Eduardo de Azeredo Costa, presidente da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), é médico e doutor em medicina, nasceu em Porto Alegre, em 1942. Graduado pela Faculdade Católica de Medicina da capital gaúcha em 1966, tem mestrado pela Escola Nacional de Saúde Pública e doutorado em medicina registrado pela UFRGS. É também PhD pela Faculdade de Medicina da Universidade de Londres. Em mais de 40 anos de exercício profissional, atuou no planejamento, na gestão e execução de atividades regionais de saúde, ciência e tecnologia, pesquisa e desenvolvimento, e foi ainda professor de epidemiologia na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Coordenador do projeto do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz), diretor de Farmanguinhos de 2006 a 2009 e, no passado, também prestou serviços para a OMS e para o Governo do Estado do Rio de Janeiro, sendo por duas vezes secretário de Estado no Rio de Janeiro.
FACTO ABIFINA: Quando assumiu o cargo de diretor de Farmanguinhos em fevereiro de 2006, você declarou em seu discurso de posse: “vamos assumir Farmanguinhos sem ilusões, mas com determinação, para questionar, para inovar, para reinventar a história da assistência farmacêutica e da fabricação pública de medicamentos do país. Os medicamentos apresentam papel relevante na redução das taxas de mortalidade e de morbidade, mas são tão mais efetivos quanto mais competente é o controle do Estado do ponto de vista regulatório e mais dinâmica é a interferência do Estado para assegurar um acesso equânime aos medicamentos essenciais”.
Nesse cenário, Facto ABIFINA pergunta:
Ao ser criado o SUS e assim promovida a ampliação do acesso a medicamentos, não lhe parece que infelizmente não foi capitalizado o poder de compra do Estado para se promover o desenvolvimento econômico e tecnológico da indústria nacional, satisfazendo-se apenas com a perspectiva assistencial e seu zelo orçamentário?
Eduardo Costa: Certamente. Em 1998 foram comemorados os 50 anos da criação do National Health Service (NHS), que é o serviço de saúde inglês. Uma das avaliações mais interessantes foi a repercussão na economia no setor farmacêutico. Publiquei um artigo há mais de dez anos chamando atenção sobre isso. A Inglaterra foi competente nesse aspecto. No Brasil, primeiramente surge a necessidade para somente muito depois se pensar em como atendê-la. Por isso viramos um paraí-
so de interesses diferentes daqueles a que destinam as propostas sociais na saúde.
E a descentralização das compras dos programas de atenção básica que foi procedida, a partir de Constituição de 1988, não lhe parece ser incompatível com uma concepção de uma rede de laboratórios orientada por planejamento público?
Eduardo Costa: Não há duvida de que foi um ato contrário ao interesse nacional e contra a saúde. Desde o fechamento da CEME não temos instrumentos eficientes para implementar uma política pública adequada às necessidades sanitárias e econômicas do país. Felizmente leio na imprensa que pode haver agora uma centralização de compras, mas lamentavelmente concentrada nas necessidades dos hospitais federais públicos.
Não lhe parece que o modelo adotado pelo governo, orientado pelo mercado como regulador tanto da aquisição como da produção pública de medicamentos é inadequado, pois cada laboratório público compete com os demais dessa rede e ainda com a indústria privada, uma vez que o administrador público no estado ou no município não está obrigado a comprar prioritariamente do ente público?
Eduardo Costa: Nas regras e estruturas dos laboratórios públicos não há como competir com o setor privado, nem acho que deva ser o caso. Mas a principal razão é o engessamento das decisões que ocorrem na área pública e a ampla liberdade negocial do setor privado que faz dumpings internos, às vezes, somente para se livrar de estoques.
A descentralização das compras públicas, que foi justificada e legitimada discursivamente pela ineficiência dos produtores públicos, que atrasavam entregas e assim prejudicavam o tratamento de pacientes, não se mostrou equivocada pelo fato da ineficiência da rede oficial residir, justamente, no atual sistema de compras governamentais, além de inviabilizar a indústria farmoquímica nacional existente?
Eduardo Costa: Esse aspecto levantado é muito importante. Em 2009 publicamos um artigo em que mostrávamos que se há possibilidade de inovação na área farmoquímica brasileira ela é propiciada exatamente pelas aquisições dos laboratórios públicos. As multinacionais têm seus arranjos produtivos fora do Brasil. As questões tributárias, tarifárias e cambiais induzem a isso. O setor de medicamentos nacional (em vias de absorção por empresas estrangeiras), só consegue competir importando insumos, como os princípios ativos. Assim, a política adotada por Farmanguinhos no sentido de privilegiar a compra dentro do país – e dentro da lei – e depois os contratos com transferência tecnológica que o Ministério da Saúde encampou e ampliou, se tornaram o único instrumento de inovação e de sustentação de um setor vital para o país.
Você tem dito que o predomínio da aquisição de produto através de um processo licitatório de compra via pregões internacionais facilita a entrega de princípios ativos não customizados ao processo produtivo de cada laboratório. E que, assim, os pregões internacionais potencializam a atração de empresas com desempenho técnico não satisfatório – não sujeitas a inspeções da Anvisa, que, seja por alta economia de escala ou acentuadas diferenças tributárias ou de subsídios expressos de seus Estados nacionais, apresentam preços mais competitivos que os produtores nacionais. E que, além disso tudo, os pregões internacionais facilitam a ocorrência de atrasos nas entregas e potencializam a necessidade de substituição dos produtos por não conformidades. A sua experiência o leva a confirmar tais fatos?
