REVISTA FACTO
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Jan-Mar 2011 • ANO V • ISSN 2623-1177
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Explosão do consumo, declínio da produção

O governo brasileiro tem apostado na expansão do consumo como estratégia de retomada do desenvolvimento econômico. Como demonstra a evolução recente do PIB e da balança comercial brasileira, o custo dessa opção começa a pesar mais do que os benefícios. Trabalhadores da indústria alertam para o perigo de desindustrialização da economia em setores de maior valor agregado, justamente aqueles que geram empregos mais qualificados, estáveis e bem remunerados.

Indústria, emprego e renda: o trinômio da sustentabilidade

A experiência internacional mostra que o caminho para o desenvolvimento econômico sustentável de um país passa, necessariamente, pelo fortalecimento de sua indústria. A China e a Índia já deixaram para trás a condição de meros produtores de bens primários e manufaturados de baixo valor agregado, e os países desenvolvidos que hoje direcionam suas economias para o setor terciário são, principalmente, aqueles que dominam tecnologias industriais ao ponto de poderem concentrar seus investimentos no ativo mais valioso da economia global: o conhecimento, capitalizado sob forma de patentes.

O governo brasileiro não tem aproveitado seus instrumentos macroeconômicos para favorecer a indústria doméstica. Comodamente instalado na posição de grande fornecedor mundial de commodities agrícolas, que têm se mantido valorizadas principalmente em função do crescimento da China, no plano da política industrial o Brasil tem adotado uma postura ambígua, caracterizada por diagnósticos competentes e discursos animadores, de um lado, e quase nenhuma ação efetiva, de outro.

Os trabalhadores da indústria estão atentos ao processo de desindustrialização em curso e alertam para os riscos de se privilegiar o crescimento do consumo sem articulação com políticas de nacionalização da produção. Segundo Clemente Ganz Lúcio, diretor do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), “atualmente é claro para os representantes dos trabalhadores que um longo período de desenvolvimento, com forte expansão de empregos que remunerem com salários que garantam um alto padrão de vida e de bem-estar, só será possível se o país for capaz de fortalecer sua economia em setores mais avançados tecnologicamente. Em outras palavras, a capacidade de inovar, criar e aperfeiçoar bens e serviços de maior valor agregado, aumentando a produtividade da nossa economia, tem importância decisiva para o nosso futuro”.

Lúcio esclarece que a indústria tem um efeito dinamizador na geração de emprego e renda, superior ao que se verifica nos setores primário e terciário da economia. “A maioria dos ramos industriais está no centro de uma cadeia produtiva mais longa que as dos setores primário e terciário. Um exemplo claro é a indústria montadora de automóveis, que compra insumos de outros setores como aço, plástico, vidro, motores, borracha. Esses setores, por sua vez, demandam insumos de outros, como a indústria extrativa, química e petroquímica, entre outros. Esse mesmo setor demanda máquinas e equipamentos, energia elétrica e daí por diante.”

Os serviços mais qualificados giram em torno da produção industrial, sublinha o diretor do Dieese. “Para vender um carro, ônibus ou caminhão, é necessária uma rede de concessionárias, financiamento (bancos, leasing) e agências de marketing. O bem industrial embute um valor agregado que permite pagar salários mais altos, lucros e impostos superiores à média da maioria dos setores. Analogamente, o exemplo do automóvel vale para os setores químico, de alimentos, têxtil, de borracha, e para os ramos do complexo metal-mecânico. A indústria está no centro da geração de valor e de empregos da economia. Vale lembrar que a migração de parcela expressiva da indústria manufatureira dos EUA para a China está sendo apontada como um grande obstáculo para que a retomada do crescimento econômico naquele país resulte em maior geração de empregos e em queda do desemprego.”

Na opinião de Lúcio, é estratégico para o desenvolvimento do Brasil o fortalecimento de segmentos capazes de produzir bens e serviços de maior valor agregado destinados a indústrias de ponta. “A inexistência de uma indústria de semicondutores no país talvez indique uma das principais lacunas do nosso parque industrial. Trata-se de um setor que aumenta incessantemente sua participação na geração de valor nos países centrais. Assim, mesmo que os preços dos produtos exportados pelo Brasil continuem em alta, especialmente as commodities, é difícil imaginar que o país atinja patamares de renda per capita semelhantes aos dos países desenvolvidos sem elevar o valor agregado dos bens e serviços produzidos para o mercado interno e também exportados.”

