Denise Rahal Lobato é farmacêutica e bióloga, especialista em Marcas e Patentes da EMS. Letícia Khater Covesi é doutora em bioquímica, pós-doutorada na Faculdade de Ciências Médicas, pesquisadora colaboradora no Hemocentro (Unicamp) e coordenadora de Marcas e Patentes da EMS.
Em setembro deste ano, a presidenta Dilma Rousseff, em seu discurso na sede da ONU, defendeu a “quebra de patente” nos casos de remédios para tratamento de determinadas doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e hipertensão, e acesso gratuito a medicamentos para população de baixa renda para tratardesses males.
O termo “quebra de patente” foi utilizado pela presidente de modo a facilitar o entendimento popular. Em seu contexto geral, é a previsão legal (artigos 68 a 74 da Lei da Propriedade Industrial, Lei 9.279, de 14 de maio de 1996) da possibilidade de se estabelecer uma flexibilização dos direitos de propriedade sobre determinada patente, ou seja, permite a exploração da patente, atribuindo uma imposição legal de licença compulsória ao titular da patente, mediante o cumprimento de requisitos pré-determinados sob a ótica das políticas nacionais de saúde pública e do acesso a medicamentos.
Segundo Denis Borges Barbosa, especialista na área, com base na lei vigente, a licença compulsória pode ser dividida em algumas modalidades, cada qual com suas particularidades: licença por abuso de direitos, por abuso de poder econômico, licença de dependência, licença por interesse público e licença legal que o empregado, co-titular de patente, confere a seu empregador.
Dentre as licenças acima citadas, a mais empregada é a licença por interesse público (art.71 da Lei de Propriedade Industrial):
“Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular.”
Destacamos que, tecnicamente, o licenciamento compulsório não significa literalmente a “quebra de patente”, uma vez que o detentor da patente mantém seus direitos e recebe um pagamento pelas cópias produzidas ou importadas.
Este instrumento internacional costuma ser utilizado pelos governos, independentemente do desenvolvimento econômico do país (EUA, Tailândia, entre outros). A Índia teve este ano o primeiro requerimento de licença compulsória pela Natco Pharma para o medicamento Nexavar (tosilato de sorafenibe), da Bayer, utilizado para tratar câncer de rim e fígado. Este medicamento atinge menos de 1% dos 100 mil pacientes in- dianos, segundo a Natco, que propõe em seu pedido produzi-lo a custo inferior e disponibilizá-lo a todos os pacientes.
Para relembrar o caso brasileiro do decreto que oficializou o licenciamento compulsório da patente do antirretroviral Efavirenz, vale a pena reler o artigo de Nelson Brasil e Eduardo Costa da edição de maio de 2007 da Facto*(disponível no site da ABIFINA). Este artigo mostra a necessidade deste dispositivo previsto na lei nacional e nos acordos internacionais e esclarece o cuidado para aplicálo, contextualizando o cenário vigente, cujo balanço de pagamentos do País para fármacos e medicamentos apresentava déficits crescentes.
Depois de muitas tentativas de acordo entre o laboratório titular da patente e o governo brasileiro – quando o primeiro não foi capaz de reduzir significantemente o preço do antirretroviral – o licenciamento compulsório autorizou o Brasil a importar versões genéricas até que um laboratório brasileiro fosse capaz de fabricar em território nacional, sendo necessário o pagamento de royalties à empresa norteamericana.
Quando o combate ao abuso do poder econômico na prática de preços mais justos, aliados ao fortalecimento de mecanismos facilitadores de transferência de tecnologia, for uma solução realmente comprometida com o desenvolvimento nacional, será desnecessário exercer este licenciamento que a mídia gosta de divulgar como “quebrar patentes” farmacêuticas, pois a população terá acesso aos medicamentos a preços justos, sem onerar o sistema de saúde publica. E haverá o equilíbrio entre os direitos de propriedade patentária e os interesses públicos. Até lá, para organizar o sistema de saúde e garantir os direitos sociais dos brasileiros, a interpretação dos direito de propriedade intelectual deve considerar valores fundamentais, como o direito a uma vida digna e justa.