O governo brasileiro avançou consideravelmente na política industrial concebida nos últimos anos, visando atingir autonomia nacional na área de produtos essenciais para a saúde pública. No final de 2010, essa estratégia foi coroada de êxito com a aprovação da Lei no 12.349, que alterou a Lei das Licitações com o objetivo adicional de ajudar a reverter o déficit comercial de US$ 11 bilhões do setor. A expectativa deste ano é que, a partir da regulamentação dessa lei para estipular critérios para a concessão de margem de preferência de até 25% nas licitações do governo, a produção nacional venha a ser positivamente influenciada.
Agora, quando o governo federal começa a adotar medidas que compensem a defasagem cambial, como pela Lei 12.349, vozes já conhecidas se levantam contra o que consideram protecionismo à empresa brasileira. Desnecessário e retrógrado são alguns dos adjetivos de que se valem os neoliberais de sempre, com seus argumentos contra o uso do poder de compra do Estado. Para de- talhar a fundamentação teórica e prática que se encontra por trás da estratégia adotada pelo governo, a FACTO Abifina entrevistou José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde do governo Lula. Atual coordenador-executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), ele foi criador dos conceitos básicos que balizaram o denominado Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS), partindo do pressuposto de que políticas públicas para as áreas de saúde, indústria e inovação sempre devem andar juntas.
Como o senhor responderia ao argumento de que o Brasil não precisa se preocupar com o déficit comercial do setor porque tem dólares para fechar a conta da balança de pagamentos?
É uma visão pragmática obtusa. O déficit comercial da saúde é de US$ 11 bilhões, um valor enorme, que vem crescendo em alta velocidade. Porém, o mais grave é que, por trás dele, está o déficit de conhecimento e a perda de empregos. Estamos criando postos de trabalho na China e na Índia, em vez de no Brasil. Estamos comprando produto já acabado – o que significa dizer que estamos produzindo medicamentos lá na Índia e na China. Acho isso um disparate. Não que a estratégia de internalizar a produção propo- nha que o Brasil tenha uma autonomia total na produção. Até porque país nenhum tem.
Como o senhor desenvolveu o conceito de Complexo Industrial da Saúde?
Eu e Carlos Gadelha (atual secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde) fizemos uma série de estudos na área de vacinas e biotecnologia de 1995 a 2003. Chegamos à conclusão de que a saúde tem uma dualidade. Além de ser política social fundamental, possui uma dimensão econômica muito específica, que pode ser trabalhada de duas maneiras. Em uma, o mercado resolve os problemas. Em outra, é necessária a indução por meio das políticas industrial e de saúde. Até então, nunca foi pensada a possibilidade de articular políticas de saúde, indústria, comércio, ciência e tecnologia, incluindo o BNDES como agente fomentador. Quando me tornei ministro, em 2007, encontrei a oportunidade de colocar em prática a proposta.
O pensamento para a saúde sempre teve foco no serviço, como a qualidade do atendimento médico-hospitalar?
Exatamente. Essa ainda é a visão que predomina, um grande equívoco. No ministério, começamos a buscar uma ação integrada, que pudesse também reduzir o déficit comercial e de conhecimento do setor. Foi então que chegamos à estratégia das parcerias público-privadas, com o uso do poder de compras do Estado para induzir a produção nacional. Em 2011, a participação das compras públicas no mercado de medicamentos passou de 20%. E a curva é ascendente.
Qual foi a estratégia adotada pelo governo para escolher as áreas prioritárias para projetos de encomendas ou compras públicas?
Usamos três categorias centrais. A primeira delas é o perfil epidemiológico, que aponta para o tratamento das doenças negligenciadas e das doenças crônicas. A segunda é o custo das doenças que mais impactam o orçamento do Ministério da Saúde. Em terceiro lugar, as empresas e instituições que podem gerar conhecimento, aumentando a capacidade de o Brasil inovar.
O Brasil é protecionista em sua nova política de compras públicas?
Muito longe disso. Diversos especialistas e formadores de opinião questionam o limite de 25% na margem de preferência prevista na Lei 12.349. Quero chamar atenção que esse é apenas um dos pontos da política, não seu centro. A proposta se aplica a uma visão mais ampla, de fortalecer a inovação, a pesquisa e o desenvolvimento produtivo. A empresa que se beneficiar da lei deverá cumprir condicionantes nessas áreas, visando o desenvolvimento econômico e social do País.
