“Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.” Talvez este provérbio popular sirva para refletir, de alguma forma, a realidade do que acontece no Brasil, quando tratamos do tema fitoterápicos e inovação.
Em evento promovido pelo Ministério da saúde, há uns dois anos, em Brasília, um representante do MDIC lamentava o fato de a indústria de medicamentos – especialmente a indústria nacional – não acenar mais efetivamente com o lançamento de fitomedicamentos, levando-se em conta que temos uma Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, em vigor desde 22 de junho de 2006, pelo Decreto Presidencial nº 5.813, e que deveríamos mais bem aproveitar nossa vasta e badalada biodiversidade. É provável que esta opinião não seja isolada.
Essa abordagem se avulta um pouco mais quando lembramos que o uso de medicamentos fitoterápicos, com finalidade profilática, curativa e paliativa, já está oficialmente reconhecido pela Organização Mundial de Saúde desde 1978, que recomenda a difusão, em nível mundial, dos conhecimentos necessários para a sua consolidação. Ainda mais, ao analisarmos que, segundo dados da própria OMS, cerca de 80% da população dos países em desenvolvimento utilizam-se das práticas tradicionais na atenção primária à saúde e, desse total, 85% usam plantas medicinais (ou preparados destas) para esse fim.
Quem milita na área sabe, no entanto, que a questão é bem mais ampla e complexa, o que torna o custo dos processos e o fator temporal mais compreensíveis, na dicotomia que existe entre o uso tradicional de plantas medicinais e o desenvolvimento e oferta de produtos industrializados, contemplando-se as exigências regulatórias. Sobre esse tema, bem disse o Dr. Antônio Carlos Siani, no prefácio do livro Fitoterapia Contemporânea – Tradição e ciência na prática clínica: “há um dilema ético a ser resolvido, no que tange a chancelar as plantas medicinais como recurso terapêutico universalizado. Por um lado, o arcabouço normativo neste âmbito é suficientemente nítido (ainda que se argumente pontualmente sua necessidade de avançar) quanto às regras para obtenção de produtos industrializados para a saúde a partir de vegetais. Contudo, o conjunto das exigências legais é um verdadeiro cipoal, cujo desvendamento encarece os processos de desenvolvimento e, como regra geral, os produtos éticos finais resultam com preços pouco acessíveis à população ou ao Estado”.
Digamos, por exemplo, que uma indústria nacional resolva lançar um fitomedicamento inédito, desenvolvido a partir de um vegetal nativo brasileiro. Sim, porque parece razoável pensar que a indústria nacional esteja interessada em fitomedicamentos inovadores, com potencial de mercado e protegidos pela propriedade intelectual. Há quem diga que as iniciativas de inovação devem partir do ambiente empresarial, porque este é quem enxerga melhor as demandas do próprio mercado, embora as parcerias com as universidades brasileiras sejam fundamentais para o sucesso de um empreendimento dessa monta, ao se considerar a competência de nossos pesquisadores, a importância de nossa academia, e o aparato tecnológico de nossas escolas.
Passo a passo para lançar um fitomedicamento
Digamos que se trate de um medicamento para gastrite. Quanto tempo levaremos para desenvolvê-lo e chegar ao consumidor com esse fitomedicamento genuinamente brasileiro, o que se consubstanciaria num evento importante? Talvez, com uma pequena margem de erro, para mais ou para menos, parece-nos coerente raciocinar desta forma:
Para o desenvolvimento do comprimido, com definição de marcadores majoritários (cromatografia), desenvolvimento de lotes-piloto para estabilidade, validação de processos; ensaios pré-clínicos para estabelecimento da toxicologia, com a identificação da toxicidade aguda, crônica e DL 50, e tudo mais que as normativas exigem, gastaremos pelo menos um ano e meio de trabalho árduo. Em seguida, se esses resultados conferirem a devida segurança para o uso em humanos, partiremos para os ensaios clínicos, observando-se os seguintes passos: 1- confecção de um protocolo de estudo clínico. 2- encaminhamento para o comitê de ética do hospital contratado para o referido estudo. 3- aprovação do protocolo, pelo comitê de ética, que se encarregará de enviar os dados à Conep – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. 4- anuência prévia da Anvisa, que agora é exigida. Se formos muito ágeis e se tivermos uma capacidade excelente de articulação, levaremos mais seis meses nesse trâmite.
Superadas as fases I e II, com pacientes sadios e sintomáticos, respectivamente para definição de segurança e ajuste de posologia, o que nos levará pelo menos mais um ano, seguiremos para a fase III. Esta, continuando as exigências do método científico e de protocolo prevê: definição do “n”; seleção dos pacientes, com os devidos critérios de inclusão e exclusão; randomização (estamos nos referindo a um estudo duplo-cego); assinatura – por parte dos pacientes – do termo de consentimento livre e esclarecido; exame de endoscopia, antes e depois do tratamento, para coleta de material de mucosa gástrica para estudo anatomopatológico e pesquisa de H. pylori, o que se faz também no grupo-controle. Se considerarmos que a inclusão de pacientes, no estudo, é uma coisa muito seletiva, e que os pacientes aderem ao estudo clínico numa escala de tempo progressiva, não é exagero pensar (a depender do “n”) que gastaremos cerca de dois anos para a conclusão.
Ao cabo desse trabalho, a compilação dos dados e levantamento estatístico do estudo; a confecção dos artigos científicos e a preparação dos dossiês para protocolo de pedido de registro na Anvisa nos tomará pelo menos mais seis meses. Se tudo estiver certo, a Anvisa publicará o registro do produto no Diário Oficial da União num prazo generoso de seis meses.
Mas o nosso trabalho não para por aí. Obviamente que essas etapas são laboriosas e requerem atenção, observância às normas, rigor técnico-científico, tecnologia e ética, mas não é a parte mais difícil. O produto está pronto, com registro liberado, marca registrada e pedido de patente depositado no INPI. Todavia, se não fizermos esse produto chegar ao ponto de venda e ao conhecimento dos médicos, de nada adiantará todo esse esforço. E isso pressupõe canais de distribuição em nível nacional, um trabalho de propaganda médica competente (e aqui se lamenta que a fitoterapia não tenha sido ainda incluída na grade curricular dos cursos de graduação da área de saúde, especialmente medicina, odontologia e enfermagem). O desafio, portanto, é fazer esse novo fitomedicamento, fruto da inovação da pesquisa brasileira, chegar às farmácias; convencer o médico a prescrevê-lo; o paciente a adquiri-lo, e repetir esse ciclo nos meses subsequentes. Esse tempo – de consolidação de um produto no mercado – gira em torno de dois anos.
Portanto, com muito trabalho e determinação, uma indústria brasileira levará algo em torno de oito anos para desenvolver e oferecer à sociedade um novo fitomedicamento.
Desta forma, pensamos que, se não houver uma política governamental sólida, desburocratizada e suprapartidária de apoio efetivo à inovação, corremos o risco (e este já se mostra iminente) de perdermos o bonde de uma história que Deus graciosamente nos oferece.
Assim, ao voltarmos ao nosso provérbio popular, lembramos do que disse Gilberto Gil, ao se referir a um tempo-rei: “Água mole em pedra dura tanto bate que não restará nem pensamento”!