Uma das questões mais debatidas entre economistas
e cientistas políticos é o papel que
o Estado deve exercer na economia. Economistas
liberais defendem um mínimo de
intervenção estatal para que as leis de mercado
possam atuar eficientemente, enquanto que
os desenvolvimentistas sustentam que a teoria do
equilíbrio geral do mercado é um constructo teórico
elegante, mas incapaz de funcionar adequadamente
na esfera real, o que torna a intervenção
do Estado essencial, argumento este que a história
econômica do mundo comprova fartamente, inclusive
com o desenrolar da crise sistêmica que
vivemos desde 2008.
De forma geral, é aceito que o governo desempenhe
três funções: a primeira é de fornecer bens e serviços
públicos – segurança, justiça, educação, saúde,
infraestrutura básica, etc. A segunda é de procurar
estabelecer um padrão mínimo de equidade na distribuição
social da riqueza e nas oportunidades de
crescimento individual. A terceira, finalmente, de
fazer uso de políticas monetária e fiscal para alcançar
a estabilidade dos preços, baixos níveis de
desemprego e crescimento econômico satisfatório.
As divergências se acentuam quando se trata de
delimitar a extensão e a profundidade da atuação
governamental nessas três esferas.
Uma análise da história econômica certamente
mostrará que todos os países usam e usaram, em
maior ou menor medida, o poder do Estado para
intervir em suas economias. Mesmo os Estados
Unidos, defensores acirrados dos princípios da
liberdade dos mercados, oferecem exemplos marcantes
de intervenção do Estado na economia,
inclusive com objetivos de política industrial. Os
EUA dependem bastante das ações do governo nos
avanços da ciência e da tecnologia, frequentemente
apoiando suas indústrias nascentes e, não raro,
protegendo seu parque produtivo da concorrência
internacional, o que é claramente visível no agronegócio
americano.
Os países da Europa, criadores do welfare state não
ficam atrás e os exemplos pululam, das parcerias
entre empresas e governo na Suécia e Finlândia,
até o deslavado protecionismo europeu à sua produção
agrícola e indústrias correlatas. A análise do
processo de desenvolvimento de países do Leste
Asiático, Japão, Coreia do Sul e, mais recentemente,
da China, mostram com clareza o papel determinante
do Estado na condução de uma política
exitosa de desenvolvimento econômico e social.
Embora o desenvolvimento japonês da segunda
metade do século passado tenha sido executado
sob a liderança de empresas privadas, o papel
preponderante das parcerias dessas empresas com
o Estado foi reconhecido pelo apelido popular de
“Japan Inc”. As parcerias entre o Estado e as empresas
privadas também estiveram presentes no
espetacular desenvolvimento econômico da Coreia
do Sul. A intervenção governamental na economia
chinesa é bastante ampla, a começar pelo controle
do seu sistema bancário, mas também é visível
o suporte governamental ao desenvolvimento das
empresas chinesas buscando encontrar um equilíbrio
na parceria entre Estado e iniciativa privada.
Vale dizer ainda que os países, na Europa e na
Ásia, que exageraram no intervencionismo estatal
no setor produtivo colheram um rotundo fracasso
e aqueles que, bem ao contrário, subestimaram a
importância da intervenção estatal estão por aí gerando
crise após crise.
Uma das formas clássicas de intervenção do Estado
na economia com propósitos de desenvolvimento
é o uso do seu poder de compra. Para cumprir a
sua função de provedor de bens e serviços públicos,
o Estado é um grande comprador e a orientação
que imprimir às suas aquisições pode ter um papel
relevante de incentivo ao desenvolvimento tecnológico e industrial.
A importância econômica do Estado como comprador pode ser visualizada se
compararmos o volume total de suas compras de
bens e serviços com o PIB. Os dados compilados no
gráfico acima foram obtidos do Banco Mundial e
mostram os gastos governamentais como percentagem
do PIB, em 2011, para um grupo selecionado
de países.
Dada a multiplicidade de necessidades a que o Governo
tem que atender como provedor de bens e
serviços públicos, a eficiência das compras como
elemento de política industrial dependerá de um
planejamento de longo prazo e foco em setores
que tenham efeito multiplicador, não só na esfera
da economia como também na esfera social. Um
bom exemplo de um setor que atende a essas características,
no Brasil, é o setor da saúde, que, pela
Constituição Federal de 1988, consagrou o princípio
de constituir a saúde um direito universal, a ser
assegurado mediante políticas sociais e econômicas
que visem à redução do risco à doença e propiciem
o acesso universal à saúde.
Ao criar o Sistema Único de Saúde (SUS) com
atribuição de conduzir tais tarefas, a Constituição
Federal estabeleceu também caber ao SUS participar
da produção de medicamentos, equipamentos
médico-hospitalares, produtos imunobiológicos,
hemoderivados e outros insumos, bem como incrementar
o desenvolvimento científico e tecnológico
na área da saúde.
Desde o início de suas atividades, o SUS constitui-
-se em um modelo mundialmente admirado no que
diz respeito à disponibilização de medicamentos e
à prestação de serviços essenciais para a manutenção
da saúde da população em todo o território
nacional, porém o mesmo não ocorreu nas áreas
de desenvolvimento tecnológico e na fabricação
de produtos como preconizado pela Constituição
Federal, a despeito da notável exceção a essa regra
constatada nos institutos da Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro.
Tal dissonância ocorreu porque, para o exercício de
tão variadas finalidades, deveriam ser carreados elevados
recursos orçamentários provenientes de um
erário público já severamente comprometido com
outras também nobres aplicações, além de requerer
uma agilidade incomum para o ente público – eficiente
gestão administrativa e financeira para evitar
desperdícios e aproveitar capacidades produtivas e
tecnológicas existentes.