No plano macroeconômico, o diretor do Dieese lembra que a exportação de bens e serviços de maior valor agregado é uma garantia de equilíbrio do balanço de pagamentos, “evitando déficits externos que sempre conduziram o país a crises graves de financiamento”.

Indústria, emprego e renda: o trinômio da sustentabilidade

A experiência internacional mostra que o caminho para o desenvolvimento econômico sustentável de um país passa, necessariamente, pelo fortalecimento de sua indústria. A China e a Índia já deixaram para trás a condição de meros produtores de bens primários e manufaturados de baixo valor agregado, e os países desenvolvidos que hoje direcionam suas economias para o setor terciário são, principalmente, aqueles que dominam tecnologias industriais ao ponto de poderem concentrar seus investimentos no ativo mais valioso da economia global: o conhecimento, capitalizado sob forma de patentes.

O governo brasileiro não tem aproveitado seus instrumentos macroeconômicos para favorecer a indústria doméstica. Comodamente instalado na posição de grande fornecedor mundial de commodities agrícolas, que têm se mantido valorizadas principalmente em função do crescimento da China, no plano da política industrial o Brasil tem adotado uma postura ambígua, caracterizada por diagnósticos competentes e discursos animadores, de um lado, e quase nenhuma ação efetiva, de outro.

Os trabalhadores da indústria estão atentos ao processo de desindustrialização em curso e alertam para os riscos de se privilegiar o crescimento do consumo sem articulação com políticas de nacionalização da produção. Segundo Clemente Ganz Lúcio, diretor do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), “atualmente é claro para os representantes dos trabalhadores que um longo período de desenvolvimento, com forte expansão de empregos que remunerem com salários que garantam um alto padrão de vida e de bem-estar, só será possível se o país for capaz de fortalecer sua economia em setores mais avançados tecnologicamente. Em outras palavras, a capacidade de inovar, criar e aperfeiçoar bens e serviços de maior valor agregado, aumentando a produtividade da nossa economia, tem importância decisiva para o nosso futuro”.

Lúcio esclarece que a indústria tem um efeito dinamizador na geração de emprego e renda, superior ao que se verifica nos setores primário e terciário da economia. “A maioria dos ramos industriais está no centro de uma cadeia produtiva mais longa que as dos setores primário e terciário. Um exemplo claro é a indústria montadora de automóveis, que compra insumos de outros setores como aço, plástico, vidro, motores, borracha. Esses setores, por sua vez, demandam insumos de outros, como a indústria extrativa, química e petroquímica, entre outros. Esse mesmo setor demanda máquinas e equipamentos, energia elétrica e daí por diante.”

Os serviços mais qualificados giram em torno da produção industrial, sublinha o diretor do Dieese. “Para vender um carro, ônibus ou caminhão, é necessária uma rede de concessionárias, financiamento (bancos, leasing) e agências de marketing. O bem industrial embute um valor agregado que permite pagar salários mais altos, lucros e impostos superiores à média da maioria dos setores. Analogamente, o exemplo do automóvel vale para os setores químico, de alimentos, têxtil, de borracha, e para os ramos do complexo metal-mecânico. A indústria está no centro da geração de valor e de empregos da economia. Vale lembrar que a migração de parcela expressiva da indústria manufatureira dos EUA para a China está sendo apontada como um grande obstáculo para que a retomada do crescimento econômico naquele país resulte em maior geração de empregos e em queda do desemprego.”

Na opinião de Lúcio, é estratégico para o desenvolvimento do Brasil o fortalecimento de segmentos capazes de produzir bens e serviços de maior valor agregado destinados a indústrias de ponta. “A inexistência de uma indústria de semicondutores no país talvez indique uma das principais lacunas do nosso parque industrial. Trata-se de um setor que aumenta incessantemente sua participação na geração de valor nos países centrais. Assim, mesmo que os preços dos produtos exportados pelo Brasil continuem em alta, especialmente as commodities, é difícil imaginar que o país atinja patamares de renda per capita semelhantes aos dos países desenvolvidos sem elevar o valor agregado dos bens e serviços produzidos para o mercado interno e também exportados.”