Temos 15 anos de parceria público-privada no campo das vacinas, incluindo acordos de transferência de tecnologia. Hoje o Brasil é um dos grandes produtores mundiais de vacina, graças a seu Programa Nacional de Imunização. Recentemente, por exemplo, Bio-Manguinhos, da Fiocruz, firmou acordo de transferência de duas vacinas modernas com a GlaxoSmithKline. A Fundação Ezequiel Diaz, em Minas Gerais, se juntou com a Novartis para a internalizar a vacina contra meningococo. Essa experiência acumulada pelo Brasil alimenta a visão estratégica atual no campo de medicamentos.
O que essa nova fase traz de benefícios para o país?
Com o uso do poder de compra do Estado, os gestores públicos podem saber exatamente o universo de pacientes e planejar ações para garantir a universalização do atendimento. No primeiro momento, faz sentido o Estado arcar com um custo maior, até o processo industrial ser totalmente internalizado. Aliás, outra questão muito importante é internalizar a produção de princípio ativo. Algumas empresas de capital nacional estão verticalizando sua produção, como a Libbs e a Cristália. Essa estratégia vem permitindo que algumas farmoquímicas, como a Nortec e a Globe, possam fortalecer sua capacidade produtiva, depois de terem sido praticamente destruídas durante os anos 90. Há um esforço de ampliar também a capacidade de produção das matérias-primas, das quais o Brasil depende hoje de 80% de importação.
Qual é a tendência da regulamentação da Lei 12.349?
Especular sobre isso é muito cedo, mas minha expectativa é otimista em conseguirmos uma regulamentação em prazo rápido. Há vários fóruns discutindo o tema e o Ministério da Saúde aparece como novo ator. Até então, ele era mero comprador de qualquer coisa que se colocasse no mercado. Agora, é um ministério que opina e induz os rumos do desenvolvimento.
O que falta para a o fomento ao Complexo Industrial da Saúde ser ampliado?
Disseminar nas empresas a ideia da inovação e aproximá- -las das universidades. Devemos também enfrentar décadas de retrocesso. Aprovamos, por exemplo, uma lei de patentes altamente lesiva. Ao contrário da Índia, que se valeu do período de graça concedido pela OMC e aprovou ao final
desse prazo uma lei de patente extremamente restritiva, hoje o país tem um imenso parque produtivo, que produz para o mundo inteiro. Mas, curiosamente, não há qualquer relação da política de medicamentos indiana com a política de saúde. É somente a lógica do mercado. O sistema de saúde indiano é frágil, não cobre nem metade da população. Estamos tentando fazer diferente aqui. Quando você olha as 30 PPPs, todas são fundamentais para a política de saúde. Não tem descolamento.
Mas os trabalhos da maioria dessas PPPs não avançaram. Qual é a dificuldade?
São múltiplas. A relação laboratório público e empresa privada é recente e envolve problemas de gestão na rede estatal. Podem surgir problemas tecnológicos, no campo da formulação. E nem sempre o ritmo de funcionamento da instituição pública acompanha o de uma empresa privada. Porém, lembremos que é preciso ter um olhar de médio e longo prazo para as PPPs.
Uma das maiores empresas do mercado, a EMS, de capital nacional, ainda não tinha entrado em nenhuma parceria. Agora, está fechando com o Ministério da Saúde uma série de propostas. O paradigma está mudando. Quando a empresa vê que a proposta é séria, percebe que se ficar de fora vai sair perdendo. O que o ministério está garantindo é que essas parcerias tenham acesso a uma série de compras governamentais para programas de saúde pública.
As PPPs brasileiras da saúde são exemplo para o mundo?
Na área de doenças negligenciadas, existe há anos a Fundação Bill e Melinda Gates fazendo parcerias com empresas privadas. Mas ter uma visão que alia desenvolvimento econômico, inovação, política de saúde e fomento do Estado, considero bastante inovador.
Pelo que o senhor tem acompanhado pelo Isags, há experiências que o Brasil possa aproveitar?
Na América do Sul, não. O conceito do CIS é uma visão muito brasileira ainda. No Isags, estamos tentando colocar essa questão para os dirigentes de saúde. Mas diria que ainda não é uma linguagem disseminada fora do Brasil. O que verificamos como preocupação comum aos ministros da Saúde da região é a necessidade do acesso universal a medicamentos, o que vai esbarrar na discussão de patente, produção e barreiras tarifárias.
Quais são suas metas à frente do Isags?
Temos cinco políticas prioritárias. A questão do acesso universal ao sistema de saúde e a medicamentos é uma. Também buscamos entender como fazer políticas intersse- toriais de saúde, educação, ação social e redução da miséria. Além disso, temos o compromisso de formar quadros – os futuros dirigentes da saúde da América do Sul. Estamos ocupados, ainda, em pensar as dimensões de vigilância sanitária e de vigilância epidemiológica no continente.