Uma eficiente gestão pública em um sistema complexo
como o SUS – que busca adquirir produtos
modernos a preços reduzidos e ainda desenvolver
tecnologias – resulta, inevitavelmente, na necessidade
de centralizar atividades de planejamento
e, ao mesmo tempo, promover a participação dos
laboratórios oficiais em parcerias estratégicas com
empresas privadas para desenvolver tecnologias e
fabricar produtos destinados a atender às necessidades
do SUS.
A lógica nessa leitura constitucional – que há
muito tempo já deveria ter sido regulada por
normas administrativas – somente surgiu a partir
de 2008, quando foi instituído no âmbito do
SUS, pela Portaria nº 374, o Programa Nacional
de Fomento à Produção Pública e Inovação no
Complexo Industrial da Saúde. Essa Portaria deu
inicio à implantação da Política Nacional de Ciência,
Tecnologia e Inovação em Saúde – que fora
aprovada em junho de 2004, quando foi estabelecido
que o Estado deveria ter um papel destacado
na promoção e regulação do complexo produtivo
da saúde via ações convergentes para apoio à sua
competitividade, através do financiamento, do incentivo
à P&D nas empresas, do uso da política
estatal de compras, da defesa da propriedade intelectual,
do incentivo às parcerias e dos investimentos
em infraestrutura.
A partir da Portaria nº 374, outras Portarias surgiram,
detalhando o marco legal dessa política
pública, como seja, o Decreto que criou o Grupo
Executivo do Complexo Industrial da Saúde
(Gecis), a Portaria nº 978, que estabeleceu a lista
de produtos estratégicos para o SUS; a Portaria nº
128, que definiu as diretrizes para a contratação
da fabricação de produtos para a área da saúde e
a Portaria nº 3.031, que estabeleceu os critérios a
serem considerados pelos laboratórios oficiais de
produção de medicamentos em suas licitações
para aquisição de matéria-prima. E, pelo seu relevante
significado, cabe destacar a aprovação da Lei
nº 12.349, em 15 de dezembro de 2010, que introduziu
alterações na Lei de Licitações para incluir
dentre seus objetivos a promoção do desenvolvimento
nacional sustentável em áreas estratégicas,
para tanto admitindo a utilização de margens de
preferências nas licitações públicas destinadas às
aquisições de produtos manufaturados no País –
que no caso da área da saúde foi regulamentada
pelo Decreto nº 7.713, de 3 de abril de 2012. Finalmente,
através do projeto de conversão da MP
563, aprovado em 7 de março de 2012, a Lei de
Licitações foi novamente alterada, desta vez para
dispensar de licitações as aquisições de bens produzidos
ou os serviços contratados por órgão ou
entidade que integre a Administração Pública
para esse fim específico, desde que o preço contratado
seja compatível com o praticado no mercado.
O crescimento e o envelhecimento da população, o
aumento da renda per capita e os avanços tecnológicos
na área da saúde resultam em maior demanda
por produtos nessa área e, em decorrência, têm aumentado
o déficit comercial desse setor industrial,
que hoje se situa no patamar de US$10 bilhões/ano.
A reversão desse perverso cenário econômico deverá
ser alcançada através da uma estratégia para o
desenvolvimento produtivo e tecnológico do Complexo
Industrial da Saúde lançada pelo Governo
federal através de três eixos: fortalecimento da política
industrial, fortalecimento do parque produtivo
e uso do poder de compra do Estado.
A efetiva implantação dessa política pública, que
já vem ocorrendo na forma do marco legal mencionado,
apresenta marcantes resultados expressos
pela formalização de 32 parcerias público-privadas
dedicadas à fabricação de 34 produtos alvos para
o combate a nove doenças, representando compras
que correspondem a, pelo menos, R$ 3,5 bilhões do
total de R$ 12 bilhões de gastos com medicamentos
em 2011, com tendência futura crescente face
às mudanças demográficas, econômicas e sociais na
área da saúde pública. Essas compras respondem
por cerca de 20% do déficit de comércio externo do
Complexo Industrial da Saúde – que atualmente se
situa em US$ 10 bilhões, valor dobrado nos últimos
cinco anos em virtude de sua dependência tecnológica
e das condições competitivas fortemente adversas
encontradas no mercado mundial. Prevê-se
com a execução desse programa um impacto favorável
de R$ 127,2 milhões no PIB e uma arrecadação
tributária adicional de R$ 31,8 milhões, além
de forte geração de empregos.
O programa que se encontra em fase de implantação
prevê investimentos da ordem de R$ 1 bilhão
entre 2012 e 2015 nos laboratórios oficiais e, por
certo, resultará em expressivos benefícios ao País
pela maior eficiência na regulação do mercado, melhor
atendimento aos objetivos prioritários da saúde
e regionalização dessa produção. Assim sendo,
esse programa governamental, apoiado nas estratégicas
parcerias público-privadas viabilizadas pelo
marco regulatório vigente, deverá resultar para a
área da saúde pública na modernização produtiva e
gerencial dos laboratórios oficiais – utilização complementar
de suas capacidades produtivas, na fabricação
local e no desenvolvimento tecnológico de
fármacos e medicamentos qualificados para o SUS,
bem como e com destaque, no desenvolvimento de
uma infraestrutura local público-privada dedicada
à inovação tecnológica e à fabricação de produtos
farmoquímicos e farmacêuticos estratégicos para a
população brasileira.
Esses fatos servem para ilustrar que a melhor receita
para o desenvolvimento econômico e social do
País reside no estabelecimento de firmes parcerias
entre o ente público e os agentes privados visando à
inovação tecnológica e à fabricação local de produtos
estratégicos para o País.