No plano macroeconômico, o diretor do Dieese lembra que a exportação de bens e serviços de maior valor agregado é uma garantia de equilíbrio do balanço de pagamentos, “evitando déficits externos que sempre conduziram o país a crises graves de financiamento”.

Como enfrentar a guerra comercial

Embora a economia brasileira não esteja à beira de uma crise de financiamento, os sinais de desindustrialização já se fazem visíveis no balanço de pagamentos e seus efeitos podem ser potencializados pelo cenário de guerra comercial que se delineia no mundo. Em recente entrevista ao jornal Valor Econômico em 5 de janeiro de 2011, a economista e professora da UFRJ Maria da Conceição Tavares chamou a atenção para a concorrência predatória do período pós-crise, e afirmou que “a questão envolve a necessidade da adoção de uma nova política de substituição de importação para frear a desindustrialização de setores da economia nacional”.

Conceição Tavares acredita que 2011 será um ano difícil, face à situação da Europa, que responde por um terço do comércio exterior brasileiro. “Não temos só o dólar desvalorizando. Há várias moedas com tendência à desvalorização, do euro ao yuan, o que aumenta brutalmente a concorrência externa, principalmente quando temos o real sobrevalorizado.” A estagnação da economia norte-americana, segundo ela, também pode afetar o Brasil, na medida em que nos levará a uma concentração excessiva no mercado asiático. “Se continuarmos dependentes da Ásia, e particularmente da China, vamos continuar com a balança comercial ligada ao primário exportador.”

A economista adverte que, além de adotar instrumentos comerciais e fiscais para estimular a substituição de importações, o Brasil terá que avançar também em inovação. “O novo governo tem que preparar a indústria para enfrentar os dumpings que protegem as indústrias dos países desenvolvidos, e também para sobreviver à formação de uma cadeia asiática de integração das indústrias da China, Japão, Índia e Coreia do Sul, todas dominando alta tecnologia e dispostas a invadir o planeta com seus produtos. A América Latina não dispõe de tecnologia para enfrentar os asiáticos.”

O controle de capitais é um instrumento que, segundo Conceição Tavares, deve continuar a ser usado para pôr fim à entrada desenfreada de dinheiro especulativo. “Temos dólares sobrando e as reservas têm custo. O próprio FMI reconhece hoje os benefícios dessas medidas de controle, seja taxando o dinheiro na entrada ou adotando a quarentena.”

O economista David Kupfer, também professor da UFRJ, não interpreta como “desindustrialização” a evolução recente do PIB e da balança comercial brasileira. Em sua opinião a indústria, mesmo prejudicada pelo câmbio e pela decorrente perda de competitividade frente às importações, teve um bônus ligado à explosão do consumo. Em sua opinião, o que impediu a adoção de uma política cambial mais favorável à produção nacional nos últimos anos foi o potencial conflito entre a taxa de câmbio e o poder de compra dos salários, que poderia ter inviabilizado a política de consumo inclusivo priorizada pelo governo do PT.

Por outro lado, Kupfer reconhece que o período de bonança está terminando e que, sem uma política industrial e tecnológica capaz de provocar mudanças estruturais na economia, o país poderá pôr em risco os avanços conseguidos nos últimos dez anos, perdendo inclusive o poder de sustentar o desejável paradigma da universalização do consumo. Ele acredita que durante algum tempo a saúde macroeconômica brasileira ainda estará preservada, em função das grandes reservas acumuladas e dos superávits passados, e que o país poderá enfrentar uma conta-corrente negativa sem enfraquecer sua economia. Mas nesse período, adverte, será fundamental mobilizar outros instrumentos políticos. “Além da contenção da apreciação cambial, e até uma certa desvalorização para devolver o câmbio a um nível competitivo, vai ser necessário um destravamento do circuito financeiro para que se tornem mais eficazes os mecanismos de financiamento de longo prazo.”

Ao contrário do que ocorreu no período desenvolvimentista dos anos 1970, quando os investimentos eram fortemente lastreados em financiamento público, Kupfer entende que daqui para frente o financiamento à indústria não pode depender exclusivamente do BNDES. “Será preciso reforço, tanto de outras modalidades financeiras quanto, principalmente, da consolidação do mercado de capitais privado, fundamental para estimular um novo ciclo de investimentos capaz de produzir uma mudança estrutural do perfil produtivo da indústria brasileira.”