Eduardo Costa: Sem dúvida. Isso ficou muito bem demonstrado no artigo que citei antes. Algumas das minhas observações encontraram ampla receptividade na ABIFINA que propugnou para que a Anvisa passasse a registrar os insumos, com isso teria de haver uma visita técnica. Mas essa medida certamente não terá o condão de responder à totalidade do problema. À época encontrei eco também na proposta de criar um Grupo Executivo para implementar a política industrial para o setor farmacêutico, coordenado pela Casa Civil, já que as ações dependem de vários ministérios e agências. De novo o apoio da ABIFINA permitiu que o Ministério da Saúde acabasse criando o GECIS, mas ligados a um ministério e com “representantes” dos demais acabou como Conselho Consultivo e não Grupo Executivo. Sem desconhecer os avanços, foi lento e insuficiente para intervir decisivamente no perfil de muitas coisas importantes, inclusive dos laboratórios públicos. Esses, financiados pelo próprio Ministério da Saúde, poderiam facilmente ser induzidos à implementação desejada da Portaria 128/2008, nem precisavam ouvir outros setores governamentais.
Dessa forma não lhe parece totalmente equivocado o uso do sistema de pregões internacionais para a aquisição de insumos para a saúde, já que dessa prática resultam elevados índices de reprovações de princípios ativos pelos controles de qualidade dos laboratórios oficiais os quais, para evitar atrasos na reexportação e importação – que afetariam os prazos estipulados pelo Ministério da Saúde, têm optado muitas vezes pelo reprocessamento, onerando o custo do medicamento?
Eduardo Costa: Fizemos uma demonstração matemática desse fato que nos permitiu que ganhássemos, em vários fóruns e decisões jurídicas, as causas que questionavam tal orientação. Tudo foi baseado no custo efetivo dos reprocessamentos de matéria-prima comprada por pregões. Ainda que muitos tivessem tentado questionar a legalidade dos procedimentos que adotamos, eles não somente eram legais como, sem sombra de dúvida, tinham relevante vantagem financeira e econômica para Farmanguinhos.
A lei nº 12.349/2010, que resultou da MP 495, destinada a regular a licitação pública como instrumento à inovação tecnológica no país, poderá resolver de vez tais problemas?
Eduardo Costa: Essa é a nossa expectativa. Porém, é esperado que vários recursos judiciais tentarão obstaculizar seu uso. Estejamos atentos.
O que destacaria na sua gestão havida em Farmanguinhos?
Eduardo Costa: Além dessas contribuições gerais compartilhadas com amplos setores da nossa sociedade que se voltam para os interesses da atenção farmacêutica de qualidade para todos os brasileiros, logramos alguns êxitos graças as parcerias e ao apoio desses mesmos setores, cujas ações e medidas podem ser destacadas abaixo:
- Solução da questão dos atrasos nas entregas de medicamentos ao Ministério da Saúde, tendo inclusive colocado em dia um passivo de inadimplência.
- Início do processo de transferência de tecnologia para a produção da insulina humana recombinante.
- Apoio técnico à decisão do governo de fazer o licenciamento compulsório do Efavirenz.
- Licitação nacional por técnica e preço do princípio ativo do Efavirenz para verticalização de sua produção.
- Registro e produção do Efavirenz sob forte pressão contra, de quem apostava em nosso fracasso. A entrega da primeira partida do efavirenz ao Ministério da Saúde no dia 16 de fevereiro de 2009, não foi maquiada. Quisemos mostrar para a imprensa os caminhões saindo com a totalidade do quantitativo de nossa linha de produção pois qualquer erro ou falha seria usado para nos desmoralizar.
- Desenvolvimento e registro de patentes, destacando a feita em parceria com a Blanver Farmoquímica do DDI entérico, depositada na Espanha para o mercado europeu. Mais surpreendente foi logo após, o programa anti-aids do Brasil diminuir e logo suspender as compras, desestimulando o processo de registro do produto.
- Encapsulamento do oseltamivir. O Ministério da Saúde adquiriu nove toneladas de um pó do Tamiflu, inutilizável do ponto de vista logístico, sob pressão de uma epidemia que até hoje não aconteceu – a de gripe aviária. O desafio que aceitamos, proposto pelo Dirceu Barbano, que à época chefiava o Departamento de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, era tornar esse pó utilizável. Com muito orgulho quando ainda não se sabia a dimensão da gripe “suína”, levamos ao Ministério as cartelas com o produto encapsulado. Poderia ser produzido diretamente ou por terceiros.
Como tem aproveitado a experiência em Farmanguinhos para dirigir a Fundacentro?
Eduardo Costa: A Fundacentro é um órgão da maior importância econômica e social, porém não tem o dinamismo de uma fábrica: o resolver agora!
Porém, aproveitei ensinamentos importantes que não caberiam nessa matéria. Há coisas, no entanto, em que sou incorrigível, poderia ter aprendido em Farmanguinhos: não consigo colocar os interesses menores acima dos interesses institucionais e nacionais para ficar bem com grupos que pretendem controlar as instituições públicas.