Foram cerca de trinta anos até que o Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) passasse de sonho a realidade. Após extensos debates e a concorrência com outras demandas urgentes do combalido sistema de saúde brasileiro, o projeto sobreviveu ao tempo e toma forma agora. Sua construção está em andamento até 2011, com investimento total de R$ 140 milhões. O projeto da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) nasceu da necessidade de se transformar conhecimento em produtos essenciais para a população.
Dedicado à “pesquisa translacional” – fase inicial do desenvolvimento tecnológico de medicamentos, vacinas e diagnósticos -, o CDTS representará um salto na articulação entre as demandas do Estado e a expertise da indústria local. Como explica nesta entrevista o coordenador científico do CDTS, Carlos Morel, o novo centro se constituirá em um espaço privilegiado para a parceria entre os setores público e privado, com o objetivo de combater o déficit do setor da saúde e de encontrar soluções para as doenças negligenciadas.
Quais são os objetivos do CDTS e como surgiu a ideia de sua criação?
O Brasil, quando comparado a outros países como a Coreia, apresenta uma fragilidade tecnológica apreciável, pois a maioria do conhecimento gerado em nosso País permanece em nível acadêmico, sem se converter em produtos para a sociedade. Na área da saúde, essa assimetria, ilustrada pelo descompasso entre o número de artigos científicos e o de patentes resultantes, faz com que o País apresente grandes déficits no comércio exterior, cerca de US$ 8 bilhões anuais.
O objetivo principal do CDTS será combater esse “Vale da Morte”, ou seja, a dificuldade de se transformar conhecimento em produto, de levar para o leito do paciente uma descoberta originada em bancada de laboratório. Em nosso caso específico, atuaremos na área conhecida como “pesquisa translacional”, que é a fase inicial de desenvolvimento tecnológico de uma nova vacina, fármaco, biofármaco ou método diagnóstico. Essa etapa inclui, por exemplo, ensaios pré-clínicos, toxicologia e desenvolvimento de processos.
A ideia de dotar a Fiocruz de uma estrutura desse tipo remonta ao final da década de 80, quando se pensou na criação de um Centro de Biotecnologia no campus de Manguinhos. Contudo, outras prioridades se tornaram mais urgentes. A proposta foi deixada para um segundo momento, mas seguiu “fermentando” na cabeça das principais lideranças da instituição. Em novembro de 2002, foi dado um passo fundamental e estratégico: a discussão e aprovação do CDTS pelo V Congresso Interno da Fundação.
Como será a estrutura do Centro?
No aspecto estratégico, o CDTS irá se estruturar a partir de parcerias com o setor produtivo, tanto com empresas locais como multinacionais. Falo de parcerias com “P” maiúsculo, pois não pretendemos ser meros receptores de tecnologias. Serão parcerias reais, em que cada ator investe recursos próprios em projetos considerados de prioridade econômica ou sanitária.
Quanto às instalações físicas, o CDTS ficará abrigado em dois prédios. No principal, teremos os Laboratórios Flexíveis, que funcionarão como uma incubadora de produtos em que a Fiocruz e o setor industrial trabalharão em parceria; as Plataformas Tecnológicas; os Laboratórios de Apoio e o setor de Gestão da Inovação. O segundo prédio estará dedicado à Experimentação Animal e contará com um laboratório de segurança biológica de nível 3+, nos permitindo trabalhar com patógenos que exigem esse nível de biossegurança, como, por exemplo, o bacilo da tuberculose.
Já estão definidas as plataformas tecnológicas com que o CDTS trabalhará?
Sim. Serão dois grupos de plataformas: as que geram informações e as que geram produtos. No primeiro deles, teremos a capacidade de produzir informações em genômica, proteômica, microarranjos e nanotecnologia, bioinformática e análise de polissacarídeos e lipídios. O outro grupo está dividido em quatro subgrupos: produção e purificação de proteínas recombinantes, cristalização de proteínas, produção e purificacão de monoclonais e anticorpos recombinantes, além de síntese de nucleotídeos.
Qual é a capacidade prevista para as plataformas de produção?
Projetamos capacidades máximas de cinco a trinta litros para todas as plataformas, o que julgamos suficiente para gerar os produtos necessários para a fase de pré-clínica. Em todas as plataformas, trabalharemos com as Boas Práticas de Laboratório (BPL).
Uma das limitações tradicionais na fase pré-clínica consiste na pouca disponibilidade de animais de laboratório com qualidade certificada. Como o CDTS irá encarar a questão?
O governo mapeou o problema dos biotérios nacionais e da baixa qualidade de grande parte dos animais disponibilizados. Algumas medidas já foram tomadas, mas o problema ainda persiste, de forma generalizada. O CDTS está estudando a possibilidade de usar, nos primeiros estudos, modelos animais mais simples, como Zebrafish e minhocas. Assim, seria possível reservar o uso de modelos mais sofisticados, como camundongos, coelhos e outros, para etapas mais avançadas. Esta é uma estratégia usada com sucesso por alguns centros de pesquisa clínica no exterior e permite reduzir a demanda por animais sofisticados. Estes devem ser adquiridos no mercado brasileiro ou, mais provavelmente, importados. O CDTS não tem planos de entrar na área de biotério para produzir seus próprios animais.
As atividades de toxicologia e patologia serão próprias ou terceirizadas?
O CDTS deverá terceirizar essas atividades em vez de realizá-las internamente. Vale destacar que o Brasil precisa avançar e crescer nessas duas especialidades, dedicando bastante atenção a elas, se quiser ter sucesso na pesquisa de fármacos e medicamentos.