Quem também defende um desenvolvimentismo diferente daquele praticado há quatro décadas é Luiz Carlos Bresser Pereira, economista e ex-ministro da Administração Federal e Reforma do Estado no governo FHC. Esse “novo desenvolvimentismo”, de caráter menos intervencionista, em sua opinião deve ser pautado pelas seguintes diretrizes: responsabilidade fiscal; responsabilidade cambial (tendo em vista impedir a sobrevalorização da moeda); política de juros em média moderados; crescimento com poupança interna, e papel estratégico ou indutor do Estado, em contraste com o papel produtor que caracterizava o velho desenvolvimentismo.

Para que o Estado exerça de forma adequada o papel que lhe cabe, Bresser Pereira considera indispensável dar prosseguimento a duas reformas administrativas fundamentais: “a primeira é a reforma burocrática, que torna o serviço público profissional e efetivo; a segunda é a reforma gerencial ou da gestão pública, que torna os serviços sociais e científicos do Estado eficientes. O Brasil começou sua reforma gerencial em 1995. Uma reforma assim leva entre 30 e 40 anos para se completar. Está caminhando.”

Perda de conteúdo tecnológico

O diretor da Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica (Protec), Roberto Nicolsky, foi um dos primeiros representantes de entidades da indústria a denunciar o processo de desindustrialização da economia brasileira. Isto porque, sob a ótica da tecnologia, os sintomas desse processo já se evidenciam há algum tempo. Segundo ele, “a conjugação da apreciação cambial com a elevada taxa de juros e os sufocantes encargos fiscais criou, nos últimos anos, o mais perverso cenário para o desenvolvimento tecnológico da indústria nacional”.

Nicolsky observa que o expressivo tamanho do mercado interno brasileiro mascarou, por algum tempo, os efeitos negativos da perda de conteúdo tecnológico da indústria. “Não tem havido uma redução do valor da produção, nem mesmo física, e não corremos o risco de uma migração significativa das indústrias finalistas para fora do país. Entretanto, a taxa de crescimento da indústria, principalmente a de manufaturas, tem sido bem inferior à do PIB. Em consequência, a participação da indústria de transformação na composição do PIB chegou a valores inferiores a 15%, e a da indústria como um todo caiu para menos de 24% – uma enorme perda, em comparação com os 34% de 15 anos atrás.”

A dinâmica da desindustrialização varia conforme o segmento industrial, segundo o diretor da Protec. “Nos segmentos com menor mercado e nos quais estamos tecnologicamente atrasados, há uma tendência à reversão industrial, isto é, à troca do produto nacional por um importado competitivo, mais moderno. É o caso de alguns eletrônicos de consumo, como celular, televisão e DVD, e de certos tipos de tecidos, automóveis mais sofisticados. Já nos segmentos em que temos suficiente domínio tecnológico, a pressão é para incorporar componentes fabricados no exterior.”

O resultado acumulado no tempo, afirma Nicolsky, é a quebra de cadeias produtivas já estabelecidas e a agregação cada vez menor de valor ao produto industrial fabricado no país, numa contínua regressão para a simples montagem, como vem ocorrendo com bens de capital, equipamentos elétricos e medicamentos genéricos. “Esse processo tem graves consequências para o futuro da posição brasileira no comércio mundial de produtos industriais, porque destrói a nossa competência tecnológica, tornando-nos dependentes de tecnologia importada, mesmo que a produção industrial finalista continue a crescer para acompanhar a dimensão do mercado interno.”

A perda de competência, um fenômeno de difícil reversão, é produto de um conjunto de fatores: dissipação da memória tecnológica da indústria, desagregação dos recursos humanos, rápida obsolescência da capacidade produtiva por interrupção de investimento e desarticulação da cadeia de fornecedores de insumos básicos e intermediários. “O déficit industrial promete continuar crescendo e terá de ser coberto por mais e mais commodities”, alerta o diretor da Protec. “Mas lembremo-nos de que os ciclos de ouro das commodities dependem de preços firmes e demanda crescente. Quando essa mágica se quebra, o que nos resta é um filme de horror sem final feliz, que conhecemos muito bem.”

