivos esforços para o lançamento de produtos e, portanto, a correção em casos pontuais ou em grupo pode ser buscada judicialmente pelos interessados.
Cabe ainda levantar que o INPI, respaldado pela recente Súmula no 473 do Supremo Tribunal Federal (STF), poderia tomar medida proativa para sanar a incorreção.
Esse artigo visa apenas apresentar resultados preliminares de trabalho colaborativo técnico e jurídico realizado pelas autoras e levantar questionamentos quanto à aplicabilidade do parágrafo único do artigo 229 da LPI. O estudo completo, incluindo todas as nuances do trabalho, será publicado em breve em meio jurídico especializado.