Entre as ações do CDTS, está prevista a interação com institutos de pesquisa da Fiocruz e universidades?
Sim, claro. A capacidade científica dessas instituições é o que chamamos de “o lado da oferta”. Ou seja, oferecem novos conhecimentos por meio de pesquisa básica, estratégica ou aplicada, que podem representar oportunidades de desenvolvimento tecnológico. Mas o CDTS também trabalhará com “o lado da demanda”, buscando colaborações com a indústria nacional e internacional, pública e privada, para o desenvolvimento de produtos de interesse. As duas abordagens são necessárias devido aos gargalos existentes no sistema brasileiro de inovação em saúde, resultantes do pouco envolvimento das empresas nos processos de inovação em nosso País. Com essa estratégia, o CDTS poderá atuar como uma ponte entre a academia e a indústria.
O Brasil envia muitos cientistas para estudar e trabalhar no exterior. Seria o momento de atrair profissionais de outros países com experiência nessa ponte entre pesquisa científica e desenvolvimento industrial?
Já estamos fazendo isso. Em 2006, a Fiocruz assinou um convênio com a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) para o financiamento de um programa de apoio ao CDTS que provê três tipos de bolsas em nível pós-doutoral: Recém Doutor (RD), Estágio Pós-doutoral (PD) e Pesquisador/Professor Visitante do Exterior (PVE). Publicamos anúncios nas revistas Nature e Science, que atraíram cerca de sessenta candidatos às bolsas PVE. Desses, dezenove tinham currículo e experiência adequados ao CDTS. Todos foram contatados. Alguns ficaram por curto período, outros por estadias mais longas, e três estão conosco há mais de um ano, aguardando concurso público para se integrarem ao CDTS em caráter permanente.
O principal ensinamento que tiramos desse processo é que existe, sim, uma possibilidade de brain drain reverso, ou seja, atrair para o Brasil pesquisadores e tecnólogos de alto nível do exterior. Esta possibilidade ficou recentemente ainda mais real, pois a grave recessão nos países desenvolvidos aumentou a atratividade dos emergentes para mão-de-obra especializada. Precisamos aproveitar esta oportunidade única, criando condições para a retenção de pessoal no longo prazo, com melhores salários, além de recursos para pesquisa e inovação.
O Governo vem estimulando a formação de parcerias público-privadas na área da saúde. Este tipo de cooperação faz parte da agenda do CDTS?
Não apenas faz parte como constitui o núcleo de nossa estratégia. Consideramos os Laboratórios Flexíveis do CDTS como o locus catalisador dessa colaboração entre a Fiocruz e o setor industrial. A cooperação poderá acontecer com entes privados e também públicos, como o Instituto Butantã, Biomanguinhos e Farmanguinhos. Já estamos discutindo com algumas empresas nacionais e multinacionais possíveis parcerias que seriam mantidas nos Laboratórios Flexíveis. Estamos abertos a novas propostas.
A indústria brasileira tem carências estruturais nas etapas de desenvolvimento de fármacos e medicamentos. Está prevista a prestação de serviços para empresas privadas nessa área?
Sim, seja por meio de parcerias ligadas aos Laboratórios Flexíveis, seja por meio de prestação de serviços pelas diversas Plataformas Tecnológicas e Laboratórios de Apoio do CDTS. Aliás, essas plataformas e laboratórios poderão prestar serviços não só às indústrias nacionais e multinacionais, como também a universidades e institutos de pesquisa que necessitem de tecnologias presentes no CDTS.
Já existe um plano de trabalho estabelecido para o CDTS? As doenças negligenciadas – uma das especialidades do senhor – seria um dos focos para a atuação?
Costumamos dizer que o CDTS atenderá a duas grandes prioridades. A primeira consiste em doenças e condições de saúde que consomem grande parcela dos recursos do SUS e contribuem significativamente para o déficit do setor da saúde no comércio exterior. Portanto, devem receber atenção especial do Complexo Industrial da Saúde, do qual o CDTS faz parte. Essas seriam as prioridades econômicas do Centro. As doenças negligenciadas consideradas prioritárias pelo Ministério da Saúde seriam as prioridades sanitárias. Elas recebem pouca atenção das grandes multinacionais devido ao baixo poder de compra das populações afetadas.
Como está sendo o trabalho de conseguir recursos e aplicá-los, considerando que o projeto se desenvolve dentro da estrutura do Estado?
O CDTS é uma das obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) – Mais Saúde e tem, portanto, os recursos garantidos no que diz respeito às obras e instalações de infraestrutura.
Além dos recursos orçamentários da Fiocruz, o CDTS conseguiu outras fontes de financiamento?
Sim. Os recursos para a aquisição dos equipamentos provêm dos Fundos Setoriais do Ministério de Ciência e Tecnologia, do Fundo Nacional de Saúde do Ministério da Saúde e do BNDES.
Quais são as dificuldades em se montar o quadro de pessoal necessário a um projeto de grande porte e especialização?
Isso é, sem dúvida, nosso maior desafio e preocupação. Mas estamos otimistas, pois grande parte do know how necessário ao funcionamento das Plataformas Tecnológicas e Laboratórios de Apoio já existe na Fiocruz, estando prevista a realocação interna de recursos humanos. O mecanismo de bolsas de curta, média e longa duração também abre a possibilidade de atrairmos bons cérebros. Mas consideramos fundamental, no curto prazo, a absorção de especialistas em caráter permanente por meio de concurso público. Já a médio e longo prazo, a Fiocruz espera adotar formas mais flexíveis de gestão de pessoal, em particular nas áreas relacionadas ao setor produtivo.