Regulação e compras públicas: exemplos do primeiro mundo

As maiores potências econômicas conquistaram posições destacadas no comércio mundial manejando a favor de suas indústrias, entre outros instrumentos, o poder de compra do Estado e os sistemas regulatórios, que visam basicamente à proteção do consumidor e do meio ambiente, segurança nacional e economia de escala. As barreiras tarifárias foram mecanismos fartamente utilizados até duas décadas atrás, mas com o advento do GATT e da OMC passaram a ser coibidos e, gradativamente, vêm perdendo importância. Os vice-presidentes da ABIFINA, Nelson Brasil de Oliveira e Marcos Oliveira, inspiram-se nos exemplos do primeiro mundo para sugerir diretrizes de política industrial nessas áreas.

“No plano regulatório, primeiramente é preciso atentar para a distinção entre standards, que são padrões recomendados, e especificações, que são regras obrigatórias”, explica Marcos Oliveira. A especificação, que coincide com o padrão mínimo aceito pelo sistema regulatório de um país, é um instrumento estratégico de política industrial. “Países tecnologicamente desenvolvidos costumam converter padrões elevados em regras, como parte de políticas protecionistas para privilegiar suas indústrias e barrar a entrada nos seus mercados de produtos de terceiros países. Emergentes de ponta, como China e Índia, ao contrário, mantêm suas especificações em níveis básicos para induzir o crescimento da produção nacional, e adotam os standards dos países desenvolvidos apenas como norte para suas políticas de desenvolvimento industrial e tecnológico.”

Os sistemas regulatórios de países com pretensão de desenvolver e/ou consolidar suas indústrias domésticas têm em comum, portanto, não as especificações propriamente ditas, mas sim a diretriz de harmonizar as especificações com o ritmo de evolução da capacidade tecnológica e produtiva local, tendo em vista tornar o cenário concorrencial interno mais favorável às suas empresas. “Copiar especificações vigentes em outros países significa criar barreiras comerciais contra a indústria local, caso essas especificações não sejam condizentes com seu presente estágio tecnológico e industrial”, alerta Marcos Oliveira.

A química fina é um dos setores industriais sujeitos a forte regulação, em face do impacto de seus produtos sobre a saúde humana e o meio ambiente. No Brasil, os órgãos com poder regulatório nesse setor são Ibama, Anvisa, Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e CGEN (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente). É conveniente que as especificações geradas por esses órgãos levem em conta o cenário concorrencial, na medida em que a transformação de um standard elevado em especificação funciona não apenas como barreira comercial, mas também como um fator de concentração de mercado, podendo privilegiar empresas específicas.

O banimento radical de produtos, em função da adoção de uma especificação elevada, tem consequências sérias não somente para a indústria como também para o mercado consumidor. Marcos Oliveira cita o exemplo da agricultura, onde um mesmo defensivo recebe várias certificações para usos distintos. “Há diferenças de impacto e de eficácia na utilização do produto, dependendo da cultura. O banimento total, motivado por problemas de desempenho numa determinada cultura, pode deixar a descoberto outra onde o produto funciona bem. As autoridades da agricultura são sensíveis a problemas com defensivos envolvendo grandes culturas – soja, milho e arroz – mas, quando em função disso determinam o banimento, parecem não se preocupar com outras culturas pequenas como a da mandioca, que pode ter nesses mesmos produtos a solução de melhor custo-benefício.”

“A adoção intempestiva de especificações pode alijar empresas menores do mercado”, assinala Marcos Oliveira. “A implantação de uma especificação nova exige prazo de transição factível, para que as empresas possam se adaptar. Em setores de alta tecnologia e grande impacto social, como o de medicamentos, por exemplo, os trâmites relativos ao sistema regulatório podem consumir dezenas e até mesmo centenas de milhões de dólares antes de o produto chegar ao mercado, o que já restringe o número de empresas capacitadas. Um sistema regulatório mal desenhado e mal administrado pode se tornar um mecanismo de reserva de mercado e um empecilho ao desenvolvimento.”

Por outro lado, se um país não tem regras nem padrões adequados e/ou não exerce fiscalização eficiente sobre sua aplicação, pode se tornar o repositório de produtos de baixa qualidade produzidos em outros países. Não é simples e não existe “receita de bolo” que facilite o processo, mas, segundo Marcos Oliveira,

o governo pode usar inteligentemente o sistema de regras e padrões para fomentar o avanço tecnológico e a produtividade da economia. “É preciso levar em conta o capital imobilizado e a economicidade da atividade em questão, pois o custo da inovação decorrente das novas regras e padrões precisa ser razoavelmente absorvido pelo setor afetado”, pondera.

O selo Anvisa para medicamentos, recentemente instituído com prazo de implementação unificado e exíguo para as empresas, é um exemplo de como não se deve fazer. “Parece simples, mas a logística é muito complicada”, assegura Marcos Oliveira. “Os fabricantes das máquinas que aplicam os selos são poucos e

irão atender prioritariamente as grandes indústrias. As pequenas terão dificuldades e poderão ficar fora do mercado. O certo seria implantar o sistema gradativamente, com períodos de transição escalonados, começando pelos remédios de controle mais restrito até chegar aos medicamentos com baixo grau de controle.”

No contexto das compras governamentais, assim como no regulatório, o exemplo do primeiro mundo é instrutivo. Nelson Brasil de Oliveira mostra que os EUA fizeram desse instrumento um grande aliado de sua indústria doméstica, e acredita que ele poderá ter importância similar no Brasil, agora que temos um governo disposto a colocar o Estado mais ativo na economia. Um sinal positivo nessa área é a entrada em vigor da Lei nº 12.349, de 2010, que resultou da MP 495 e alterou dispositivos da Lei de Licitações.

Melhor do que a rápida regulamentação e implementação da Lei 12.349, só mesmo se o Brasil copiasse a legislação dos Estados Unidos. Segundo Nelson Brasil, ao contrário do que se divulga, por força da legislação nacional nenhum órgão ou empresa pública dos EUA pode importar bens ou contratar serviços sem antes esgotar as possibilidades de aquisição no mercado interno. Além disso, sempre que possível, a aquisição interna deve priorizar as pequenas empresas, definidas como aquelas que empregam de quinhentos a mil trabalhadores.

Os critérios de compra de produtos e contratação de serviços pelos órgãos públicos do governo norte-americano são definidos por três instrumentos legais: o Buy American Act, o Balance of Payments Program e o Small Business Act. O Buy American Act obriga todos os órgãos públicos, em compras diretas ou terceirizadas, a adquirir produtos que contenham, no mínimo, 50% de componentes nacionais. O Balance of Payments Program trata basicamente de assegurar que, em contratos públicos de obras ou produção industrial no exterior, os insumos adquiridos sejam preferencialmente norte–americanos. Por exemplo, as despesas com produtos ou material de construção provenientes dos EUA, incluindo custos de transporte e manuseio, devem exceder em mais de 50% o valor gasto com essas mesmas aquisições junto a empresas estrangeiras. O Small Business Act, por sua vez, determina que as compras de bens e serviços de valor entre US$ 2,5 mil e US$ 100 mil sejam reservadas para as empresas de pequeno porte, chegando mesmo, em alguns casos, a exigir que o setor público dê preferência, nas suas licitações, a empresas geridas por minorias étnicas ou veteranos de guerra.

Corrida de obstáculos na química fina

A indústria brasileira de química fina, além de sofrer os efeitos da destrutiva conjunção entre sobrevalorização do real e juros altos, é desfavorecida pela falta de isonomia regulatória e tributária frente aos competidores estrangeiros e, mais recentemente, também pela omissão do governo frente à onda de aquisições predatórias desencadeada no setor farmacêutico. Dante Alario Jr., presidente da Biolab-Sanus, vê com apreensão esse fenômeno: “O Brasil é a bola da vez: um mercado que cresce entre 10 e 12% ao ano, enquanto os outros crescem 0,5 a 1% ao ano. Todos querem vir para cá, inclusive porque no Brasil as empresas multinacionais têm possibilidades que lá fora não têm. Aquelas que já se estabeleceram aqui querem se fortalecer no mercado, e por isso têm se mostrado extremamente agressivas na aquisição de empresas nacionais.”

O empresário está convencido de que o processo de desnacionalização em curso é um dos caminhos para a desindustrialização, na medida em que as empresas compradoras têm em vista não a expansão da produção, mas a conquista de mercado. “Com relação às recentes grandes aquisições inter companies, que resultam em concentração de mercado, parece-me extremamente perigoso o fato de o Brasil não reagir de forma também agressiva, por exemplo financiando grupos nacionais para também comprarem, se for o caso, outros grupos nacionais.”

Alario afirma que a aquisição resolve um problema imediato da multinacional, que obtém um ganho de mercado e um aumento de receita bastante rápidos. “Mas, quando ocorre a desnacionalização, a empresa vendida morre em pouco tempo; de um a três anos. Por que isso ocorre? Simplesmente porque a maioria das empresas adquiridas não tem P&D&I, ou seja, não tem portfólio de produtos novos. Na verdade, o que a empresa compradora adquire é o mercado.”

A Biolab recebeu oferta de aquisição correspondente a dez anos de faturamento, conta Alario. “Recusamos, não porque a oferta não fosse consistente ou atraente; ao contrário, foi estupidamente boa. Não vendemos porque, primeiro, gostamos daquilo que fazemos, e segundo por entendermos que temos responsabilidades para com o país. Não estamos aqui apenas fazendo comércio; pensamos na continuidade daquilo que produzimos. Parafraseando José Carlos Magalhães, do laboratório Sintofarma, eu diria que não sou um empresário, sou um industrial. O empresário vende o seu negócio quando a negociação chega a um ótimo valor. Nós não vendemos porque temos na cabeça a visão de construir para o futuro do país, de colaborar num projeto de nação.”

Mesmo quando a empresa nacional insiste em permanecer no mercado, desafiando a corrente desnacionalizante e inovando por conta própria, o sistema regulatório brasileiro não lhe recompensa pelo esforço. A inovação em fármacos e medicamentos esbarra na fila da Anvisa e em deficiências dos quadros técnicos da agência para analisar produtos novos, lamenta o presidente da Biolab. “Se a Anvisa não organizar uma fila diferenciada, com pessoas capacitadas para julgar e dar agilidade ao processo de registro do produto nacional inovado, a indústria farmacêutica local morre na praia. E se não morrer nessa praia terá uma grande chance de morrer em outra – a Câmara de Medicamentos (Camed), onde são fixados os preços dos medicamentos novos.”

Segundo Luiz Henrique Rahmeier, diretor de Desenvolvimento e Registro da Nufarm, o gargalo regulatório é também o maior obstáculo ao desenvolvimento do setor agroquímico no país. “Praticamente todos os processos pós-registro devem ser avaliados por três órgãos – Mapa, Ibama e Anvisa -, gerando uma infinidade de ofícios, trâmites de documentos, diferentes interpretações e frequentemente extravios. A mudança física de uma unidade de formulação, que é um processo meramente burocrático, leva dois anos para ser aprovada. No caso de uma unidade de síntese de princípio ativo o processo é mais complexo ainda, exigindo-se praticamente um novo registro, muito embora se trate apenas de uma mudança de localização física da produção, sem qualquer alteração do produto em si.”

E os problemas não param por aí. “Registros de produtos para exportação levam os mesmos três anos e demandam os mesmos estudos que registros para o mercado interno, ainda que o produto já tenha sido registrado no país de destino. Um único princípio ativo precisa ter diversos registros, um para cada fabricante do produto formulado, sujeitando-se repetidas vezes ao mesmo trâmite burocrático. Além disso, embora todos os estudos e avaliações necessários para o registro – testes toxicológicos, resíduos, eficácia etc. – sejam realizados em condições extremas e por isso tenham embutidas margens de segurança, não se permite nenhum mínimo ajuste na fórmula, o que é normal e rotineiro em uma fabricação lote/lote. Posturas exageradamente restritivas nas avaliações geram um grande número de exigências e dados extras, sem agregar real segurança ao produto, mas somente atrasos e indeferimentos na concessão de registros que acarretam ociosidade de plantas produtivas e de trabalhadores, e o que é pior, perda de negócios.”

Segundo Rahmeier, esse cenário ajuda a explicar por que as empresas instaladas no Brasil, que sintetizam ou formulam produtos agroquímicos, não conseguem competir em igualdade de condições com os importadores. Por estarem sujeitas a uma série de restrições e procedimentos improdutivos, e também para sobreviver, essas empresas estão deixando de produzir no país e passando a importar produtos acabados. “O governo precisa urgentemente instituir um marco regulatório e políticas eficientes para reter, atrair e incentivar o investimento produtivo no setor. Com certeza, a racionalização dos processos regulatórios não irá afetar em nada a segurança e a qualidade dos produtos ofertados – pelo contrário, irá trazer a produção para perto do órgão regulador, tornando a fiscalização e o controle mais simples e frequentes.”

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